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O mito da democracia racial e sua contribuição negativa para o campo político da esquerda

 

O mito da democracia racial e sua contribuição negativa para o campo político da esquerda. (FOTO/ Divulgação).

Maria Raiane Felix Bezerra[1]

 

A formação do Brasil veio por meio de muitas ruínas e extermínios de povos racializados, que por consequência da colonização europeia ocupa um lugar determinado a partir do racismo estrutural. Mas em Gilberto Freyre, podemos notar como o autor pensa a formação do Brasil, que segundo o referido, partiu de um equilíbrio de antagonismos onde permitiu que houvesse uma mistura entre as raças de forma “harmoniosa”. Freyre (2005) acredita que o colonizador português teve uma capacidade maior de “flexibilidade” do que os outros colonizadores, sendo o português “mais adaptável às situações” e por isso seria tranquilo para eles manterem relações com pessoas negras e indígenas. Isso para Freyre resultaria no “grande sucesso da colonização e da miscigenação brasileira” (Freyre, 2005).  

Freyre localiza a família patriarcal2e destaca-a em suma importância, pois afirma que por terem a “regalia da escravidão”, miscigenação e produção, tornava-os o grande domínio rural que foi responsável pela construção da mão de obra que sustentou a escravidão, que para Freyre foi fundamental para a formação do Brasil, deixando explicito o seu posicionamento que o problema do Brasil não era de cunho racial, e sim, econômico (FREYRE, 2005).  

É por meio desse desfecho do último parágrafo que daremos início a discussão a qual esse texto se propõe, que é demonstrar como a metodologia de Gilberto Freyre auxilia na escrita de autores politicamente de esquerda.

São muitos os autores contribuintes para a Sociologia brasileira e Florestan Fernandes é um deles. É considerado um grande nome do pensamento social brasileiro pelo seu desempenho com a escrita revolucionária e inovadora ao que se refere a ortodoxia marxista.

Fernandes (2017) em “o significado do protesto negro” vai nos alertar sobre os processos da falsa abolição e como isso foi o agravante para que a população racializada se mantivesse nas margens da sociedade. Segundo o autor, isso teria sido esquematizado pela elite branca que utilizou de seus interesses próprios para fazer tal situação. Os impactos sofridos por essas amarras coloniais e escravocratas fez com que houvesse um agravamento na divisão racial do trabalho e os negros e negras (es) sempre estariam em desvantagem.  

Em seu livro a população negra é tratada como a esperança revolucionária e isso vem por meio de um olhar externo daqueles que depositaram toda uma confiança em um povo que sofreu muito no processo de colonização. A tão mencionada Luta de Classes segundo Fernandes (2017) teria que estar lado a lado com as questões raciais para que finalmente pudesse haver uma revolução, coisa que não aconteceu de forma natural e que ainda está longe de se concretizar de fato, pois para além de estar lado a lado, é preciso que cada indivíduo compreenda o seu papel e responsabilidade na luta contra o racismo. 

O mito da democracia racial fez com que os movimentos negros lutassem muito para que essa falsa harmonia entre as raças deixasse de ser o condutor dessa situação agravante que fazia com que a escravização se perpetuasse de novas formas (FERNANDES, 2017). Estamos falando de uma perspectiva em que o mundo inteiro ainda pensa sobre o país cujo “harmoniosamente” vivem as raças (indígenas, europeus/brancos, negros e racializados). Trazer Florestan Fernandes para essa discussão é necessário para que possamos perceber em seu livro, que nas entrelinhas estava ali mais uma vez o movimento negro solitário, “nós por nós”, onde todos em volta depositavam suas esperanças, mas não se juntavam a luta contra a discriminação racial.  

Enquanto isso, vários movimentos sociais de maioria classista ortodoxa não compreendiam e não consideravam que todas as pessoas haviam de se responsabilizar pelo racismo e não apenas quem era atravessado por essa estrutura. É de se questionar e refletir, quando Fernandes é nomeado ou tratado como um militante “desobediente” em seu partido político por fugir dessa ótica de compreender o Brasil como um país não apenas com problemas econômicos, mas na sua dimensão racial.  

Essa coisa da “desobediência” em que o autor teve por ser de partido cujo marxismo era mais “ortodoxo”, apenas significa que o racismo não era tratado como prioridade, que as lutas raciais não faziam parte da agenda do partido político que ele fazia parte, ou seja, no Partido dos Trabalhadores (PT). É preciso que falemos das problemáticas disso, pois em um país cuja marca escravocrata ainda reina, todos devem se responsabilizar pela dívida impagável a qual acomete o racismo.  

Mesmo com alianças entre negros, indígenas, racializados e brancos o racismo estaria longe de acabar, pois os brancos como já vimos em Fernandes (2017), eram muito resistentes em assumir seus privilégios, não apenas de classes sociais, mas de raça considerada superior nessa sociedade. Assim como muitos intelectuais do pensamento social brasileiro, Florestan Fernandes em seus argumentos e produções de saberes acabou por reproduzir o Brasil em seus problemas com mais ênfase nas questões econômicas, colocando o fim do racismo apenas em uma descrição de um manual de como a militância negra deveria agir (FERNANDES, 2017).  

Não é surpreendente tal situação, até porque se formos fazer uma análise das obras  dos autores geralmente lidos na Sociologia Brasileira, notamos falhas que precisam ser  expostas, pois se a maioria dos autores da Sociologia Brasileira tratam as questões estruturais no Brasil a partir da compreensão econômica, sendo que muitos deles foram atuantes de partidos de esquerda e isso resulta em um retardamento das reconstruções das identidades, coisa que os movimentos negros, indígenas e outros vem buscando reverter à séculos.

Trago isso, pois o olhar estritamente materialista ortodoxo, fez de muitos intelectuais da Sociologia acabar por reproduzir frases como “discriminação social” (PRADO Jr. 1961) para se referir as pessoas com apenas a classificação de pobres e ricos, não levando em consideração as marcas deixadas pela colonização. O Brasil como bem menciona Lélia González (2019), é um país cujo amefricanização está em todos os lugares, pois somos ameríndios e amefricanos, no entanto, não há condições de descrever o Brasil sem esse dado.  

Muitos partidos políticos e outras organizações de movimentos sociais se fundamentam pela ótica marxista-leninista. O problema não está na dimensão de serem marxistas leninistas, mas na não abertura de novas interpretações e questões que muitas vezes não foram bem-vindas nessas organizações, como questões de gênero, raça, sexualidades e etc.  

Trago essa reflexão para que pensemos e lembremos que Florestan Fernandes foi do Partido dos Trabalhadores (PT) e como outros autores que também tiveram a vida atravessada pela organização partidária sofrem desse déficit. É inevitável não falar que o (PCB) foi o primeiro partido comunista no Brasil fundado em 1922 e que mesmo poucos anos após a falsa abolição de (1888) não teve a decência de tratar do racismo e da situação da população “semi livre” em suas trincheiras. O PT também não fica atrás, até porque foi fundado na década em  que se fazia cem anos da falsa abolição e que se não fosse pela militância negra do partido (JÚNIOR, 1987), nenhum debate e reflexão sobre a vida da população negra brasileira  teria acontecido e Lélia González nos lembra disso muito bem, pois denuncia o (PT) nos  anos oitenta por Racismo por Omissão, porque o partido em rede nacional de TV em sua  divulgação de programa partidário não falou da situação da população negra brasileira, e  González interpretou isso como excludente (GONZÁLEZ, 1983). 

O ponto crucial para pensarmos como a metodologia de Gilberto Freyre contribuiu para que autores como esses não despertassem seu interesse e responsabilidade com intensidade para com as pessoas racializadas desse país, vem para explanar o quanto o mito da democracia racial além de teoria, virou discurso que se tornou o brasão da sociedade brasileira, no quesito apagamento de identidades e qualquer marca de africanização/ameríndia (GONZÁLEZ, 2019).  

Incrível como o PT classificou Florestan Fernandes no lugar de “desobediência” por ele tentar observar novos elementos fora do que já estava ali posto dentro dos partidos.  Ouso em dizer que essas atitudes omissas dos partidos foram responsáveis também pela não valorização da identidade negra, indígena e de outros povos no Brasil, atrasando e deixando cada vez mais distante o encontro com a identidade/ancestralidade.  

Como já havia sinalizado nas minhas lutas diárias, que as formas de generalização que algumas organizações de base alemã se utilizam de exemplos externos como a revolução Russa em 1917 para comparar com a construção do Brasil e uma possível revolução brasileira, é superficial e problemática, porque não se trata de um país homogêneo, mas de um país pluricultural e multirracial. O problema das classes sociais existe em todos os países de ordem econômica capitalista e imperialista, mas apenas o recorte de classe não dá conta de toda uma multiplicidade de povos marcados pela racialização.  

Referências 

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural?. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018. 

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil / Sueli Carneiro: Selo Negro, 2011. 

FERNANDES, Florestan. Significado do Protesto Negro. São Paulo: Expressão Popular  / Fundação Perseu Abramo, 2017. 

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Global Editora, 2005. 

GONZALEZ, Lélia. Lélia por ela mesma. Epígrafe de abertura do texto “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros  estudos. Brasília: ANPOCS, 1983. 

GONZALEZ, Lélia. A Categoria Político-Cultural da Amefricanidade. In: Pensamento  Feminista –Conceitos Fundamentais. BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa (org.). Rio  de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, pp. 340-352. 

JÚNIOR, Hédio Silva. O PT e a questão racial: uma conversa que não pode ficar só entre negros – 1987. Boletim Nacional do PT, nº 27, maio de 1987, p. 04-05. Acervo: CSBH/FPA. 

PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1961.  Ler: Introdução, Sentido da Colonização e Vida Social.


[1] Cientista Social licenciada pela Universidade Regional do Cariri (URCA); Mestranda em Sociologia Pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); E-mail: raiane.bezerra@aluno.uece.br, membra do Grupo de Valorização do Cariri (GRUNEC); do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Gênero e Relações étnico-raciais (NEGRER)

2 Em sua obra cita a família patriarcal e a importância para a formação da sociedade brasileira que era chefiada pelo homem que dominava a parte rural e que não necessariamente tinha um caráter totalmente  privado, pois mantinha até proximidade com os escravizados que trabalhavam na casa grande, chegando  a serem considerados “filhos”, mas do modo político, econômico e social (FREYRE, 2005). 

Da abolição ao mito da ‘democracia racial’, clássico de Clóvis Moura retrata a relação da luta antirracista com a luta de classes

O negro: de bom escravo a mau cidadão? foi escrito por Clóvis Moura em 1977 . (FOTO/ Divulgação e Reprodução/Vermeho.org.)

Há 70 anos, Clóvis Moura (1925 – 2003) escrevia sobre questões que estão em pauta na atualidade. Nascido em Amarante, no Piauí, se tornou historiador, sociólogo, poeta, jornalista e, sobretudo, um grande intelectual de seu tempo. Envolvido na teoria de Marx, aprofundou-se nos estudos ligados à raça e às classes sociais nos tempos pós-abolição e deixou um notável legado ao movimento negro e a história do Brasil.

Uma parte deste material está no livro O Negro: De Bom Escravo a Mau Cidadão? (1977), reeditado este ano pela Dandara Editora, e tema de um curso promovido após o lançamento em agosto. Algumas vagas foram sorteadas entre os membros do Tamo Junto, programa de apoio à Ponte.

A obra é uma continuação do trabalho teórico do sociólogo em Rebeliões da Senzala: Quilombos, Insurreições, Guerrilhas (1959) e destrincha a situação da população negra na transição entre a Monarquia e a República brasileira e de que forma a estrutura racista da escravidão se perpetuou social e economicamente no país. Para contar esta história a partir de uma nova perspectiva, o autor divide seus estudos em três partes: da escravidão à marginalização, as lutas dos negos por emancipação na América Latina e a população negra como um grupo diferenciado de uma sociedade competitiva.

Clóvis Moura expõe as contradições do período pós-abolição, a partir de 1888, ao relatar em muitos dados estatísticos e pesquisas a condição desumana e de exploração na qual negros e negras se encontravam mesmo libertos, incluindo a falta de cidadania, auxílio e inclusão na sociedade, problemas que até hoje se refletem na marginalização dessa população. Com esta combinação, o desenvolvimento do Brasil, segundo o sociólogo, se apoiou em uma estrutura racista.

O autor também faz uma provocação no título da obra e indica que a história política e social, contada por brancos, reforçou um estereótipo racista sobre pessoas pretas, apagando suas lutas por resistência e por mobilidade social. Diante da repressão às culturas e religiões afrodescendentes, movimentos aconteceram em toda a América Latina e influenciaram no processo de independência das nações.

Todas estas reflexões propostas por Moura são objetos de estudo de pesquisadores como Gabriel Rocha, graduado em História, mestre em História Social e doutorando em História Econômica pela USP. Ele escreve o prefácio da nova edição do livro apontando a relevância dos estudos do sociólogo dentro e fora da academia, repertório ainda pouco conhecido por grande parte dos brasileiros.

Em entrevista à Ponte, Gabriel diz que só teve um contato maior com a obra quando tornou-se pesquisador, pois algumas publicações de Clóvis Moura só contaram com apenas uma edição. Ele também destaca os principais pontos da contribuição que o sociólogo deixou em seus 78 anos de vida.

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Com informações da Ponte Jornalismo. Leia a entrevista completa aqui.

“Nosso racismo é um crime perfeito”, diz antropólogo Kabengele Munanga em entrevista


O antropólogo Kabengele Munanga fala sobre o mito da democracia racial brasileira, a polêmica com Demétrio Magnoli e o papel da mídia e da educação no combate ao preconceito no país em entrevista cedida ao Portal Fórum.

Fórum – O senhor veio do antigo Zaire que, apesar de ter alguns pontos de contato com a cultura brasileira e a cultura do Congo, é um país bem diferente. O senhor sentiu, quando veio pra cá, a questão racial? Como foi essa mudança para o senhor?

Kabengele – Essas coisas não são tão abertas como a gente pensa. Cheguei aqui em 1975, diretamente para a USP, para fazer doutorado. Não se depara com o preconceito à primeira vista, logo que sai do aeroporto. Essas coisas vêm pouco a pouco, quando se começa a descobrir que você entra em alguns lugares e percebe que é único, que te olham e já sabem que não é daqui, que não é como “nossos negros”, é diferente. Poderia dizer que esse estranhamento é por ser estrangeiro, mas essa comparação na verdade é feita em relação aos negros da terra, que não entram em alguns lugares ou não entram de cabeça erguida.
Depois, com o tempo, na academia, fiz disciplinas em antropologia e alguns de meus professores eram especialistas na questão racial. Foi através da academia, da literatura, que comecei a descobrir que havia problemas no país. Uma das primeiras aulas que fiz foi em 1975, 1976, já era uma disciplina sobre a questão racial com meu orientador João Batista Borges Pereira. Depois, com o tempo, você vai entrar em algum lugar em que está sozinho e se pergunta: onde estão os outros? As pessoas olhavam mesmo, inclusive olhavam mais quando eu entrava com minha mulher e meus filhos. Porque é uma família inter-racial: a mulher branca, o homem negro, um filho negro e um filho mestiço. Em todos os lugares em que a gente entrava, era motivo de curiosidade. O pessoal tentava ser discreto, mas nem sempre escondia. Entrávamos em lugares onde geralmente os negros não entram.

A partir daí você começa a buscar uma explicação para saber o porquê e se aproxima da literatura e das aulas da universidade que falam da discriminação racial no Brasil, os trabalhos de Florestan Fernandes, do Otavio Ianni, do meu próprio orientador e de tantos outros que trabalharam com a questão. Mas o problema é que quando a pessoa é adulta sabe se defender, mas as crianças não. Tenho dois filhos que nasceram na Bélgica, dois no Congo e meu caçula é brasileiro. Quantas vezes, quando estavam sozinhos na rua, sem defesa, se depararam com a polícia?

Meus filhos estudaram em escola particular, Colégio Equipe, onde estudavam filhos de alguns colegas professores. Eu não ia buscá-los na escola, e quando saíam para tomar ônibus e voltar para casa com alguns colegas que eram brancos, eles eram os únicos a ser revistados. No entanto, a condição social era a mesma e estudavam no mesmo colégio. Por que só eles podiam ser suspeitos e revistados pela polícia? Essa situação eu não posso contar quantas vezes vi acontecer. Lembro que meu filho mais velho, que hoje é ator, quando comprou o primeiro carro dele, não sei quantas vezes ele foi parado pela polícia. Sempre apontando a arma para ele para mostrar o documento. Ele foi instruído para não discutir e dizer que os documentos estão no porta-luvas, senão podem pensar que ele vai sacar uma arma. Na realidade, era suspeito de ser ladrão do próprio carro que ele comprou com o trabalho dele. Meus filhos até hoje não saem de casa para atravessar a rua sem documento. São adultos e criaram esse hábito, porque até você provar que não é ladrão… A geografia do seu corpo não indica isso.

Então, essa coisa de pensar que a diferença é simplesmente social, é claro que o social acompanha, mas e a geografia do corpo? Isso aqui também vai junto com o social, não tem como separar as duas coisas. Fui com o tempo respondendo à questão, por meio da vivência, com o cotidiano e as coisas que aprendi na universidade, depoimentos de pessoas da população negra, e entendi que a democracia racial é um mito. Existe realmente um racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado na África do Sul durante o regime do apartheid, diferente também do racismo praticado nos EUA, principalmente no Sul. Porque nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto. Faz vítimas de qualquer maneira.

Revista Fórum – Quando você tem um sistema como o sul-africano ou um sistema de restrição de direitos como houve nos EUA, o inimigo está claro. No caso brasileiro é mais difícil combatê-lo…

Kabengele – Claro, é mais difícil. Porque você não identifica seu opressor. Nos EUA era mais fácil porque começava pelas leis. A primeira reivindicação: o fim das leis racistas. Depois, se luta para implementar políticas públicas que busquem a promoção da igualdade racial. Aqui é mais difícil, porque não tinha lei nem pra discriminar, nem pra proteger. As leis pra proteger estão na nova Constituição que diz que o racismo é um crime inafiançável. Antes disso tinha a lei Afonso Arinos, de 1951. De acordo com essa lei, a prática do racismo não era um crime, era uma contravenção. A população negra e indígena viveu muito tempo sem leis nem para discriminar nem para proteger.

Revista Fórum – Aqui no Brasil há mais dificuldade com relação ao sistema de cotas justamente por conta do mito da democracia racial?

Kabengele – Tem segmentos da população a favor e contra. Começaria pelos que estão contra as cotas, que apelam para a própria Constituição, afirmando que perante a lei somos todos iguais. Então não devemos tratar os cidadãos brasileiros diferentemente, as cotas seriam uma inconstitucionalidade. Outro argumento contrário, que já foi demolido, é a ideia de que seria difícil distinguir os negros no Brasil para se beneficiar pelas cotas por causa da mestiçagem. O Brasil é um país de mestiçagem, muitos brasileiros têm sangue europeu, além de sangue indígena e africano, então seria difícil saber quem é afro-descendente que poderia ser beneficiado pela cota. Esse argumento não resistiu. Por quê? Num país onde existe discriminação antinegro, a própria discriminação é a prova de que é possível identificar os negros. Senão não teria discriminação.

Em comparação com outros países do mundo, o Brasil é um país que tem um índice de mestiçamento muito mais alto. Mas isso não pode impedir uma política, porque basta a autodeclaração. Basta um candidato declarar sua afro-descendência. Se tiver alguma dúvida, tem que averiguar. Nos casos-limite, o indivíduo se autodeclara afrodescendente. Às vezes, tem erros humanos, como o que aconteceu na UnB, de dois jovens mestiços, de mesmos pais, um entrou pelas cotas porque acharam que era mestiço, e o outro foi barrado porque acharam que era branco. Isso são erros humanos. Se tivessem certeza absoluta que era afro-descendente, não seria assim. Mas houve um recurso e ele entrou. Esses casos-limite existem, mas não é isso que vai impedir uma política pública que possa beneficiar uma grande parte da população brasileira.

Além do mais, o critério de cota no Brasil é diferente dos EUA. Nos EUA, começaram com um critério fixo e nato. Basta você nascer negro. No Brasil não. Se a gente analisar a história, com exceção da UnB, que tem suas razões, em todas as universidades brasileiras que entraram pelo critério das cotas, usaram o critério étnico-racial combinado com o critério econômico. O ponto de partida é a escola pública. Nos EUA não foi isso. Só que a imprensa não quer enxergar, todo mundo quer dizer que cota é simplesmente racial. Não é. Isso é mentira, tem que ver como funciona em todas as universidades. É necessário fazer um certo controle, senão não adianta aplicar as cotas. No entanto, se mantém a ideia de que, pelas pesquisas quantitativas, do IBGE, do Ipea, dos índices do Pnud, mostram que o abismo em matéria de educação entre negros e brancos é muito grande. Se a gente considerar isso então tem que ter uma política de mudança. É nesse sentido que se defende uma política de cotas.

O racismo é cotidiano na sociedade brasileira. As pessoas que estão contra cotas pensam como se o racismo não tivesse existido na sociedade, não estivesse criando vítimas. Se alguém comprovar que não tem mais racismo no Brasil, não devemos mais falar em cotas para negros. Deveríamos falar só de classes sociais. Mas como o racismo ainda existe, então não há como você tratar igualmente as pessoas que são vítimas de racismo e da questão econômica em relação àquelas que não sofrem esse tipo de preconceito. A própria pesquisa do IPEA mostra que se não mudar esse quadro, os negros vão levar muitos e muitos anos para chegar aonde estão os brancos em matéria de educação. Os que são contra cotas ainda dão o argumento de que qualquer política de diferença por parte do governo no Brasil seria uma política de reconhecimento das raças e isso seria um retrocesso, que teríamos conflitos, como os que aconteciam nos EUA.

Antropólogo Kabengele Munanga. Foto: TV Brasil


Fórum – Que é o argumento do Demétrio Magnoli.

Kabengele – Isso é muito falso, porque já temos a experiência, alguns falam de mais de 70 universidades públicas, outros falam em 80. Já ouviu falar de conflitos raciais em algum lugar, linchamentos raciais? Não existe. É claro que houve manifestações numa universidade ou outra, umas pichações, “negro, volta pra senzala”. Mas isso não se caracteriza como conflito racial. Isso é uma maneira de horrorizar a população, projetar conflitos que na realidade não vão existir.

Fórum – Agora o DEM entrou com uma ação no STF pedindo anulação das cotas. O que motiva um partido como o DEM, qual a conexão entre a ideologia de um partido ou um intelectual como o Magnoli e essa oposição ao sistema de cotas? Qual é a raiz dessa resistência?

Kabengele – Tenho a impressão que as posições ideológicas não são explícitas, são implícitas. A questão das cotas é uma questão política. Tem pessoas no Brasil que ainda acreditam que não há racismo no país. E o argumento desse deputado do DEM é esse, de que não há racismo no Brasil, que a questão é simplesmente socioeconômica. É um ponto de vista refutável, porque nós temos provas de que há racismo no Brasil no cotidiano. O que essas pessoas querem? Status quo. A ideia de que o Brasil vive muito bem, não há problema com ele, que o problema é só com os pobres, que não podemos introduzir as cotas porque seria introduzir uma discriminação contra os brancos e pobres. Mas eles ignoram que os brancos e pobres também são beneficiados pelas cotas, e eles negam esse argumento automaticamente, deixam isso de lado.

Fórum – Mas isso não é um cinismo de parte desses atores políticos, já que eles são contra o sistema de cotas, mas também são contra o Bolsa-Família ou qualquer tipo de política compensatória no campo socioeconômico?

Kabengele – É interessante, porque um país que tem problemas sociais do tamanho do Brasil deveria buscar caminhos de mudança, de transformação da sociedade. Cada vez que se toca nas políticas concretas de mudança, vem um discurso. Mas você não resolve os problemas sociais somente com a retórica. Quanto tempo se fala da qualidade da escola pública? Estou aqui no Brasil há 34 anos. Desde que cheguei aqui, a escola pública mudou em algum lugar? Não, mas o discurso continua. “Ah, é só mudar a escola pública.” Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos na escola particular e sabem que a escola pública é ruim. Poderiam eles, como autoridades, dar melhor exemplo e colocar os filhos deles em escola pública e lutar pelas leis, bom salário para os educadores, laboratórios, segurança. Mas a coisa só fica no nível da retórica.

E tem esse argumento legalista, “porque a cota é uma inconstitucionalidade, porque não há racismo no Brasil”. Há juristas que dizem que a igualdade da qual fala a Constituição é uma igualdade formal, mas tem a igualdade material. É essa igualdade material que é visada pelas políticas de ação afirmativa. Não basta dizer que somos todos iguais. Isso é importante, mas você tem que dar os meios e isso se faz com as políticas públicas. Muitos disseram que as cotas nas universidades iriam atingir a excelência universitária. Está comprovado que os alunos cotistas tiveram um rendimento igual ou superior aos outros. Então a excelência não foi prejudicada. Aliás, é curioso falar de mérito como se nosso vestibular fosse exemplo de democracia e de mérito. Mérito significa simplesmente que você coloca como ponto de partida as pessoas no mesmo nível.

Quando as pessoas não são iguais, não se pode colocar no ponto de partida para concorrer igualmente. É como você pegar uma pessoa com um fusquinha e outro com um Mercedes, colocar na mesma linha de partida e ver qual o carro mais veloz. O aluno que vem da escola pública, da periferia, de péssima qualidade, e o aluno que vem de escola particular de boa qualidade, partindo do mesmo ponto, é claro que os que vêm de uma boa escola vão ter uma nota superior. Se um aluno que vem de um Pueri Domus, Liceu Pasteur, tira nota 8, esse que vem da periferia e tirou nota 5 teve uma caminhada muito longa. Essa nota 5 pode ser mais significativa do que a nota 7 ou 8. Dando oportunidade ao aluno, ele não vai decepcionar.

Foi isso que aconteceu, deram oportunidade. As cotas são aplicadas desde 2003. Nestes sete anos, quantos jovens beneficiados pelas cotas terminaram o curso universitário e quantos anos o Brasil levaria para formar o tanto de negros sem cotas? Talvez 20 ou mais. Isso são coisas concretas para as quais as pessoas fecham os olhos. No artigo do professor Demétrio Magnoli, ele me critica, mas não leu nada. Nem uma linha de meus livros. Simplesmente pegou o livro da Eneida de Almeida dos Santos, Mulato, negro não-negro e branco não-branco que pediu para eu fazer uma introdução, e desta introdução de três páginas ele tirou algumas frases e, a partir dessas frases, me acusa de ser um charlatão acadêmico, de professar o racismo científico abandonado há mais de um século e fazer parte de um projeto de racialização oficial do Brasil. Nunca leu nada do que eu escrevi.

A autora do livro é mestiça, psiquiatra e estuda a dificuldade que os mestiços entre branco e negro têm pra construir a sua identidade. Fiz a introdução mostrando que eles têm essa dificuldade justamente por causa de serem negros não-negros e brancos não-brancos. Isso prejudica o processo, mas no plano político, jurídico, eles não podem ficar ambivalentes. Eles têm que optar por uma identidade, têm que aceitar sua negritude, e não rejeitá-la. Com isso ele acha que eu estou professando a supressão dos mestiços no Brasil e que isso faz parte do projeto de racialização do brasileiro. Não tinha nada para me acusar, soube que estou defendendo as cotas, tirou três frases e fez a acusação dele no jornal.

Fórum – O senhor toca na questão do imaginário da democracia racial, mas as pessoas são formadas para aceitarem esse mito…

Kabengele – O racismo é uma ideologia. A ideologia só pode ser reproduzida se as próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa ideologia. Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que discriminam e acham que são superiores aos outros, que têm direito de ocupar os melhores lugares na sociedade. Se não reunir essas duas condições, o racismo não pode ser reproduzido como ideologia, mas toda educação que nós recebemos é para poder reproduzi-la.

Há negros que introduziram isso, que alienaram sua humanidade, que acham que são mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar os postos de comando. Como também tem os brancos que introjetaram isso e acham mesmo que são superiores por natureza. Mas para você lutar contra essa ideia não bastam as leis, que são repressivas, só vão punir. Tem que educar também. A educação é um instrumento muito importante de mudança de mentalidade e o brasileiro foi educado para não assumir seus preconceitos. O Florestan Fernandes dizia que um dos problemas dos brasileiros é o “preconceito de ter preconceito de ter preconceito”. O brasileiro nunca vai aceitar que é preconceituoso. Foi educado para não aceitar isso. Como se diz, na casa de enforcado não se fala de corda.

Quando você está diante do negro, dizem que tem que dizer que é moreno, porque se disser que é negro, ele vai se sentir ofendido. O que não quer dizer que ele não deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que é negro, não precisa branqueá-lo, torná-lo moreno. O brasileiro foi educado para se comportar assim, para não falar de corda na casa de enforcado. Quando você pega um brasileiro em flagrante de prática racista, ele não aceita, porque não foi educado para isso. Se fosse um americano, ele vai dizer: “Não vou alugar minha casa para um negro”. No Brasil, vai dizer: “Olha, amigo, você chegou tarde, acabei de alugar”. Porque a educação que o americano recebeu é pra assumir suas práticas racistas, pra ser uma coisa explícita.

Quando a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em 1995, perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de 80% disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: “você já discriminou alguém?”. A maioria disse que não. Significa que há racismo, mas sem racistas. Ele está no ar… Como você vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage: “você que é complexado, o problema está na sua cabeça”. Ele rejeita a culpa e coloca na própria vítima. Já ouviu falar de crime perfeito? Nosso racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é que é responsável pelo seu racismo, quem comentou não tem nenhum problema.

Revista Fórum – O humorista Danilo Gentilli escreveu no Twitter uma piada a respeito do King Kong, comparando com um jogador de futebol que saía com loiras. Houve uma reação grande e a continuação dos argumentos dele para se justificar vai ao encontro disso que o senhor está falando. Ele dizia que racista era quem acusava ele, e citava a questão do orgulho negro como algo de quem é racista.

Kabengele – Faz parte desse imaginário. O que está por trás dessa ilustração de King Kong, que ele compara a um jogador de futebol que vai casar com uma loira, é a ideia de alguém que ascende na vida e vai procurar sua loira. Mas qual é o problema desse jogador de futebol? São pessoas vítimas do racismo que acham que agora ascenderam na vida e, para mostrar isso, têm que ter uma loira que era proibida quando eram pobres? Pode até ser uma explicação. Mas essa loira não é uma pessoa humana que pode dizer não ou sim e foi obrigada a ir com o King Kong por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos não são por dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia só se casa dentro da velha burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da sociedade.

Essas jovens brancas, loiras, também pulam a cerca de suas identidades pra casar com um negro jogador. Por que a corda só arrebenta do lado do jogador de futebol? No fundo, essas pessoas não querem que os negros casem com suas filhas. É uma forma de racismo. Estão praticando um preconceito que não respeita a vontade dessas mulheres nem essas pessoas que ascenderam na vida, numa sociedade onde o amor é algo sem fronteiras, e não teria tantos mestiços nessa sociedade. Com tudo o que aconteceu no campo de futebol com aquele jogador da Argentina que chamou o Grafite de macaco, com tudo o que acontece na Europa, esse humorista faz uma ilustração disso, ou é uma provocação ou quer reafirmar os preconceitos na nossa sociedade.

Fórum – É que no caso, o Danilo Gentili ainda justificou sua piada com um argumento muito simplório: “por que eu posso chamar um gordo de baleia e um negro de macaco”, como se fosse a mesma coisa.

Kabengele – É interessante isso, porque tenho a impressão de que é um cara que não conhece a história e o orgulho negro tem uma história. São seres humanos que, pelo próprio processo de colonização, de escravidão, a essas pessoas foi negada sua humanidade. Para poder se recuperar, ele tem que assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar bonito ou se achar feio. É isso o orgulho negro. E faz parte do processo de se assumir como negro, assumir seu corpo que foi recusado. Se o humorista conhecesse isso, entenderia a história do orgulho negro. O branco não tem motivo para ter orgulho branco porque ele é vitorioso, está lá em cima. O outro que está lá em baixo que deve ter orgulho, que deve construir esse orgulho para poder se reerguer.

Fórum – O senhor tocou no caso do Grafite com o Desábato, e recentemente tivemos, no jogo da Libertadores entre Cruzeiro e Grêmio, o caso de um jogador que teria sido chamado de macaco por outro atleta. Em geral, as pessoas – jornalistas que comentaram, a diretoria gremista – argumentavam que no campo de futebol você pode falar qualquer coisa, e que se as pessoas fossem se importar com isso, não teria como ter jogo de futebol. Como você vê esse tipo de situação?

Kabengele – Isso é uma prova daquilo que falei, os brasileiros são educados para não assumir seus hábitos, seu racismo. Em outros países, não teria essa conversa de que no campo de futebol vale. O pessoal pune mesmo. Mas aqui, quando se trata do negro… Já ouviu caso contrário, de negro que chama branco de macaco? Quando aquele delegado prendeu o jogador argentino no caso do Grafite, todo mundo caiu em cima. Os técnicos, jornalistas, esportistas, todo mundo dizendo que é assim no futebol. Então a gente não pode educar o jogador de futebol, tudo é permitido? Quando há violência física, eles são punidos, mas isso aqui é uma violência também, uma violência simbólica. Por que a violência simbólica é aceita a violência física é punida?

Fórum – Como o senhor vê hoje a aplicação da lei que determina a obrigatoriedade do ensino de cultura africana nas escolas? Os professores, de um modo geral, estão preparados para lidar com a questão racial?

Kabengele – Essa lei já foi objeto de crítica das pessoas que acham que isso também seria uma racialização do Brasil. Pessoas que acham que, sendo a população brasileira uma população mestiça, não é preciso ensinar a cultura do negro, ensinar a história do negro ou da África. Temos uma única história, uma única cultura, que é uma cultura mestiça. Tem pessoas que vão nessa direção, pensam que isso é uma racialização da educação no Brasil.

Mas essa questão do ensino da diversidade na escola não é propriedade do Brasil. Todos os países do mundo lidam com a questão da diversidade, do ensino da diversidade na escola, até os que não foram colonizadores, os nórdicos, com a vinda dos imigrantes, estão tratando da questão da diversidade na escola.

O Brasil deveria tratar dessa questão com mais força, porque é um país que nasceu do encontro das culturas, das civilizações. Os europeus chegaram, a população indígena – dona da terra – os africanos, depois a última onda imigratória é dos asiáticos. Então tudo isso faz parte das raízes formadoras do Brasil que devem fazer parte da formação do cidadão. Ora, se a gente olhar nosso sistema educativo, percebemos que a história do negro, da África, das populações indígenas não fazia parte da educação do brasileiro.

Nosso modelo de educação é eurocêntrico. Do ponto de vista da historiografia oficial, os portugueses chegaram na África, encontraram os africanos vendendo seus filhos, compraram e levaram para o Brasil. Não foi isso que aconteceu. A história da escravidão é uma história da violência. Quando se fala de contribuições, nunca se fala da África. Se se introduzir a história do outro de uma maneira positiva, isso ajuda.

É por isso que a educação, a introdução da história dele no Brasil, faz parte desse processo de construção do orgulho negro. Ele tem que saber que foi trazido e aqui contribuiu com o seu trabalho, trabalho escravizado, para construir as bases da economia colonial brasileira. Além do mais, houve a resistência, o negro não era um João-Bobo que simplesmente aceitou, senão a gente não teria rebeliões das senzalas, o Quilombo dos Palmares, que durou quase um século. São provas de resistência e de defesa da dignidade humana. São essas coisas que devem ser ensinadas. Isso faz parte do patrimônio histórico de todos os brasileiros. O branco e o negro têm que conhecer essa história porque é aí que vão poder respeitar os outros.

Voltando a sua pergunta, as dificuldades são de duas ordens. Em primeiro lugar, os educadores não têm formação para ensinar a diversidade. Estudaram em escolas de educação eurocêntrica, onde não se ensinava a história do negro, não estudaram história da África, como vão passar isso aos alunos? Além do mais, a África é um continente, com centenas de culturas e civilizações. São 54 países oficialmente. A primeira coisa é formar os educadores, orientar por onde começou a cultura negra no Brasil, por onde começa essa história. Depois dessa formação, com certo conteúdo, material didático de boa qualidade, que nada tem a ver com a historiografia oficial, o processo pode funcionar.

Fórum – Outra questão que se discute é sobre o negro nos espaços de poder. Não se veem negros como prefeitos, governadores. Como trabalhar contra isso?

Kabengele – O que é um país democrático? Um país democrático, no meu ponto de vista, é um país que reflete a sua diversidade na estrutura de poder. Nela, você vê mulheres ocupando cargos de responsabilidade, no Executivo, no Legislativo, no Judiciário, assim como no setor privado. E ainda os índios, que são os grandes discriminados pela sociedade. Isso seria um país democrático. O fato de você olhar a estrutura de poder e ver poucos negros ou quase não ver negros, não ver mulheres, não ver índios, isso significa que há alguma coisa que não foi feita nesse país. Como construção da democracia, a representatividade da diversidade não existe na estrutura de poder. Por quê?

Se você fizer um levantamento no campo jurídico, quantos desembargadores e juízes negros têm na sociedade brasileira? Se você for pras universidades públicas, quantos professores negros tem, começando por minha própria universidade? Esta universidade tem cerca de 5 mil professores. Quantos professores negros tem na USP? Nessa grande faculdade, que é a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), uma das maiores da USP junto com a Politécnica, tenho certeza de que na minha faculdade fui o primeiro negro a entrar como professor. Desde que entrei no Departamento de Antropologia, não entrou outro. Daqui três anos vou me aposentar. O professor Milton Santos, que era um grande professor, quase Nobel da Geografia, entrou no departamento, veio do exterior e eu já estava aqui. Em toda a USP, não sou capaz de passar de dez pessoas conhecidas. Pode ter mais, mas não chega a 50, exagerando. Se você for para as grandes universidades americanas, Harvard, Princeton, Standford, você vai encontrar mais negros professores do que no Brasil. Lá eles são mais racistas, ou eram mais racistas, mas como explicar tudo isso?

120 anos de abolição. Por que não houve uma certa mobilidade social para os negros chegarem lá? Há duas explicações: ou você diz que ele é geneticamente menos inteligente, o que seria uma explicação racista, ou encontra explicação na sociedade. Quer dizer que se bloqueou a sua mobilidade. E isso passa por questão de preconceito, de discriminação racial. Não há como explicar isso. Se você entender que os imigrantes japoneses chegaram, nós comemoramos 100 anos recentemente da sua vinda, eles tiveram uma certa mobilidade. Os coreanos também ocupam um lugar na sociedade. Mas os negros já estão a 120 anos da abolição. Então tem uma explicação. Daí a necessidade de se mudar o quadro. Ou nós mantemos o quadro, porque se não mudamos estamos racializando o Brasil, ou a gente mantém a situação para mostrar que não somos racistas. Porque a explicação é essa, se mexer, somos racistas e estamos racializando. Então vamos deixar as coisas do jeito que estão. Esse é o dilema da sociedade.

Revista Fórum – como o senhor vê o tratamento dado pela mídia à questão racial?

Kabengele – A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse discurso do mito da democracia racial é um discurso também que é absorvido por alguns membros da imprensa. Acho que há uma certa tendência na imprensa pelo fato de ser contra as políticas de ação afirmativa, sendo que também não são muito favoráveis a essa questão da obrigatoriedade do ensino da história do negro na escola.

Houve, no mês passado, a II Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Silêncio completo da imprensa brasileira. Não houve matérias sobre isso. Os grandes jornais da imprensa escrita não pautaram isso. O silêncio faz parte do dispositivo do racismo brasileiro. Como disse Elie Wiesel, o carrasco mata sempre duas vezes. A segunda mata pelo silêncio. O silêncio é uma maneira de você matar a consciência de um povo. Porque se falar sobre isso abertamente, as pessoas vão buscar saber, se conscientizar, mas se ficar no silêncio a coisa morre por aí. Então acho que o silêncio da imprensa, no meu ponto de vista, passa por essa estratégia, é o não-dito.


Acabei de passar por uma experiência interessante. Saí da Conferência Nacional e fui para Barcelona, convidado por um grupo de brasileiros que pratica capoeira. Claro, receberam recursos do Ministério das Relações Exteriores, que pagou minha passagem e a estadia. Era uma reunião pequena de capoeiristas e fiz uma conferência sobre a cultura negra no Brasil. Saiu no El Pais, que é o jornal mais importante da Espanha, noticiou isso, uma coisa pequena. Uma conferência nacional deste tamanho aqui não se fala. É um contrassenso. O silêncio da imprensa não é um silêncio neutro, é um silêncio que indica uma certa orientação da questão racial. Tem que não dizer muita coisa e ficar calado. Amanhã não se fala mais, acabou.

11 motivos pra desacreditar no mito da democracia racial



Novembro: o mês em que muita gente mal informada, com preguiça de pensar e ausente de empatia vai compartilhar uma enxurrada de conteúdo questionável sobre a consciência negra, ou melhor, humana. Porque somos todos iguais, só que não.

Imagem: Brasil 247
É fato que as pessoas negras, nos últimos anos, estão mais conscientes dos seus direitos. Quem é militante se sente cada vez mais empoderado. E vem, mesmo que não tão rápido quanto deveria, conquistando voz e espaço. E por esse motivo, é inaceitável aceitar a mentira propagada na sociedade de que não existe mais preconceito racial. Como brilhantemente disse Gabriel, o Pensador: o racismo é burrice, mas o mais burro não é o racista. É o que pensa que o racismo não existe.

O dia 20 está próximo. Nada mais apropriado então, do que elencar onze motivos pelos quais sim, é necessário não somente um dia, mas muita conscientização e reflexão a respeito do tema. Pois a escravidão acabou, mas o estigma permanece.

1 - A disparidade no mercado de trabalho: quase não vemos negros trabalhando em eventos e lojas de grife. Em contrapartida, em funções de baixa instrução eles são maioria. Por trás de requisitos como boa aparência (no qual os recrutadores estabelecem um tipo de corpo, cabelo e cor dos olhos, por exemplo) existe um preconceito mascarado;

2 - As mulheres negras estão mais propícias ao celibato involuntário (vulgo solteirice). Nossa cultura machista as coloca como frutas exóticas para mera apreciação. São objetificadas e animalizadas. Elas são as mulheres pra comer, mas as pra casar são as que possuem traços eurocêntricos. E pra piorar, muitos homens negros, ao ascenderem socialmente, optam por parceiras de pele mais clara. A quantidade de jogadores de futebol casados com mulheres loiras é um bom exemplo disso. É como se a mulher fosse um troféu e uma forma de se afirmar socialmente, principalmente no meio elitizado;

3 - A falta de representação na mídia: quase não se vê personagens negros na TV (jornais, novelas, séries e afins). E quando há, geralmente ocupam papéis de empregadas, trabalhadores braçais ou personagens caricatos. Crianças crescem sem nenhum modelo de representatividade que possam admirar, o que afeta diretamente a autoestima delas;

4 - Somos minoria nos espaços públicos, principalmente os “elitizados”: a não ser em cargos em que estamos pura e simplesmente servindo os outros, é perceptível a quase ausência de negros em shoppings, restaurantes mais caros e baladas em geral. E as pessoas estão acostumadas com essa invisibilidade. Quase ninguém olha em volta e se questiona: aqui não tem preto, pô! Apesar de sermos mais de 50% da população do país, a maioria de nós não tem condições financeiras e acesso a lazer e entretenimento;

5 - Humor opressor e babaca: com a onda do “politicamente incorreto”, todas as minorias passaram a ser alvo de piadas discriminatórias. E claro, os negros não poderiam ficar de fora dessa. Mais de uma vez houve casos de humoristas humilharem e constrangerem negros na Internet. Pior que isso: alguns deles se submetem a um papel ridículo e contam piadas que ofendem seus semelhantes, reforçando estereótipos;

6 - As ações afirmativas são motivo de chacota por grande parte da população: algumas dessas ações, como por exemplo, as cotas raciais e sociais em universidades, têm como objetivo reduzir o abismo existente entre o negro pobre e a instituição. O que muita gente não entende é que isso não é privilégio, mas sim uma forma de ampliar o acesso a quem sequer tinha perspectiva de melhoria social. A educação superior ainda é elitista e tem muito a melhorar. Menos de 3% dos formandos em Medicina são negros, e ainda há pessoas que acham que queremos roubar a vaga de alguém;

7 - Somos desrespeitados como consumidores: quem aqui é negro e nunca foi maltratado, seguido num shopping ou deixou de ser atendido por vendedores em lojas levante a mão. O negro, lamentavelmente, é associado à pobreza, ao roubo, à falta de condições. Certa vez, fui a uma loja de sapatos mais cara e fui totalmente ignorada pelas vendedoras, enquanto as outras pessoas que chegavam eram prontamente atendidas. Precisei chamar o gerente para que ele pedisse a uma das vendedoras que cumprisse o seu ofício. Nem preciso dizer o quão péssimo foi esse atendimento;

8 - Somos as maiores vítimas de violência policial: é perceptível que pessoas negras são abordadas com muito mais freqüência do que as brancas em revistas policiais, e morta duas vezes mais que elas. São os primeiros suspeitos, julgados por suas roupas e por sua cor. A população carcerária negra no Brasil é em torno de 66%, e a maioria dos presos não concluiu o ensino fundamental.

9 - Temos inúmeros problemas de autoimagem: desde cedo somos condicionados a achar que existe algo errado conosco, e que temos que corrigir através da automutilação. Nossos cabelos (apelidados de ruins, duros) são submetidos a químicas degradantes e algumas até cancerígenas, nossa pele é “clareada”, as mulheres se maquiam de modo a disfarçar seus traços naturais e torná-los mais “finos” (leia-se: como os de uma pessoa branca), dentre outros muitos exemplos de violência à nossa naturalidade. Tudo para se equiparar a um modelo eurocêntrico de beleza. E muitas vezes essa busca pela perfeição semelhante à da beleza branca traz inúmeros prejuízos emocionais aos negros;

10 - Somos 71,6% do número de analfabetos do país: além desse dado, a evasão escolar é muito maior entre crianças e jovens pretos. Por causa da pobreza, grande parte deles precisa trabalhar para ajudar no sustento da casa. Quando o trabalho é excessivamente extenuante, ininterrupto, com carga horária abusiva (normalmente em funções operacionais, como limpeza, jardinagem ou outros serviços pesados), muitos não resistem e abandonam a escola;

11 - Religiões de matriz africana são grandes alvos de intolerância religiosa: Esse problema, a meu ver, seria amenizado se houvesse uma melhoria na educação. A lei 10.639/03 estabelece que deve ser ensinada nas escolas temas ligados à cultura Afro-Brasileira, incluindo as religiões. Como não prática isso não acontece e a ignorância das pessoas não têm limites, praticantes são demonizados e vistos como perigosos, o que resulta em muitas ações violentas;

Existem inúmeros outros motivos que comprovam o quão presente é o racismo é na nossa sociedade, mas citar todos tornaria o texto muito longo, ou até mesmo um livro. É inconcebível que mesmo sendo a segunda população negra do mundo – o que prova que de “minoria” não temos nada – ainda sejamos tão subjugados como se fôssemos inferiores aos demais.

Enquanto formos estereotipados e associados unicamente a samba, pagode, sexo fácil, bandidagem, ignorância e falta de instrução o cenário não mudará. A luta é longa. E a representatividade e o respeito são imprescindíveis.

Pra encerrar, cito uma frase que li na Internet, de autoria desconhecida, porém muito válida para esse momento: “TODA CONSCIÊNCIA SERÁ NECESSÁRIA, ENQUANTO A CONSCIÊNCIA HUMANA FOR PRECONCEITUOSA E RACISTA”.