Na
obra “Cinema brasileiro: Propostas para uma História”, há um momento em que
Jean-Claude Bernardet faz um mapeamento da abordagem crítica da produção
cinematográfica nacional até os anos setenta. Havia uma tendência muito forte
dos jornalistas avaliarem os filmes brasileiros de acordo com parâmetros de
qualidade baseados na produção europeia e, sobretudo, norte-americana. Eram
boas produções aquelas que seguissem com êxito uma cartilha cinematográfica
gringa: cinema made in Brazil. A postura de certa crítica brasileira mudou
bastante depois disso e vivemos um tempo em que há uma discussão sólida sobre
as obras feitas no Brasil, sobretudo pós-retomada. A recepção calorosa de Bingo
por parte da crítica, todavia, deflagra um sintoma grave: essa espécie de
complexo de vira-lata ainda se encontra presente na recepção das produções
brasileiras.
Em
seu Blog - Isto não significa dizer que, necessariamente, quem gostou de Bingo
está caindo nessa armadilha. Entretanto, ao ler algumas reações ao filme,
podemos detectar facilmente uma legitimação amparada no que o cinema
norte-americano nos ensinou ser bom. Não por acaso, a comparação com Cidade de
Deus (o melhor filme brasileiro desde então, há quem diga) é oportuna para
escancarar o que esse tipo de pensamento esconde – muito por inocência, vale
dizer. Os dois filmes obedecem a uma lógica de montagem, ritmo, uso de trilha,
decupagem e estrutura narrativa muito próxima a modelos hollywoodianos. Cidade
de Deus é o filme de gangster na favela e Bingo, a cinebio clássica de ascensão
e queda.
Longe
de mim desejar um filme “essencialmente nacional” ou algum ufanismo do tipo.
Defender Bingo como o melhor filme brasileiro em anos, porém, na melhor das
hipóteses, revela que a pessoa não assistiu a nenhum filme feito em nossas
terras nos últimos anos – ou, quem sabe, viveu em outro planeta. Mas não sou
otimista a ponto de acreditar nisso. Penso, na verdade, se tratar de um projeto
de cinema mesmo, defendido por uma parcela considerável da crítica –
conscientemente ou não. Um elogio a um cinema correto, bonitinho, limpo, não
muito distante da Globo Fillmes, com money, que possa responder a expectativas
de qualidade hollywoodiana. E significa, por outro lado, não reconhecer uma
produção brasileira independente, extremamente ousada, que não circula por
falta de distribuição, e não necessariamente pela ausência de um “apelo
comercial”. Essa ideia mesmo do comercial merece um debate todo à parte, mas
vale lembrar que foi construída com base na maior indústria do cinema, em
questão, a norte-americana. Sob essa ótica, são comerciais, portanto, aqueles
filmes que se aproximam dessa estética de Hollywood.
Dito
isso, o filme poderia ser incrível, independente da abordagem equivocada dessa
parte da crítica de cinema a que me refiro.
Não
é o caso.
Bingo
– O Rei das Manhãs adentra nos bastidores da televisão brasileira dos anos 80
para contar a história da Arlindo Barreto – no filme, Augusto Rezende. Barreto
foi um dos intérpretes do palhaço Bozo, personagem de sucesso importado da
televisão norte-americana. O filme se propõe a retratar desde a vida familiar
do personagem, sua relação com filho e mãe (musa do cinema, interpretada por
Ana Lúcia Torre), até sua faceta sexo, drogas e rock and roll. Apesar da
comparação com O Lobo de Wall Street figurar entre alguns comentários sobre o
filme, a obra de Daniel Rezende está longe da intensidade alucinada do filme de
Martin Scorsese. Toda a safadeza e deboche prometidos no material de marketing
de Bingo e repercurtida pelo público aparece de forma muito tímida, com certa
vergonha. Em outros termos, pudor mesmo.
Quando
Bingo cheira pó, não sentimos sua excitação. Parece muito mais uma concessão,
algo da história que aconteceu e não poderia ser completamente negado. A câmera
padece de uma frigidez quase moralista, nesse sentido: sua vida boêmia parece
sem graça; suas orgias, sem tesão. Falta o pulso do ritmo de uma Thelma
Schoonmaker, de uma câmera que se excita junto. Mesmo que depois se emocione,
também filmando sua redenção. Ausência de compreensão de todo aquele universo,
na verdade. Se em O Lobo de Wall Street, pra dar coro à comparação, vemos
DiCaprio se sentindo um rei quando se droga, em Bingo não há a permissão para
um êxtase desse tipo. Quando Augusto cheira pó antes de entrar no programa, por
exemplo, isto se torna um sinal do cúmulo da decadência. Um grave pesado invade
a cena e o nariz do personagem sangra, imprimindo de imediato um julgamento de
valor, que não cabe ao diretor. Em outro momento, quando Augusto transa com
Gretchen nos bastidores de uma premiação da televisão, a cena é filmada
rapidamente com uma câmera por cima que se sai rapidamente do ato, pulando para
uma piadinha ruim, deflagrando uma aparente timidez.
Falta
no filme a malemolência, o gingado, que o próprio personagem defende para o programa
do Bozo. O deboche do personagem, definitivamente, não é o bastante para
sustentar Bingo, tampouco livrá-lo da caretice de seus realizadores.
Certamente, os melhores momentos da obra se devem a essa vertente escrachada do
personagem, alternando entre momentos de verdadeira inspiração e piadinhas
ingênuas. Quando Augusto decide improvisar ao vivo pela primeira vez, por
exemplo, podemos vislumbrar um potencial cômico no filme. Por outro lado, há
momentos permeados por um humor tacanho, como as piadinhas lugar-comum de
“perdidos na tradução”, feitas com o gringo produtor do programa – lembram um
pouco o humor de Guell Arraes, diga-se.
Infelizmente,
fica uma impressão de que o filme se entrega muito mais aos momentos
depressivos do que aos de energia, em que podemos ver uma potência se
insinuando, mas eclipsada por um dramão digno de novela – estética e
narrativamente. Não somente a fotografia de luz sombria de Avenida Brasil
confere esse tom a Bingo, mas, principalmente, a construção dramática mesmo das
cenas de peso. Muito do enfraquecimento dessas cenas se deve também a Vladimir
Britcha, que segura a onda no humor mas, definitivamente, não mantém o padrão
nas cenas de maior intensidade dramática. A cena em que Augusto não comparece
ao aniversário do filho, com um close crescente na veia temática do Bozo, não
poderia ser mais óbvia. Ou a crise ao assistir o programa do Bingo, a qual
resulta em um soco na televisão. Da mesma forma, o momento em que Augusto tenta
entrar na festa sem sua fantasia e maquiagem beiram o patético. Não porque a
situação em si seja ruim, mas por ser uma tecla batida no filme todo de maneira
incessante e carecer de um desenvolvimento maior para podermos sentir a fúria
do personagem. Rapidamente, a imprensa faz uma pergunta para Augusto, ele entra
em crise, sai da festa, tenta entrar de novo, não consegue. Tudo muito corrido
– sem ritmo nenhum, porém.
Corro
o risco de chover no molhado, mas ainda me impressiona as cinebiografias
padecerem dos mesmos defeitos. Será que, ao realizar uma cinebio, as pessoas
envolvidas não se dão ao trabalho de assistirem nenhum outro filme desse tipo?
Divagações a parte, talvez os maiores problemas de Bingo residam nesses vícios
do gênero. Desde a já comentada higienização da vida do artista (maneirar nas
cenas pesadas) até a correria ao tentar
abarcar coisas demais e não dar conta de resolver nenhuma dramaticamente.
Dentro desse arco clássico de ascensão e queda, não conseguimos nos empolgar o
suficiente com a ascensão, pois quando esse período da vida do personagem
começa, a queda já míngua toda a efervescência. Portanto, acabamos por não
lamentar tanto a queda, pois somos privados do êxtase da ascensão. Quando o
palhaço começa a fazer sucesso e a aproveitá-lo, já se inicia imediatamente sua
jornada ladeira abaixo. Uma cena bem didática para ilustrar isto é a dele
esfregando na cara dos diretores da emissora “Mundial” o ibope do seu programa,
atingindo o primeiro lugar nos piques de audiência. Uma cena que deveria ser de
muita euforia, porque representa literalmente o auge da carreira do personagem.
Porém, tal como filmada, ao modo de um filme de horror, torna-se um prelúdio
para o caos, um anúncio da decadência.
O
desfecho de Bingo coroa todo o pudor da obra de Daniel Rezende: arrependido,
depois de uma vida regada a sexo e drogas, Augusto se redime através da
religião e dos Alcoólicos Anônimos. Há quem diga: mas se trata de uma história
real, não poderia ser diferente. De fato, Arlindo Barreto se apresenta até hoje
em igrejas como palhaço. O meu problema é como Rezende filma isto, quase
emocionado com essa redenção: finalmente o personagem se livra do mundo das
drogas, feio e bobo, e encontra a felicidade nos palcos da igreja. Longe da
irônia final de O Lobo de Wall Street, por exemplo. É como se tudo fosse
filmado aguardando por esse final “catártico”, o arrebatamento final. Sem a
safadeza, tampouco a audácia, do programa de televisão no qual se baseou, Bingo
aparece como um produto fruto de seu tempo: moralista, puritano e careta.