Mostrando postagens com marcador rainha Nzinga e Mbandi. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador rainha Nzinga e Mbandi. Mostrar todas as postagens

Nzinga Mbandi, a saga e o trono da rainha resistente

 

Figura 01. Retrato de Nzinga Mbandi em um pergaminho conservado no mosteiro de Coimbra, ilustração presente na obra: BRÁSIO, Antônio. Monumenta Missionária Africana. Lisboa: A.G.U. 1952, 11vol. 

Por César Pereira, Colunista

Em 1571 o rei de Portugal Dom Sebastião determinou a organização de uma política colonizadora para as terras portuguesas nos territórios africanos conhecidos hoje como Angola. O objetivo do monarca europeu era criar uma estrutura colonial semelhante àquela que já estava em desenvolvimento no Brasil desde 1530.

As atividades coloniais dos portugueses na África Austral (região do continente africano onde se localiza hoje Angola, Namíbia, África do Sul, Zimbábue, Moçambique, Zâmbia), já vinham sendo desenvolvidas desde os fins do século XV. Durante a primeira metade do século XVI tinham se restringido a contatos comerciais de ordem diversa: trocas de produtos africanos (noz-de-cola, metais, metais preciosos, peles, marfim), mas também escravos.

Após a consolidação do projeto de colonização efetiva das terras da América Portuguesa (Brasil) e a organização da produção da lavoura de cana-de-açúcar e açúcar nos engenhos a necessidade de mão-de-obra escravizada aumentou a demanda pelo tráfico de seres humanos escravizados na América. Assim, a partir da década de 1550 à medida que o tráfico de escravizados se intensifica e vai gerando maiores lucros, cresce a necessidade do governo português organizar este comércio de seres humanos e isto só poderia ser feito controlando as feiras no continente africano que era onde se comercializava os trabalhadores escravizados.

Após a morte de Dom Sebastião na batalha de Alcácer Quibir em 1578, o Reino de Portugal passou a enfrentar uma séria crise política, pois o rei morto não deixou sucessores diretos ao trono, seu parente mais próximo era o tio Dom Henrique, um cardeal da Igreja Católica que assumiu o trono com sessenta e oito anos e morreria no começo de 1580 deixando os portugueses sob o comando da dinastia dos Habsburgos que governavam a Espanha onde reinava Filipe II.

A ascensão de Filipe II ao trono português sob o título de Filipe I não alteraria significativamente a administração das colônias portuguesas nem na América nem tampouco na África. A burguesia lusitana firmara acordo com o rei espanhol e seus representantes para que mantivesse os territórios ultramarinos como possessões de Portugal se comprometendo a não os reverter em províncias espanholas.

Portugal ficaria sob domínio espanhol de 1580 até 1640, foi neste período que se intensificaram os esforços dos colonizadores portugueses para conquistar e avassalar todo o território do Reino de Ndongo, área da África Austral ocupada por vários povos desde os séculos V e VI da era cristã e que hoje abriga principalmente o território da República de Angola.

O processo de formação do Reino de Ndongo ocorre ao longo de boa pare do século XVI, a centralização política do reino se dar em torno de lideranças religiosas e ancestrais conhecidas como ngola. Inicialmente ngola são pedaços de ferro esculpidos, insígnias de poder que permite quem as recebe estabelecer a comunicação entre o mundo dos vivos e dos mortos.

Aos poucos uma das linhagens portadoras do ngola vai estabelecer alianças com outras linhagens e assim formarão uma vasta família com poderes religiosos e políticos. Estas linhagens escolherão um líder para comandá-las e assumir o governo sobre elas e sobre as terras nas quais viviam com seus servos, escravos e parentes cultivando o solo e criando animais.

O Ngola, título que recebia o rei sacerdote logo passou a atuar militarmente sobre outros povos do território banto. Formando um poderoso exército esse Ngola vai expandir suas conquistas para os lados dos rios Bengo, Kwango e Kuvo, áreas de solos férteis e ricas em minerais, assim o poder do Ngola cresce à medida que ele vai submetendo outros chefes de tribos, e outros reinos ao seu comando.

Com o estabelecimento de uma intrincada rede de linhagens que lhe garante a sustentação no trono o Ngola passa a se constituir como a mais importante autoridade na região e logo se tornará um problema para o projeto de colonização portuguesa. Mas à medida que este Ngola se impunha como autoridade política e militar aos diversos reinos e povos do território banto, também atraía sobre si uma série de inimigos, será com a ajuda desses inimigos que as autoridades coloniais irá mover a guerra contra o Ngola-Kiluanje a fim de impor a este uma vassalagem ao império colonial português.

O Ngola era considerado sagrada pelos seus súditos que acreditavam nos poderes deste para controlar a chuva, a cheia dos rios, a fertilidade do solo e as boas colheitas. Concentrando assim poder religioso, político e militar o Ngola se torna uma força para se impor tanto ao poderio colonial quanto ao domínio do Reino Congo.

O Reino Congo tinha sido um poderoso império Centro-africano entre os séculos XIV e XV, mas no século XVI entrou em colapso à medida que os povos que estavam sob controle do manicongo (o imperador) se rebelaram e foram se proclamando soberanos. Ainda na primeira metade do século XVI os ambundos, povo da região que hoje compreende o território da Angola e da República Centro-africana estavam politicamente submetidos ao Reino Congo, mas em 1556 sob a liderança do Ngola-Kiluanje (Rei dos Ambundos), venceram o manicongo na batalha de Ndande e alcançaram a soberania.

Ao longo da segunda metade do século XVI os ambundos governados pelo Ngola-Kiluanje vão expandir seus domínios sobre outras regiões da África central e Austral, várias províncias do Reino Congo serão submetidas e os chefes locais reduzidos a condição de vassalos do Ngola-Kiluanje irão aliar-se aos portugueses na esperança de se ver livres dessa vassalagem.

Foi desse modo que se formou o poderoso Reino de Ndongo no território que hoje conhecemos como sendo a República de Angola. Será este reino que procurará se impor contra o avanço português ao longo do século XVII, seus reis resistirão através de uma longa luta armada contra o assédio do dominador europeu que procurava controlar todo a região e assim explorar livremente o comércio de escravizados, como também dos produtos da terra: ouro, prata, ferro, marfim, madeira, peles, alimentos.

A economia do Reino de Ndongo era agrária, mas o comércio era igualmente muito importante para os povos que o compunham. Através de rotas de comércio terrestres e fluviais os ambundos mantinham uma intensa relação de trocas comerciais e culturais com outros povos do centro e do sul da África. A organização política e a segurança que as forças militares do Ngola proporcionavam garantiram um rápido crescimento populacional do Ndongo como também seu enriquecimento.

Além dos lucros auferidos pelo comércio e agricultura havia também os basculamentos (tributos) pagos ao Ngola pelos sobas (chefes locais) avassalados ao Reino de Ndongo. Assim quando os portugueses passaram a investir fortemente no projeto colonizador de Angola, as forças políticas e militares do Ndongo foram uma barreira de resistência a qual precisaram vencer para impor seu domínio sobre a região.

O primeiro donatário do território do Reino de Ndongo e Angola foi Paulo Dias de Novais que recebeu carta de doação da terra das mãos do rei Dom Sebastião. Deveria tomar posse das terras, vencer os resistentes, converter os sobas em vassalos e manter o Ngola-Kiluanje sob seu controle. A ação dos colonizadores para controlar a região deveria partir do litoral para o interior seguindo o curso do Rio Kwanza.

Seguindo o plano traçado pelo governo lusitano os colonizadores construíram uma fortaleza-prisão na área da baía de Loanda a qual deram o nome de Presídio de São Paulo de Loanda, esta construção serviria durante séculos como ponto estratégico de onde eram planejadas as ações de colonização do território angolano.

Nas décadas de 1580 a 1610 a ação colonizadora foi se impondo lentamente, pois a resistência do Ngola-Kiluanje impedia grandes avanços do projeto de colonização. Para facilitar a penetração do poderio lusitano os sucessivos governadores de Angola concentravam suas ações de dominação sobre os sobas vassalos de Ndongo.

Aproveitando-se do descontentamento destes sobas com relação ao seu soberano, as autoridades portuguesas acabavam submetendo estes sobas prometendo-lhes proteção militar contra o exército do senhor de Ndongo, em troca dessa proteção os sobas remetiam aos portugueses cerca de cem escravizados por ano.

Na prática o que acontecia aos sobas sublevados contra o Ngola-Kiluanje era passa da condição de vassalos de Ndongo para a situação de vassalos do Reino de Portugal. Ao perder sua autoridade para o colonizador os sobas se submetiam também a obrigação de remeter escravizados para os acampamentos portugueses, logo as feiras que se instalavam por boa parte do território angolano se tornariam frementes mercados de escravizados e o comércio de seres humanos cresceria a tal ponto que já na década de 1630 a moeda mais valiosa nestas feiras eram homens e mulheres jovens escravizados.

Durante a década de 1610 intensificou-se a “Guerra Preta”, conflito entre os vários grupos em disputa pela hegemonia política sobre as terras dos vales do Rio Kwanza e Kuvo. Os sobas submetidos ao controle dos portugueses se viram obrigados a ofertar ao colonizador soldados para lutares contra o Ngola-Kiluanje, também se tornou obrigação desses sobas dar proteção aos presídios e fortalezas erguidos pelos portugueses.

O engajamento de soldados negros no exército colonizador era tão grande que aos lusitanos cabia tão somente o trabalho de comandar os exércitos de negros combatentes. Essas “Guerras Pretas” foram fundamentais para os portugueses efetivarem seu projeto de dominação territorial, pois a a medida que iam submetendo os sobas conseguiam arregimentar mais soldados negros que conheciam muito bem o território onde se deslocavam para combater o Ngola-Kiluanje.

Na década de 1620 os embates dos colonizadores contra o Reino de Ndongo se intensificará com a incorporação dos jagas (povo guerreiro e de mercenários da África central) primeiro aos exércitos coloniais e posteriormente ao exército de Ndongo.

Os jagas eram uma força militar importante na região, pois formava uma sociedade guerreira, homens e mulheres adestrados nas armas. Sua organização política era matrilinear, isto é baseada na autoridade de uma rainha-mãe e guerreira que encarnava as potências ancestrais e sobrenaturais. Inicialmente os jagas foram aliciados pelos sobas avassalados dos portugueses e passaram a combater ao lado do colonizador, mas algum tempo depois viram na liderança de Nzinga Mbandi a representação de sua grande rainha guerreira e se aliaram aos Ambundos contra o colonizador.

A ação política de Nzinga Mbandi começa de fato em 1622, quando seu irmão Ngola Mbandi a envia com uma embaixada para negociar a paz com os portugueses em Luanda. Neste momento Nzinga Mbandi era uma princesa do Reino de Ndongo governado pelo seu irmão Ngola Mbandi que assumira o trono em 1617.

Mesmo antes do reinado de Ngola Mbandi o Reino de Ndongo já se via fortemente ameaçado pelo poderio militar dos lusitanos fortalecidos com a aliança dos jagas. Em 1619 o exército jaga liderado pelo chefe Jaga Cassange entrou na capital do Reino de Ndongo obrigou Ngola Mbandi a fugir para a Ilha de Kindonga e assim assumiu na prática o controle sobre o reino.

No entanto Jaga Cassange recusou-se a entregar o controle do Reino de Ndongo a Luiz Mendes de Vasconcelos governador português de Angola e declarou-se inimigo dos lusitanos. Aproveitando-se desta cisão na aliança de seus inimigos Ngola Mbandi decidiu aceitar a proposta de paz com os portugueses que o haviam procurado para formar uma coalizão contra Jaga Cassange.

Para conseguir firmar aliança com o Reino de Portugal a embaixada presidida por Nzinga Mbandi deveria convencer o novo governador de Angola de que Ngola Mbandi garantiria a restituição aos portugueses das fortalezas tomadas pelos jagas, além disso o Ngola teria que garantir a segurança das feiras e o livre trânsito dos colonizadores pelo território de Ndongo.

O que os portugueses desejavam era um completo avassalamento de Ngola Mbandi a autoridade portuguesa. Mas a princesa Nzinga Mbandi não se disporá a aceitar as condições de paz humilhantes oferecidas pelo governador e é neste momento que a sua personalidade guerreira e sua inteligência política começa a se sobressair.

Nzinga Mbandi nasceu em 1582, era fila do Ngola-Kiluanje e uma de suas muitas concubinas. Foi criada na corte como uma princesa apta a fazer aumentar a linhagem do Ngola, isto é, de acordo com as leis dos ambundos, Nzinga deveria assumir posição de fundamental importância junto a seu pai na manutenção e expansão das linhagens reais.

Como princesa escolhida para expandir a linhagem do Ngola ela foi adestrada nas artes da guerra, recebeu também excelente instrução política e teve o privilégio de receber os conhecimentos do seu pai. Quando este veio a falecer em 1616 assistiu a sangrenta ascensão de seu irmão Ngola Mbandi ao trono do Ndongo.

Na sua luta pelo poder Ngola Mbandi matou o próprio sobrinho herdeiro natural do trono, exilou as irmãs e mandou executar todos aqueles que se opunham ao seu poder. Nzinga Mbandi e suas irmãs só puderam retornar do exílio quando o rei Ngola Mbandi percebeu que não ofereciam nenhum perigo a sua autoridade e principalmente quando compreendeu que precisava delas para negociar a paz com os portugueses e assim ser restituído ao trono de Ndongo.

Nzinga Mbandi chegou em Luanda para encontrar-se com o governador português acompanhada de grande séquito e foi recebida com cordialidade pelos lusitanos. Para mostrar disposição em negociar aceitou o batismo e recebeu na pia batismal o nome de Ana de Sousa. Mas logo ela percebeu que o governador João Correia de Souza que assumira o governo em 1621 não tinha intensão alguma de tratá-la como uma princesa e como sua igual.

Logo também compreendeu que os portugueses estavam ali para exercer completo controle sobre o povo e o território, assumir também o controle sobre as feiras e rotas de comércio. Desse modo, estabeleceu apenas acordos frouxos e sem nenhum compromisso militar ou político consistente com o governador e voltou a Kindonga. Sem nenhuma perspectiva de recuperar seu trono ou derrotar os jagas e sem apoio formal dos portugueses Ngola Mbandi suicidou-se em 1624, deixando o trono para seu filho ainda criança.

É neste momento que Nzinga Mbandi se faz a rainha de Ndongo. Imediatamente a morte do irmão ordena a execução dos seus aliados e principalmente do herdeiro do trono. Tendo eliminado a linhagem do antigo Ngola ela propõe então sua própria linhagem como autoridade política sobre os ambundos.

Nzinga Mbandi toma para si todas as insígnias de poder e é reconhecida como a legítima sucessora de Ngola-Kiluanje seu pai. Vai se tronar assim a rainha de Ndongo, um reino dominado pelos jagas e um território em colapso devido a dissolução do poder do Ngola sobre os sobas que estão em grande maioria sublevados. Além dos problemas de ordem interna Nzinga Mbandi precisará vencer a ameaça dos portugueses que a veem não como uma aliada, mas uma poderosa inimiga.

Logo após a ascensão de Nzinga Mbandi ao trono do Reino de Ndongo as autoridades portuguesas e os traficantes de seres humanos escravizados começam a preocupar-se com o rápido aumento das deserções dos soldados que formavam o grosso do exército colonial lusitano em Angola, com as fugas de escravizados, todos buscando proteção no território controlado por Nzinga ou se incorporando ao seu exército antilusitano.

Além das fugas dos escravizados que se refugiavam sob a proteção da rainha Nzinga Mbandi e dos soldados que se convertiam em guerreiras da rainha de Ndongo, os sobas antes avassalados ao governo português se rebelavam e se bandeavam para os lados de Nzinga. Rapidamente as autoridades coloniais perceberam a deterioração do seu domínio sobre Angola e o fortalecimento do poder da rainha que se impunha como a maior força política e militar dos ambundos.

Procurando enfraquecer a autoridade de Nzinga Mbandi o governador Fernão de Souza determinou a destituição da rainha do trono de Ndongo. Impossibilitado de vencer Nzinga pelas armas, pois estava com suas forças militares reduzidas o governador optou por desfechar um golpe político contra a rainha. Em 1626 anunciou publicamente que o governo português já não considerava Nzinga sua aliada e decretou-a destituída do trono de Ndongo e substituída pelo rei Are-Kiluanje.

O aparecimento de um novo pretendente ao trono de Ndongo representava para Nzinga Mbandi a necessidade de continuação das “Guerras Pretas”, pois para ela ficava evidente que o governo português pretendia continuar lançando as lideranças políticas de Dongo umas contra as outras para enfraquecê-las e desse modo alcançar o avassalamento completo do povo ambundo.

Ainda procurando evitar a continuidade das “Guerras Pretas” Nzinga enviou emissários aos representantes do governo português em Luanda para selar um acordo de paz e evitar a chegada de Are-Kiluanje ao trono, pois de acordo com as leis do parentesco que regiam a política sucessória de Ndongo este não passava de um soba vassalo seu. A via diplomática para a solução do impasse proposta por Nzinga fracassou, pois o governador-geral já havia declarado a rainha de Ndongo como inimiga de Portugal.

Temendo ver sua autoridade se esvaziar Nzinga Mbandi decide partir para o confronto direto com os inimigos. Determina então a prisão de Are-Kiluanje e seu avassalamento forçado, desse modo a comitiva de Are-Kiluanje que viajava desde a fortaleza de Ambaca foi atacada e apesar do rei-vassalo dos lusitanos ter escapado os aliados de Nzinga conseguiram matar três portugueses e conduzir outros seis a prisão.

Imediatamente o governador-geral Fernão de Souza deu ordens ao Bento Banha Cardoso para recrudescer a guerra contra Nzinga Mbandi e impor a autoridade portuguesa em todo território angolano. Tem início uma sangrenta guerra de perseguição lusitana contra a rainha Nzinga, esta é atacada em seu território nas ilhas do Rio Kwanza, mas consegue escapar e se refugia em Libolo, território dos Jagas.

A chegada de Nzinga Mbandi o kilombo dos jagas foi importante tanto para a rainha quanto para este povo, pois ela com sua grande capacidade de mobilização militar e sua inteligência política conseguiu rapidamente reunir os guerreiros jagas sob sua liderança e foi escolhida pelo Jaga Caza como Tembanza, rainha jaga, isto é, uma autoridade política, religiosa e guerreira dos jagas.

A partir desse momento, Nzinga Mbandi conseguirá unificar os jagas em torno de um inimigo comum, os portugueses, e este povo que até então havia agido como mercenários de guerra aliando-se a quem lhe oferecesse maiores ganhos passará a lutar ao lado de Nzinga contra a colonização de Angola.

O poder bélico de Nzinga Mbandi tornou-se o mais temido pelos portugueses na África, pois os guerreiros jagas agora sob sua liderança eram os melhores combatentes do território banto e foi com esta nova força militar que a rainha e seu general Jaga Caza avançaram por todo o território de Ndongo conquistando novos aliados e submetendo os resistentes.

Com o fortalecimento da liderança de Nzinga Mbandi e o esvaziamento da autoridade do rei-fantoche Ari-Kiluanje as rotas de comércio portuguesas em terra e nos rios foram interrompidas, as feiras foram dissolvidas, o tráfico de escravizados do interior de Angola e de outras áreas da África central para o porto de Luanda foi drasticamente interrompido. A fuga de escravizados buscando a proteção de Nzinga tornou-se um transtorno para os portugueses que viram seu lucrativo comércio de seres humanos prejudicados pela ação guerreira de Nzinga Mbandi e seus aliados.

Em 1629 o governo de Portugal determinou a destruição imediata do kilombo de Nzinga Mbandi e a consolidação do poder Ngola Kiluanje o sucessor de Are-Kiluanje como o novo rei de Ndongo. O ataque ao kilombo onde Nzinga se encontrava não surtiu o efeito que os portugueses esperavam, pois, a rainha conseguiu escapar e abrigar-se junto ao Jaga Cassanje na região do Songo.

Jaga Cassanje era um velho inimigo dos portugueses, vinha dificultando seu domínio sobre a férteis áreas dos vales dos rios Kwanza e Kuvo desde os fins da década de 1610, agora sua aliança com Nzinga Mbandi poria definitivamente em cheque as pretensões colonialistas lusitanas sobre Angola.

Nzinga Mbandi soube manipular com destreza política a inimizade do Jaga Cassanje contra os portugueses e trouxe-o para seu lado, impondo assim duro golpe as ambições políticas e econômicas lusitanas no território de Ndongo. A década de 1630 representou então a consolidação do poder político de Nzinga sobre todo o Ndongo. Fortalecida com a aliança com jagas e sob a liderança de muitos sobas seu poder aumentou e assim se impôs como uma força política e militar contra os colonizadores.

Foi assim que em 1630, Nzinga Mbandi conseguiu conquistar o Reino de Matamba e assumiu os títulos da linhagem desta sociedade, fazendo-se imediatamente a rainha que concentrava em suas mãos poderes sobre todos os sobas e sobre todas as terras da África central.

Para consolidar sua autoridade ainda mais, Nzinga Mbandi ordenou a formação de uma grande confederação sob seu comando político. Esta confederação tinha como principal objetivo minar toda e qualquer presença lusa em Angola.

As autoridades portuguesas viram ao longo da década de 1630 e 1640 seus domínios coloniais passarem rapidamente para as mãos de Nzinga Mbandi. As rotas do comércio de seres humanos e das drogas do sertão foram interrompidas, as feiras onde o comércio dos escravizados e outros produtos foram dissolvidas e seu controle sobre o território angolano se restringiu aos arredores de Luanda.

Imediatamente os colonizadores iniciaram toda uma campanha difamatória contra Nzinga Mbandi. O catecismo ensinado nas igrejas passou a veicular a imagem da rainha como praticante do canibalismo, cria-se a imagem de Nzinga como uma prostituta que em mantém em sua corte um harém masculino com centenas de homens para satisfazê-la sexualmente.

As imagens de Nzinga Mbandi passam então a representar uma mulher que assume o papel masculino, atributos guerreiros interditos às mulheres e agindo como tal, ela se equipara não aos homens, mas subverte a ordem de Deus, as leis divinas, de tal modo que os portugueses passam a associá-la as imagens demoníacas.

Rapidamente o nome Nzinga Mbandi passa a representar os atributos de alguém que se associa as potências malignas da natureza. A rainha vai ser classificada como bruxa associada ao demônio, comedora de gente, distribuidora da guerra e da peste, causadora de fome e sofrimento. Os portugueses procurarão por meio desta propaganda negativa da rainha Nzinga combater a visão de guerreira e líder política que age em defesa do Reino de Ndongo e da ancestralidade de seu povo.

Nas páginas dos relatos dos padres e escritores que viveram em Angola no período do reinado da rainha Nzinga sua representação aparece sempre como uma propaganda destacando aspectos negativos de sua personalidade e comportamento.

O objetivo destas gravuras é difundir para a época e para toda a posteridade uma visão amplamente negativa da rainha Nzinga Mbandi. OS pretos deveriam ver nela não uma liderança contra a dominação lusitana e contra o tráfico de seres humanos escravizados, mas uma mulher aliada ao demônio, sem a aura de heroísmo a rainha Nzinga não poderia ser elevada a símbolo de resistência e lutas pretas.


A imagem acima criada no século XVII e publicada em 1965 pela ditadura salazarista em Portugal procurava ainda no século XX, divulgar uma representação de Nzinga Mbandi como uma mulher que ao assumir a posição de liderança política em Angola age de forma autoritária, discricionária e de modo desumano.

Na imagem observamos o governador branco e o capitão-mor, ambos portugueses agindo como homens civilizados em posições mais elevadas, observe que Nzinga é representada na parte baixa da imagem sentada sobre o dorso de uma escrava, enquanto o governador ocupa uma cadeira alta que o equipava as montanhas que aparecem ao fundo.

Nesta outra imagem abaixo, Nzinga é representada fumando tabaco cercada de suas escravas e servida pelos homens do seu harém. Ao associar a imagem de Nzinga a um comportamento na época essencialmente masculino, o gravurista procura difundir entre o público a ideia de uma mulher que se nega a assumir atitudes condizentes com os papéis civilizados criados para as mulheres.

Fica bem evidente a tentativa de associar Nzinga Mbandi ao mundo demoníaco, aos valores negativos. Objetiva-se aqui subtrair dela seu estatuto de heroína nacional angolana, imagem esta que os grupos nacionalistas que lutavam contra dominação colonial portuguesa estavam criando para nela se inspirarem.

Figura 03. Nzinga fumando tabaco: In: CAVAZZI, João Giovanni Antônio. Descrição Histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1965.

Nas décadas de 1950 e 1970 tanto o MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola) quanto o FLNA (Frente de Libertação Nacional de Angola) irão invocar a luta e o exemplo de Nzinga Mbandi contra a dominação lusitana no século XVII para justificar suas lutas anticolonialistas. Após a independência de Angola em 1975, a história, a memórias, as lutas e a imagem de Nzinga Mbandi serão reabilitadas pelo governo da República de Angola e ela será alçada a posição de heroína nacional do povo angolano livre.

Figura 04. Estátua da rainha Nzinga, erguida em 2002. (FOTO | Reprodução | Internet).

 

REFERÊNCIAS

CARDONEGA, Antônio de Oliveira. História geral das guerras angolanas. (1681). 3 v. Lisboa, 1972;

CAVAZZI, Giovanni. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Tradução, notas e índices pelo Pe. Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965;

FONSECA, Mariana Bracks: Nzinga Mbandi contra a colonização portuguesa de Angola, Temporalidades, Revista de História, disponível em: www.fafich.ufmg.br/temporalidades/revista.

Nzinga Mbandi – a rainha negra que nunca se entregou e que jamais aceitou a submissão aos invasores



Não foi fácil para Portugal retirar milhares de pessoas da África para servirem como escravos na América. Longas lutas de resistência foram travadas contra a colonização, que contava com altos investimentos militares e uma política que combinava opressão, violência e alianças com chefes locais.

A rainha com seu séquito de guardas e músicos, em desenho
de 1622 do frei capuchinho Giovanni Antonio Cavazzi de
Montecuccolo, contemporâneo de Nzinga.
A trajetória de Nzinga Mbandi é um exemplo de como os chefes centro-africanos enfrentaram o avanço português. Hábil guerreira, estrategista política e militar, Nzinga foi uma líder carismática, uma rainha que passou a vida combatendo e morreu sem nunca ter sido capturada.

Nasceu em 1582, filha do oitavo Ngola (do qual derivaria o nome Angola), título do principal régulo do reino do Ndongo. Os portugueses haviam iniciado a colonização a partir de Luanda sete anos antes, e foram ganhando o interior com a construção de “presídios” – fortificações militares no curso do Rio Kwanza, que abrigavam os comerciantes de escravos – e a organização de feiras em que a principal mercadoria eram as pessoas escravizadas. Criaram também um sistema de avassalamento de sobas, os chefes locais autônomos que pagavam tributos ao Ngola em troca de proteção militar e espiritual. Após a invasão portuguesa, eles eram batizados e se declaravam fieis à Coroa. Essa condição incluía diversos compromissos: fornecer baculamentos (tributos pagos geralmente em escravos), dar passagem às tropas do governo, permitir kitandas (feiras e mercados) em seu território e contribuir com escravos para serem soldados da “guerra preta” – o pelotão que lutava junto aos portugueses.

A guerra se generalizava, e com ela o clima de instabilidade. Os sobados intensificavam ataques a povoados vizinhos para saldar suas dívidas com os portugueses, pois os prisioneiros capturados em guerra eram escravizados. Ao sinal de qualquer atitude considerada infiel, o governo português invadia os sobados e matava seus líderes, substituindo-os por chefes aliados.

Foi nesse contexto de penetração portuguesa no reino do Ndongo, movido pelo tráfico negreiro, que Nzinga Mbandi cresceu. No reinado de seu irmão Ngola Mbandi, agravou-se a tensão entre os locais e os conquistadores. Em 1617, o governador de Angola, Luis Mendes de Vasconcelos, invadiu o reino do Ndongo para construir o presídio de Mbaka, a poucas milhas da Cabaça, a moradia do Ngola. O resultado foi uma guerra intensa, ao fim da qual Ngola, vencido, refugiou-se na ilha de Kindonga, no Rio Kwanza. Em 1622, João Correia de Sousa assumiu o governo e decidiu procurar o Ngola para restabelecer a paz, uma vez que o cenário de guerra paralisara os mercados de escravos. Foi quando Nzinga entrou em cena.


Ngola Mbandi mandou sua irmã mais velha como embaixadora para negociar a paz com os portugueses. Na audiência com o governador, ela impressionou a todos por sua inteligência e habilidade diplomática. Defendeu a manutenção da independência do Ndongo e o não pagamento de qualquer tributo à Coroa portuguesa, mas se mostrou aberta ao comércio. Entendendo que a paz com os portugueses passava pelo batismo cristão, aceitou o sacramento: recebeu o nome de D. Anna de Sousa, tendo como padrinho o próprio governador. De sua parte, os portugueses se comprometeram a efetivar a retirada do presídio de Mbaka.

Estratégia política em nome da resistência africana ou conversão ao catolicismo, o batismo de Nzinga Mbandi gera controvérsia entre os estudiosos até hoje.
O acordo, porém, não foi cumprido nem por aquele governador nem pelos sucessores. A situação levou ao enfraquecimento político de Ngola Mbandi, que morreu na ilha de Kindonga, em 1624, em circunstâncias que continuam sendo uma incógnita para a historiografia de Angola. Nzinga se apoderou das insígnias reais e assumiu o trono do Ndongo.

A nova rainha foi associada à possibilidade de libertação do povo Mbundo, etnia predominante no reino Ndongo. As crescentes fugas de kimbares – escravos que guarneciam os presídios ou eram dados pelos sobas para comporem a “guerra preta” – enfraqueciam as tropas lusas, enquanto fortaleciam o exército de Nzinga. Aproveitando-se desse contexto favorável, a rainha lançou uma campanha antilusitana, formando e liderando uma confederação de descontentes com a colonização. Conquistou o apoio de sobas que já haviam se avassalado, além de poderosos chefes que não pertenciam ao Ndongo, como o Ndembo Mbwila (Ambuíla).

Capturar Nzinga e reduzi-la à obediência passou a ser um dos objetivos principais do governo português. Em 1626, o governador de Angola, Fernão de Sousa, arquitetou um golpe político para que Are a Kiluanje, um vassalo dos portugueses, assumisse o trono. Nzinga se refugiou na ilha de Kindonga e conseguiu se livrar do cerco usando sabiamente a geografia do local, deslocando-se pelas diversas ilhas do Rio Kwanza. Quando as tropas lusas enfim a encurralaram em Kindonga, ela mandou seus embaixadores informarem que estava disposta a se render e se avassalar. Para isso, no entanto, pediu uma trégua de três dias. Passado o prazo, os portugueses perceberam que tinham caído em um golpe: Nzinga já estava longe dali.

A rainha foi então buscar proteção junto aos temidos jagas, guerreiros nômades que se organizavam em kilombos – acampamentos que se deslocavam conforme as necessidades de guerra, com rígida hierarquia e severa disciplina militar. Nzinga recebeu o título feminino mais importante no kilombo – Tembanza –, assumindo funções rituais essenciais. Imprimiu consciência política aos bandos, que até então viviam errantes, praticando roubos e sem se prenderem a linhagens. Sob o comando de Nzinga, os kilombos passaram a compor a frente de resistência contra a ameaça estrangeira. O incrível poderio bélico que Nzinga conseguiu mobilizar junto aos jagas foi crucial para se manterem livres e vencer os portugueses por várias vezes.

Por volta de 1630, Nzinga ocupou o reino de Matamba (Ndongo Oriental), terra evocativa de seus ancestrais e tradicionalmente governada por mulheres. Foi na condição de rainha de Matamba que ela soube da invasão holandesa em Angola, em 1641. Ali estava uma oportunidade de estabelecer nova aliança para minar a presença portuguesa na região. Nzinga aproximou-se dos invasores, e juntos criaram uma importante rota comercial que conectava Luanda (agora de posse holandesa) a Matamba, trocando escravos por mercadorias europeias, sobretudo armas de fogo.

Era fundamental para a oligarquia do Rio de Janeiro restabelecer o domínio do mercado de escravos em Angola. Isso foi conseguido em 1648 por iniciativa de Salvador de Sá, que organizou tropas formadas por índios e bandeirantes para expulsar os holandeses. A vitória lusa teve o efeito direto de enfraquecer a rainha Nzinga. Suas duas irmãs foram capturadas e mantidas como reféns pelos portugueses. Kifunge acabou assassinada em Massangano, acusada de espionagem. Mocambo ficou presa em Luanda, utilizada como arma política a fim de forçar a rendição de Nzinga.

O papa Gregório XV, com o objetivo de diminuir o poder que as coroas ibéricas tinham acumulado com as colonizações, criara em 1622 a Propaganda Fide – a “propagação da fé” –, que permitiu a ida à África Central de missionários que não tinham relações com a Coroa portuguesa. Entre eles estavam os capuchinhos, que chegaram à região na década de 1640. Nzinga enxergou nesses religiosos outra possibilidade de fazer novos aliados europeus que não fossem ligados ao governo português. Por meio do capuchinho italiano Antonio de Gaeta, Nzinga retornou ao catolicismo em 1656, renegando os ritos gentílicos e aceitando a fé de Cristo. A conversão ao cristianismo foi uma saída estratégica, pois, já idosa, ela sabia que a cruz seria o caminho mais rápido para a paz e para conseguir o retorno de Mocambo, sua irmã indicada à sucessão de Matamba, enfim libertada pelos portugueses em 1657.

A líder de Matamba morreu em dezembro de 1663, com mais de 80 anos, sepultada de acordo com os ritos cristãos. O povo Mbundo a venerou como “rainha imortal”, que nunca se entregou e que jamais aceitou a submissão aos invasores. Sua fama atravessou o Atlântico e chegou ao Brasil. Aqui, o nome Ginga, ou Jinga, é evocado em rodas de capoeira, em congados e maracatus de múltiplas formas: como guerreira que engana os adversários, inimiga da corte cristã, venerável ancestral de Angola.