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Carta
de Renúncia – Academia de Letras do Brasil/Seccional Araripe-CE
Nova
Olinda -CE, 27 de julho de 2023,
Prezada
Presidenta Academia de Letras do Brasil/Seccional Araripe-CE,
Com
os cumprimentos iniciais, informo que é com sentimento de
desapontamento que envio esta solicitação de desligamento da
Academia de Letras do Brasil/Seccional Araripe-CE após três anos e
nove meses de minha posse na cadeira nº 33, a qual se apresenta como
patrono o símbolo da cultura popular altaneirense João Sabino
Dantas, o João Zuba. Toda instituição tem um fundamento ideológico
que o sustenta e, portanto, que lhes apresenta caminhos para a defesa
de suas causas. No caso da ALB/Araripe-CE, a CULTURA. Notadamente, é
salutar lembrar que quando o acadêmico percebe que essa bandeira não
está sendo defendida da forma como se deveria ou ainda quando este
descortina já algum tempo que outras ações atreladas a cultura ou
que dela também seja parte, como políticas antirracistas, não são
levantadas, cabe a este, por iniciativa própria, abdicar de seu
título. E assim desejo e o faço. Passo expor agora as razões dessa
decisão.
“Quer
acabar com a resistência e o poder de organização e criticidade de
um povo"?, "destrua a educação e a cultura". A
frase que escolhi para falar sobre a prática de destruição de tudo
o que é ligado à cultura no país foi dita pelo filósofo e
professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade
Regional do Cariri (URCA), Carlos Alberto Tolovi, durante um
bate-papo político comigo no programa Esperança do Sertão da Rádio
Comunitária Altaneira FM (2016). Em setembro de 2020, praticamente
no auge da pandemia da Covid-19, escrevi um artigo para o blog Negro
Nicolau com o título “A destruição da cultura e o silêncio
estarrecedor de instituições culturais”, onde destaquei que o
desmonte da cultura não começou com Bolsonaro (até então
presidente do país), mas que foi aprofundada com ele. A extinção
da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(Seppir) não foi na gestão Bolsonaro, mas as consequências danosas
a população negra foram ampliadas com ele.
E
são as questões apresentadas naquele artigo – haja vista que nada
mudou nesse intervalo de tempo -, que as exponho aqui para subsidiar
minha escolha pela renúncia ao título de acadêmico e integrante
desta academia, a quem agradeço pela honra do convite para dela
fazer parte.
De
Michel Temer que assumiu a presidência a partir de um golpe
jurídico-parlamentar-midiático a Jair Bolsonaro, a escalada de
perca de direitos, principalmente da população mais vulnerável
desse país - negros, mulheres (negras sobretudo), lgbts, indígenas
-, só tem crescido. A violência física e psicológica tem
aparecido com mais frequência e aqueles/as que as praticam fazem
questão de demonstrá-la. O Brasil dos últimos sete anos (2016 –
2022) piorou consideravelmente pois quem mais deveria ser e dar
exemplo de criação de políticas públicas para a construção da
equidade, faz justamente o contrário.
A
intenção do governo federal, tendo como recorte temporal o aludido
acima, é acabar com a participação social e com o poder de
organização e mobilização social e para isso tentou destruir tudo
que contribuiu para a análise crítica da sociedade, para o
fortalecimento da identidade e da liberdade. Foi assim com a extinção
do Ministério da Cultura (MinC) em 2016 e que foi rebaixado a
condição de secretaria no governo Bolsonaro. Mas só rebaixar não
era o suficiente, era preciso também proibir filmes e demais formas
de manifestação artísticas que tivessem como objetivos realizar
discussões sobre homofobia e machismo, por exemplo. Dentro dessa
seara, destaco que não se pode esquecer que a cultura é símbolo do
processo de redemocratização do país, pois ganhou status de
ministério em 1985.
A
aversão desse governo a população negra saltava aos olhos. Nenhum
negro ou negra para os ministérios. Mas só a falta de
representatividade não basta, era preciso de igual modo, alimentar
ainda mais o preconceito, a discriminação e o racismo. Quem não se
lembra quando em 2017 durante uma palestra no Clube Hebraica no Rio
de Janeiro, Bolsonaro proferiu a frase “fui num quilombo. O
afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Nem para
procriador ele serve mais”, ou “que seus filhos não ‘correm
risco’ de namorar negras ou virar gays porque foram ‘muito bem
educados’, ainda em 2021 e já no cargo de presidente quando disse
que um deputado negro por demorar a nascer “deu uma queimadinha”?
O
que elenquei aqui é apenas uma parte da política da segregação,
mas o pouco citado só vem a reforçar a política elitista, racista
e machista desse governo e concomitantemente uma aversão a cultura.
Mas
volto a frase em que comecei esse texto. “Quer acabar com a
resistência e o poder de organização e criticidade de um povo"?,
"destrua a educação e a cultura”. Certamente está sendo
válida para algumas entidades culturais. Não fiz um levantamento de
quantas temos na região do cariri cearense, mas é possível
perceber a omissão de grande parte dela que em nenhum momento teceu
crítica a essa barbárie que o país testemunhou. O fato de ter
votado em alguém não impede de se posicionar contra ações danosas
a sociedade. Muito pelo contrário. É salutar para a democracia. Mas
o que estou testemunhando é um silêncio estarrecedor. Algumas ações
individuais e pontuais vem acontecendo, mas não o suficiente.
E
ALB/Seccional Araripe se insere nesse diagnóstico. E o que mais
chama a atenção é que nasceu no bojo dos cortes e do desmonte da
Cultura, mas não se percebeu uma posição e enfrentamento a esta
destruição de tudo o que é ligado à cultura. Nenhuma nota.
Durante
meu discurso de posse em 12 de outubro de 2019, afirmei que havia um
mundo para além do poder constituído e das instituições. Mas a
forma com que encarávamos a vida lá fora dependia da educação e
da cultura. A vida vai fazer com que assumamos responsabilidades e
procurar caminhos que podem nos levar ao sucesso ou ao fracasso e que
podem abrir as portas para o conhecimento que levarão ou não ao
crescimento pessoal e profissional. Vai depender de que tipo de
escolha vocês farão. Vai depender também que leitura vocês
escolherão fazer da realidade. Mario Quintana disse uma vez que "os
verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem".
No nosso modelo de sociedade tem muitos (as) doutores (as) por
formação, mas analfabetos em posicionamentos diante da realidade.
Passaram anos e anos entre quatro paredes na companhia de
professores/as, obtiveram títulos e mais títulos, mas são
incapazes de utilizá-los em benefício da coletividade e da
transformação da realidade para melhor. O comodismo e a obediência
cega ao sistema os impedem disso. Doutores, doutoras e pós
doutores/as com diversos livros publicados, mas poucos são os que se
dedicam escrever para libertar. As escritas muitas vezes são para
atender ao sistema, ao mercado financeiro.
Naquela
oportunidade, trouxe Rubem Alves - psicanalista, educador, teólogo,
escritor e ex-pastor presbiteriano brasileiro, que tem um texto
brilhante e que sem prejuízos de interpretação e compreensão
substituí a palavra “escola” por “academia”: “Há
academias que são gaiolas e há academias que são asas…”. E ao
dialogar com ele afirmei que o meu desejo era que essa academia
pudesse ser assas e que cada um de nós fôssemos pássaros. Que
nosso voo fosse em direção ao caminho que nos levassem a ações de
fomento à cultura. Que pudéssemos em cada espaço que estivéssemos
estabelecer parcerias com o poder público no sentido de criar
políticas públicas de valorização da cultura. De igual modo, que
fossemos capazes de na ausência dessa parceria ou da inoperância do
poder público, continuarmos com o papel de agentes culturais.
Fiz
dentro dos meus limites como acadêmico e de tempo acenos para que
isso fosse atingido. Mas as sugestões que encaminhava não foram
atendidas, a saber: reuniões periódicas (de preferência mensais)
itinerantes e nas impossibilidades, reuniões virtuais, dentre
outras. Mais recentemente, sugeri uma posição da instituição
quanto a luta travada por várias entidades culturais quanto a defesa
da proposta de 2% do orçamento nos municípios para cultura. Alguns
integrantes chegaram a afirmar que encampavam a luta; outros não
responderam e outros ainda afirmaram que era melhor esperar passar a
fase eleitoral que esta prevista para acontecer em agosto do ano em
curso. O fato é que institucionalmente essa proposta não teve o
retorno esperado, ou seja, um posicionamento da ALB/Seccional Araripe
afirmando que ira participar junto as demais entidades pela
aplicabilidade de no mínimo 2% do orçamento dos municípios na
cultura. Solicitei, inclusive, uma reunião virtual para essa
finalidade.
Esse
desejo continua vivo. E espero que mesmo com a minha saída a
entidade possa fazer com que esse ideal exposto nessa carta seja
trilhado, fortalecido e alcançado.
Sem
mais, saudações a todos e todas.
Atenciosamente,
José
Nicolau da Silva Neto
Professor/Historiador