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Microfísica do Poder – obra de Michel Foucault


Nicolau Neto com exemplar do livro Microfísica do Poder. 


A obra Microfísica do Poder se configura com uma coleção de vários artigos, entrevistas, debates e cursos, do filósofo francês Michel Foucault na década de 70 do século passado, e organizado pelo filósofo e professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Foucault, Deleuze e um diálogo para recordar


Em conversa com Deleuze, Foucault dizia (o que já havia dito em seus livros anteriores, sobretudo em “A defesa da sociedade”) que as lutas antijudiciárias provêm sob o ódio que o povo tem da justiça, das prisões e, portanto, não são contra as injustiças, mas contra o poder. Isso Deleuze viria a completar, com relação à circulação nos jornais, dizendo que o que se encontra na realidade, por exemplo, dentro de uma escola ou de uma prisão, é muito diferente do conteúdo da informação midiática circulante em sua grande parte.

Por Iana Pires*, no Algo Interessante

Hoje notamos um impacto no discurso das pessoas, com destaque para as da classe média, que o inscreve num posicionamento que, como desde há meses, defende a redução da maioridade penal, o apoio a atitudes antidemocráticas, como impeachment da presidente Dilma ou a comportamentos fascistas da polícia militar, entre outros. Desse impacto, as mídias se fazem valer manobrando as deficiências e a falta de clareza da população com relação aos manejos de poder.

De modo mais primitivo, não há clareza sobre a exploração imanente ao sistema capitalista, porque este é o sistema do não-dito, apesar de sabermos quem são as empresas que mais lucram e quem são essas mãos que recebem os lucros. O jogo de poder é difuso, escondido, por isso o discurso das lutas se opõe ao segredo e este é difícil de escavar. Então, o que ocorre com as pessoas que não têm tanto interesse no poder, mas o seguem, o agarram com força e mendigam uma parcela dele? Talvez porque exista o desejo de investimento, nascido do sistema e também alimentado por ele, o que justifica que a população desejou o fascismo em algum momento. Assim, as pessoas conduzidas pelo desejo que modela o poder, e que investem nesse desejo, no sentido econômico, se permitem de maneira confortável ser manejadas pelas mídias amigas do sistema. Essas mídias, por sua vez, também produzem informações de modo mais confortável, que lhe assegurem adesão a seus propósitos articulados ao poder. Portanto, o desejo material, que confere a uma pessoa algum grau de destaque na sociedade, favorece os manejos de poder, caminhando com o conforto do irrefletido, e explica porque esse mesmo poder se encontra tanto na polícia como no Estado.

Assim, as manobras de poder são retroalimentadas pela própria sociedade. Quando pensamos nas mídias como veículo de manipulação dos enunciados da informação, sejam elas televisivas, radiofônicas, impressas ou da internet, faz-se necessário despir das ideologias (ou ao menos fazer esforço para), reconhecendo-se como sujeito quase sempre portador de um direcionamento político. É necessário sair da ilha para ver a ilha, uma vez que os limites delineados pelas direções políticas tornam as informações nebulosas e, com isso, mais confortáveis para serem adotadas superficialmente.

Mas onde, afinal, encontramos os outros veículos de informação que têm a preocupação de refinar a fidelidade à informação? Essas mídias, raras, existem concentradas na internet, mesmo que ainda em processo de refinamento e amadurecimento, pois é comum trazerem resíduos da parcialidade ou da tendenciosidade. Mas elas trabalham com o esforço para trazer a informação com embasamento intelectual, confrontada com os questionamentos teóricos e históricos. Em geral, por isso, seus textos são mais extensos, de modo a desenvolver reflexão coerente, escavando os fatos, os enunciados e as motivações, com o cuidado de afastar as tendências especulativas totalmente.

Bem, termino com uma inquietação óbvia, mas não menos nebulosa: Embora existam as mídias críveis, ainda assim a grande parte das pessoas não está interessada nesses veículos de informação em sua proposta de verdade. É comum, mas não pode ser tratado como normal. É mais confortável, mas não menos grave. Aliás, gravíssimo.


*Iana Pires é mestra em ciências pela USP e pesquisadora

Deleuze (Esqu) e Foucault.

Texto inédito de Michel Foucault: O corpo utópico



Nesta conferência de Michel Foucault – que acaba de ser publicada em espanhol – o corpo é, em primeiro lugar, “o contrário de uma utopia”, lugar “absoluto”, “desapiedado”, com o qual a utopia da alma se confronta. Mas, finalmente, o corpo, “visível e invisível”, “penetrável e opaco”, é “o ator principal de toda utopia” e cala apenas diante do espelho, do cadáver ou do amor.

A conferência “O corpo utópico”, de 1966, integra o livro El cuerpo utópico. Las heterotopías, cuja versão espanhola acaba de ser publicada (Ed. Nueva Vision). Esta versão está publicada no jornal argentino Página/12, 29-10-2010. A tradução é do Cepat.


Eis a conferência.

Basta eu acordar, que não posso escapar deste lugar que Proust [A recuperação do corpo no processo do acordar é um tema recorrente na obra de Marcel Proust – Nota da Redação], docemente, ansiosamente, ocupa uma vez mais em cada despertar. Não que me prenda ao lugar – porque depois de tudo eu posso não apenas mexer, andar por aí, mas posso movimentá-lo, removê-lo, mudá-lo de lugar –, mas somente por isso: não posso me deslocar sem ele. Não posso deixá-lo onde está para ir a outro lugar. Posso ir até o fim do mundo, posso me esconder, de manhã, debaixo das cobertas, encolher o máximo possível, posso deixar-me queimar ao sol na praia, mas o corpo sempre estará onde eu estou. Ele está aqui, irreparavelmente, nunca em outro lugar. Meu corpo é o contrário de uma utopia, é o que nunca está sob outro céu, é o lugar absoluto, o pequeno fragmento de espaço com o qual, em sentido estrito, eu me corporizo.

Meu corpo, topia desapiedada. E se, por ventura, eu vivesse com ele em uma espécie de familiaridade gastada, como com uma sombra, como com essas coisas de todos os dias que finalmente deixei de ver e que a vida passou para segundo plano, como essas chaminés, esses telhados que se amontoam cada tarde diante da minha janela? Mas, todas as manhãs, a mesma ferida; sob os meus olhos se desenha a inevitável imagem que o espelho impõe: rosto magro, costas curvadas, olhos míopes, careca, nada lindo, na verdade. Meu corpo é uma jaula desagradável, na qual terei que me mostrar e passear. É através de suas grades que eu vou falar, olhar, ser visto. Meu corpo é o lugar irremediável a que estou condenado.

Depois de tudo, creio que é contra ele e como que para apagá-lo, que nasceram todas as utopias. A que se devem o prestígio da utopia, da beleza, da maravilha da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas é um lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que será belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal em sua potência, infinito em sua duração, desligado, invisível, protegido, sempre transfigurado; e é bem possível que a utopia primeira, aquela que é a mais inextirpável no coração dos homens, seja precisamente a utopia de um corpo incorpóreo. O país das fadas, dos duendes, dos gênios, dos magos, e bem, é o país onde os corpos se transportam à velocidade da luz, onde as feridas se curam imediatamente, onde caímos de uma montanha sem nos machucar, onde se é visível quando se quer e invisível quando se deseja. Se há um país mágico é realmente para que nele eu seja um príncipe encantado e todos os lindos peraltas se tornem peludos e feios como ursos.

Mas há ainda outra utopia dedicada a desfazer os corpos. Essa utopia é o país dos mortos, são as grandes cidades utópicas deixadas pela civilização egípcia. Mas, o que são as múmias?  São a utopia do corpo negado e transfigurado. As múmias são o grande corpo utópico que persiste através do tempo. Há as pinturas e esculturas dos túmulos; as estátuas, que, desde a Idade Média, prolongam uma juventude que não terá fim. Atualmente, existem esses simples cubos de mármore, corpos geometrizados pela pedra, figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemitérios. E nessa cidade de utopia dos mortos, eis aqui que meu corpo se torna sólido como uma coisa, eterno como um deus.

Mas, talvez, a mais obstinada, a mais poderosa dessas utopias através das quais apagamos a triste topologia do corpo nos seja administrada pelo grande mito da alma, fornecido desde o fundo da história ocidental. A alma funciona maravilhosamente dentro do meu corpo. Nele se aloja, evidentemente, mas sabe escapar dele: escapa para ver as coisas, através das janelas dos meus olhos, escapa para sonhar quando durmo, para sobreviver quando morro. A minha alma é bela, pura, branca. E se meu corpo barroso – em todo o caso não muito limpo – vem a se sujar, é certo que haverá uma virtude, um poder, mil gestos sagrados que a restabelecerão em sua pureza primeira. A minha alma durará muito tempo, e mais que muito tempo, quando o meu velho corpo apodrecer. Viva a minha alma!  É o meu corpo luminoso, purificado, virtuoso, ágil, móvel, tíbio, fresco; é o meu corpo liso, castrado, arredondado como uma bolha de sabão.

E eis que o meu corpo, pela virtude de todas essas utopias, desapareceu. Desapareceu como a chama de uma vela que alguém sopra. A alma, as tumbas, os gênios e as fadas se apropriaram pela força dele, o fizeram desaparecer em um piscar de olhos, sopraram sobre seu peso, sobre sua feiúra, e me restituíram um corpo fulgurante e perpétuo.

Mas meu corpo, para dizer a verdade, não se deixa submeter com tanta facilidade. Depois de tudo, ele mesmo tem seus recursos próprios e fantásticos. Também ele possui lugares sem-lugar e lugares mais profundos, mais obstinados ainda que a alma, que a tumba, que o encanto dos magos. Tem suas bodegas e seus celeiros, seus lugares obscuros e praias luminosas. Minha cabeça, por exemplo, é uma estranha caverna aberta ao mundo exterior através de duas janelas, de duas aberturas – estou seguro disso, posto que as vejo no espelho. E, além disso, posso fechar um e outro separadamente. E, no entanto, não há mais que uma só dessas aberturas, porque diante de mim não vejo mais que uma única paisagem, contínua, sem tabiques nem cortes. E nessa cabeça, como acontecem as coisas? E, se as coisas entram na minha cabeça – e disso estou muito seguro, de que as coisas entram na minha cabeça quando olho, porque o sol, quando é muito forte e me deslumbra, vai a desgarrar até o fundo do meu cérebro –, e, no entanto, essas coisas ficam fora dela, posto que as vejo diante de mim e, para alcançá-las, devo me adiantar.

Corpo incompreensível, penetrável e opaco, aberto e fechado: corpo utópico. Corpo absolutamente visível – porque sei muito bem o que é ser visto por alguém de alto a baixo, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima do ombro, surpreendido quando menos espero, sei o que é estar nu. Entretanto, esse mesmo corpo é também tomado por uma certa invisibilidade da qual jamais posso separá-lo. A minha nuca, por exemplo, posso tocá-la, mas jamais vê-la; as costas, que posso ver apenas no espelho; e o que é esse ombro, cujos movimentos e posições conheço com precisão, mas que jamais poderei ver sem retorcer-me espantosamente. O corpo, fantasma que não aparece senão na miragem de um espelho e, mesmo assim, de maneira fragmentada. Necessito realmente dos gênios e das fadas, e da morte e da alma, para ser ao mesmo tempo indissociavelmente visível e invisível? E, além disso, esse corpo é ligeiro, transparente, imponderável; não é uma coisa: anda, mexe, vive, deseja, se deixa atravessar sem resistências por todas as minhas intenções. Sim. Mas até o dia em que fico doente, sinto dor de estômago e febre. Até o dia em que estala no fundo da minha boca a dor de dentes. Então, então deixo de ser ligeiro, imponderável, etc.: me torno coisa, arquitetura fantástica e arruinada.

Não, realmente, não se necessita de magia, não se necessita de uma alma nem de uma morte para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente, visível e invisível, vida e coisa. Para que eu seja utopia, basta que seja um corpo. Todas essas utopias pelas quais esquivava o meu corpo, simplesmente tinham seu modelo e seu ponto primeiro de aplicação, tinham seu lugar de origem em meu corpo. Estava muito equivocado há pouco ao dizer que as utopias estavam voltadas contra o corpo e destinadas a apagá-lo: elas nasceram do próprio corpo e depois, talvez, se voltarão contra ele.

Uma coisa, entretanto, é certa: o corpo humano é o ator principal de todas as utopias. Depois de tudo, uma das utopias mais velhas que os homens contaram a si mesmos, não é o sonho de corpos imensos, sem medidas, que devorariam o espaço e dominariam o mundo? É a velha utopia dos gigantes, que se encontra no coração de tantas lendas, na Europa, na África, na Oceania, na Ásia. Essa velha lenda que durante tanto tempo alimentou a imaginação ocidental, de Prometeu a Gulliver.

O corpo é também um grande ator utópico quando se pensa nas máscaras, na maquiagem e na tatuagem. Usar máscaras, maquiar-se, tatuar-se, não é exatamente, como se poderia imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente um pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível. Tatuar-se, maquiar-se, usar máscaras, é, sem dúvida, algo muito diferente; é fazer entrar o corpo em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis. A máscara, o sinal tatuado, o enfeite colocado no corpo é toda uma linguagem: uma linguagem enigmática, cifrada, secreta, sagrada, que se deposita sobre esse mesmo corpo, chamando sobre ele a força de um deus, o poder surdo do sagrado ou a vivacidade do desejo. A máscara, a tatuagem, o enfeite coloca o corpo em outro espaço, o fazem entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo, fazem desse corpo um fragmento de um espaço imaginário, que entra em comunicação com o universo das divindades ou com o universo do outro. Alguém será possuído pelos deuses ou pela pessoa que acaba de seduzir. Em todo o caso, a máscara, a tatuagem, o enfeite são operações pelas quais o corpo é arrancado do seu espaço próprio e projetado a outro espaço.

Escutem, por exemplo, este conto japonês e a maneira como um tatuador faz passar a um universo que não é o nosso o corpo da jovem que ele deseja:

“O sol lançava seus raios sobre o rio e incendiava o quarto das sete esteiras. Seus raios refletidos sobre a superfície da água formavam um desenho de ondas douradas sobre o papel dos biombos e sobre o rosto da jovem em sono profundo. Seikichi, depois de ter corrido os tabiques, tomou entre as suas mãos suas ferramentas de tatuagem. Durante alguns instantes permaneceu imerso numa espécie de êxtase. Precisamente agora saboreava plenamente a estranha beleza da jovem. Parecia-lhe que podia permanecer sentado diante desse rosto imóvel durante dezenas ou centenas de anos sem jamais experimentar nem cansaço nem aborrecimento. Assim como o povo de Mênfis embelezava outrora a terra magnífica do Egito de pirâmides e de esfinges, assim Seikichi, com todo o seu amor, quis embelezar com seu desenho a pele fresca da jovem. Aplicou-lhe de imediato a ponta de seus pincéis de cor segurando-os entre o polegar, e os dedos anular e pequeno da mão esquerda, e à medida que as linhas eram desenhadas, picava-as com sua agulha que segurava na mão direita”.

E quando se pensa que as vestimentas sagradas ou profanas, religiosas ou civis fazem o indivíduo entrar no espaço fechado do religioso ou na rede invisível da sociedade, então se vê que tudo quanto toca o corpo – desenhos, cores, diademas, tiaras, vestimentas, uniformes – faz alcançar seu pleno desenvolvimento, sob uma forma sensível e abigarrada, as utopias seladas no corpo.

Mas, se fosse preciso descer mais uma vez abaixo das vestimentas, se fosse preciso alcançar a própria carne, e então se veria que em alguns casos, em seu ponto limite, é o próprio corpo que volta contra si seu poder utópico e faz entrar todo o espaço do religioso e do sagrado, todo o espaço do outro mundo, todo o espaço do contra-mundo, no interior mesmo do espaço que lhe está reservado. Então, o corpo, em sua materialidade, em sua carne, seria como o produto de suas próprias fantasias. Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo? E também os drogados, e os possuídos; os possuídos, cujo corpo se torna um inferno; os estigmatizados, cujo corpo se torna sofrimento, redenção e salvação, paraíso sangrante.

Bobagem dizer, portanto, como fiz no início, que meu corpo nunca está em outro lugar, quer era um aqui irremediável e que se opunha a toda utopia.

Meu corpo, de fato, está sempre em outro lugar. Está ligado a todos os outros lugares do mundo, e, para dizer a verdade, está num outro lugar que é o além do mundo. É em referência ao corpo que as coisas estão dispostas, é em relação ao corpo que existe uma esquerda e uma direita, um atrás e um na frente, um próximo e um distante. O corpo está no centro do mundo, ali onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo não está em nenhuma parte: o coração do mundo é esse pequeno núcleo utópico a partir do qual sonho, falo, me expresso, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino. O meu corpo é como a Cidade de Deus, não tem lugar, mas é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos.

Depois de tudo, as crianças demoram muito tempo para descobrir que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, não têm mais que um corpo disperso, membros, cavidades, orifícios, e tudo isto não se organiza, tudo isto não se corporiza literalmente, senão na imagem do espelho. De uma maneira mais estranha ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por mais paradoxal que possa parecer, diante de Tróia, sob os muros defendidos por Hector e seus companheiros, não havia corpo, havia braços levantados, havia peitos valorosos, pernas ágeis, cascos brilhantes acima das cabeças: não havia um corpo. A palavra grega que significa corpo só aparece em Homero para designar o cadáver. É esse cadáver, por conseguinte, é o cadáver e é o espelho que nos ensinam (enfim, que ensinaram os gregos e que ensinam agora as crianças) que temos um corpo, que esse corpo tem uma forma, que essa forma tem um contorno, que nesse contorno há uma espessura, um peso, numa palavra, que o corpo ocupa um lugar. O espelho e o cadáver assinalam um espaço à experiência profunda e originariamente utópica do corpo; o espelho e o cadáver fazem calar e apaziguam e fecham sobre um fecho – que agora está para nós selado – essa grande raiva utópica que deteriora e volatiliza a cada instante o nosso corpo. É graças a eles, ao espelho e ao cadáver, que o nosso corpo não é pura e simples utopia. Ora, se se pensa que a imagem do espelho está alojada para nós em um espaço inacessível, e que jamais poderemos estar ali onde estará o nosso cadáver, se pensamos que o espelho e o cadáver estão eles mesmos em um invencível outro lugar, então se descobre que só utopias podem encerrar-se sobre elas mesmas e ocultar um instante a utopia profunda e soberana de nosso corpo.

Talvez seria preciso dizer também que fazer o amor é sentir seu corpo se fechar sobre si, é finalmente existir fora de toda utopia, com toda a sua densidade, entre as mãos do outro. Sob os dedos do outro que te percorrem, todas as partes invisíveis do teu corpo se põem a existir, contra os lábios do outro os teus se tornam sensíveis, diante de seus olhos semi-abertos teu rosto adquire uma certeza, há um olhar finalmente par ver tuas pálpebras fechadas. Também o amor, assim como o espelho e como a morte, acalma a utopia do teu corpo, a cala, a acalma, a fecha como numa caixa, a fecha e a sela. É por isso que é um parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o rodeiam, se gosta tanto de fazer o amor é porque, no amor, o corpo está aqui.

Foucault versos Foucault (2014) – Documentário



Excelente documentário de François Caillat, produzido em 2014. Com depoimento de diversos filósofos contemporâneos, o filme espelha as facetas da vida agitada de Michel Foucault, pensador contemporâneo nascido em 1926, na pequena cidade francesa de Poitiers, diplomou-se em psicologia e filosofia. Ensinou em universidades francesas e lançou diversos livros, como “As Palavras e as Coisas”, “Vigiar e Punir” e “História da Sexualidade”, obra inacabada devido ao seu falecimento, em 1984.

            

Baixe 30 obras de Michel Foucault


Há trinta anos, morria filósofo-ativista que recusou papel de líder, mas estimulou a transgredir “verdades” fabricadas e eternizadas pelo poder”, escreve Bruno Lorenzatto no site “Outras Palavras” como parte integrante de sua dissertação de Mestrado intitulada “A Filosofia anti-humanista de Michel Foucault: Questões Sobre História e Liberdade” apresentada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em maio de 2012.

Lorenzatto inicia o texto citando uma das mais célebres frases de Foucault que incita a destruição de paradigmas ao ser um provocador de discursos contrários ao que se julga verdadeiros. “Mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam, que elas tomam por verdadeiro, por evidentes, certos temas fabricados em um momento particular da história, e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída.” Foulcalt, filósofo da modernidade contribui para uma nova forma de pensar nas mais variadas facetas da sociedade, corroborando para movimentos de contestação sócio-política.

Mas, até onde se pode pensar diferentemente? Para compreender essas e outras inquietações propagadas por ele, você pode fazer um passeio por cerca de 30 (trinta) obras deste filósofo, da “Arqueologia do Saber” a “La Naturaleza Humana” disponibilizadas em PDF no site do Ayrton Becalle.



O pensamento aberto de Michel Foucault


Não é exagero afirmar que, em Michel Foucault (1926-1984), vida e obra aparecem interligadas, numa demonstração de que a busca pelo saber caminha lado a lado com o prazer. E foi assim que o autor de "Vigiar e Punir" construir seu pensamento, cuja abrangência alcança diversas áreas do conhecimento. Celebrada em vida, sua produção intelectual mostra-se cada vez mais atual. Seu principal mérito talvez tenha sido o de ousar e pensar de outra maneira. A constatação aparece no discurso do filósofo argentino Edgardo Castro, reconhecido como um dos maiores estudiosos do pensador francês, no fim do último dos quatro capítulos que compõe o livro "Introdução a Foucault".

A obra acaba de ser lançada pela série FilôMargens, da mineira Autêntica. Do mesmo autor, a editora já havia um volume intitulado "Vocabulário de Foucault", reunindo em verbetes os principais conceitos e temas do autor; e um complexo estudo de apresentação à filosofia fo italiano Giorgio Agamben. A obra sobre Foucault chega ao mercado no ano que marca três décadas da morte do pensador francês, cujos conceitos tem por base as suas investigações sobre temas como poder, sexualidade, saber e loucura, e servem de pistas para a compreensão da sociedade contemporânea.

Foucault: principais conceitos do filósofo são
abordados em livro introdutório de Edgardo
Castro.
Na apresentação do livro, Castro acena com uma boa notícia: "o ciclo das publicações dos textos de Foucault não está fechado". O autor analisa, comenta e traz à luz dos dias atuais o pensamento foucaultiano, desde as concepções sobre poder, passando pelo surgimento da sociedade vigiada (a exemplo da contemporânea).

A ideia de uma sociedade vigiada tem como base a concepção do olho de Deus que tudo enxerga, passa pelo conceito do pan-óptico - sistema de vigilância criado para supervisionar as atividades em fábricas, prisões, hospitais, escolas, dentre outras instituições. O estudo de Castro estende-se aos conceitos de biopoder e biopolítica, aparecem nos últimos cursos do pensador, que deixa uma obra em aberto.

A afirmação de Castro não fica apenas no campo metafórico, ou seja, fazendo alusão ao pensamento do autor que continua sendo revisitado. "Não só porque não apareceram senão dois de seus 13 cursos no Collège de France, mas por que o arquivo Foucault, agora, depositado na Bibliothèque Nationale de France, compreende aproximadamente 40 mil folhas inéditas, entre as quais se encontram o quarto tomo de 'História da Sexualidade', 'As confissões da carne', e três dezenas de cadernos, diário intelectual no qual Foucault registrou suas leituras e reflexões desde 1961 até sua morte". Vale lembrar que não chegou a corrigir a versão final do quarto volume da "História da Sexualidade", como este, outros trabalhos ficaram sem terminar, sublinha Castro.

Panorâmica

Em "Introdução a Foucault", o filósofo argentino projeta uma panorâmica sobre a obra e a vida do mestre francês, que defendia ser a vida concebida como uma obra de arte. E foi assim que traçou a sua trajetória, elegendo o prazer pelo saber como ponto de partida para construir a sua vida-obra.

Castro aborda desde as primeiras publicações, passando por temas centrais de sua tese de doutorado, considerações sobre o nascimento das ciências humanas, o pensamento sobre a política moderna a partir da relação Estado/mercado/empresa no liberalismo e no neoliberalismo. Destaca, ainda, o campo da subjetividade, entrando na seara do discurso, enfatizando tanto o que é dito quanto o silêncio.

Para Foucault, aquilo que não foi dito também faz parte do discurso. Muitas vezes, o não-dito, materializado no silêncio, acontece devido à relação de poder que permeia os atores do discurso. Produção múltipla, a obra foucaultiana perpassa a filosofia, a linguística, o direito, as artes e a comunicação social. Sua escrita chega a se confundir com a própria vida, daí alguns estudiosos defenderem que sua obra é autobiográfica também.

Foucault conheceu os altos e baixos de uma vida ordinária, até se tornar célebre, mas sem fazer disso uma meta. Aconteceu em função da sua busca pelo saber, o que significou, muitas vezes, remar contra a corrente. Daí a beleza e a autenticidade de sua teoria. Nunca tentou descobrir o que é poder, preferindo enveredar pelas entrelinhas, na tentativa de descobrir como as relações são construídas e permeadas por essa força, que se enraíza em toda a malha social. Com produção teórica construída ao longo de três décadas, Foucault continua surpreendendo pelas ideias atuais, conquistando as novas gerações.

Obra de arte

A comparação da vida à obra de arte se encaixa perfeitamente no sujeito Foucault, que foi um dos estudiosos que dosou obra e engajamento político. O que significa dizer que, em alguns momentos, o intelectual deve ter uma participação ativa, como aconteceu no Maio de 1968, na França, ao lado de outros intelectuais, quando apontou um novo campo de atuação dos pensadores. Hoje, com o recrudescimento dos movimentos sociais, mais uma vez, intelectuais são chamados a tomar uma posição, mostrando, também, a atualidade do seu pensamento.

Ao passar em revista a obra de um clássico contemporâneo, Edgardo Castro mostra que a obra do pesquisador francês é uma demonstração da sua forma de estar no mundo, além de ser carregada de subjetividade. É possível perceber, ainda, que toma como ponto de partida para a construção de suas teorias, resultado de quase três décadas de estudo, inquietações que marcaram a sua trajetória de vida, perseguindo a compreensão da sociedade ocidental.

Os estudos foucaultianos começam a partir de análises de fenômenos da modernidade, para depois desembocar nos períodos medieval e antigo, fazendo trajetória cronológica inversa. A religião, em especial o cristianismo, é outro objeto de estudo, sobretudo as confissões.

Normas

Os campos de investigações servem de indícios para a construção de uma sociedade normatizada e disciplinada, tema que aparece com insistência em sua narrativa teórica. Assim como governamentalidade, ética, repressão e vigilância. Em cada um dos capítulos, o autor detalha os eixos temáticos que aparecem na obra foucaultiana. No primeiro, aborda a problemática das ciências humanas e suas relações com a filosofia. No segundo, trata "da linguagem da literatura e o discurso dos saberes".

Enquanto no terceiro, enfatiza questões como normatização da sociedade e "governamentalidade", tratando de verdade e ética, no quarto e último capítulo. "Não nos surpreende, por isso, que o autor pôde dizer que, finalmente, não é o poder, mas o sujeito o tema geral das investigações". Para Foucault, o saber, o poder ou o sujeito só existem no plural e sem nenhuma identidade que transcenda suas múltiplas formas históricas.


Via Diário do Nordeste

Para compreender Michel Foucault


 Mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam, que elas tomam por verdadeiro, por evidentes, certos temas fabricados em um momento particular da história, e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída.”

(Michel Foucault)

Michel Foucault fala ao megafone ao lado de Jean-Paul
Sartre, em manifestação.
Há trinta anos, em junho de 1984, morria em Paris Michel Foucault. Um pensador do século XX que inventou certo modo radical de pensar, que atravessa este início de século: suas reflexões permanecem fundamentais para os movimentos de contestação política e social; para todos aqueles que desejam “saber como e até onde seria possível pensar de modo diferente”.

Foucault participou teórica e praticamente dos movimento sociais que poderíamos chamar de vanguarda de seu tempo, sobretudo durante as décadas de sessenta e setenta: a luta antimanicomial (sua experiência num hospital psiquiátrico foi uma das motivações que o levou a escrever História da Loucura); as revoltas nos presídios franceses (junto com Gilles Deleuze criou o GIP – Grupo de Informação sobre as Prisões, que buscava dar voz aos presos e às outras pessoas diretamente envolvidas no sistema prisional; com base nessa experiência escreveu Vigiar e Punir); o movimento gay (uma das motivações para sua História da Sexualidade).

O pensador francês também escreveu artigos para jornais e revistas no calor da hora sobre acontecimentos importantes, deu conferências e entrevistas em diversos países, inclusive no Brasil. Contrapunha seu papel de intelectual ao “intelectual universal”, isto é, uma espécie de líder que pensa pelas massas e as dirige para a “verdadeira” luta. O filósofo via a si mesmo como um “intelectual específico”, aquele que em domínios precisos contribui para determinadas lutas em curso no presente. Parafraseando Deleuze, Foucault foi o primeiro a ensinar a indignidade de falar pelos outros.

Ele dizia que suas pesquisas nasciam de problemas que o inquietavam na atualidade: evidências que poderiam ser destruídas se soubéssemos como foram produzidas historicamente; por isso fez da ontologia (o estudo do ser, um modo de reflexão geralmente desligado da realidade histórica, uma vez que busca princípios – as ideias, para Platão; o cogito, para Descartes; o sujeito transcendental, para Kant – que antecedem e, por assim dizer, fundam a história) uma reflexão em cujo cerne está o presente e, portanto, a investigação histórica.

Através de estudos transdisciplinares (e não entre disciplinas, pois trata-se de colocar em questão os limites entre elas), Foucault deu forma a uma crítica filosófica que recorre sobretudo à pesquisa histórica, para questionar as maneiras pelas quais certas verdades e seus efeitos práticos vieram a se formar e se estabelecer no presente.

Questionava assim os sistemas de exclusão criados pelo Ocidende quando do início da época moderna (na cronologia de Foucault, desde fins do século XVIII):

- o saber médico e psiquiátrico – a patologização e a medicalização como formas modernas de dominação sobre seres economica e socialmente inconvenientes, os loucos;

- o nascimento das ciências humanas e da filosofia moderna como saberes que atestam a invenção do conceito de homem, transformando o ser humano, ao mesmo tempo, em sujeito do conhecimento e objeto de saber: o grande dogma da modernidade filosófica;

- a prisão e outras instituições de confinamento (tais como a escola, a fábrica, o quartel) não como um avanço nos sentimentos morais e humanitários, mas como mudança de estratégia do poder, que visa o disciplinamento e a docilização dos corpos;

- a sexualidade como dispositivo histórico de objetivação (o indivíduo como objeto de saber e ponto de aplicação de disciplinas) e subjetivação (o modo segundo o qual o sujeito se reconhece enquanto tal) do corpo, através dos quais se implica uma verdade essencial do homem. Não deixa de ser notável o fato de o Ocidente ter inventado um ritual singular segundo o qual algumas pessoas alugam os ouvidos de outras (os psicanalistas) para falarem de seu sexo.

Às suas pesquisas, ele chamou ontologias do presente: um modo de reflexão, segundo Foucault iniciado por Kant, em que está em jogo o vínculo entre filosofia, história e atualidade. A tarefa de pensar o hoje como diferença na história. Mas se a questão para Kant era a de saber quais limites o conhecimento deve respeitar (os limites da razão), em Foucault a questão se converte no problema de saber quais limites podemos questionar e transgredir na atualidade, isto é, “dizer o que existe, fazendo-o aparecer como podendo não ser como ele é” (2008, p. 325).

Nesse sentido, o filósofo procurava dar visibilidade às partes ocultas que formam o presente e os fragmentos de narrativas que nos constituem lá mesmo onde não há mais identidade, onde o “eu” se encontra fracionado pela história plural que o engendrou. De modo que esse questionamento histórico-filosófico não nos conduz à reafirmação de nossas certezas, de nossas instituições e sistemas, mas ao afastamento crítico dessas instâncias e de si próprio como exercício ético e político. Como indica Deleuze (1992, p. 119): “a história, segundo Foucault, nos cerca e nos delimita; não diz o que somos, mas aquilo de que estamos em vias de diferir; não estabelece nossa identidade, mas a dissipa em proveito do outro que somos”.

A história (não a narrativa histórica ou a escrita da história, mas as condições de existência dos homens no decorrer do tempo, que lhes escapa à consciência), não é da ordem da necessidade; ela diz respeito à liberdade, à invenção; pertence à ordem mais da casualidade do que da causalidade; é feita mais de rupturas e violência do que de continuidades conciliadoras. Esse modo de conceber a história se opõe à imagem tranquila que a narrativa histórica tradicional criou: a história do homem como a manifestação de um progresso inevitável – o lento processo de realização de uma utopia –, que seria alcançado após o iluminismo pela aplicação dos métodos racionais. Como se a ciência, o pensamento e a vida estivessem continuamente mais próximos de verdades que aos poucos são reveladas como o destino final do homem.

Se os estudos de Foucault mostram que os seres humanos não dominam os acontecimentos que constituem o solo de suas experiências, eles atestam ao mesmo tempo que, no espaço limitado do presente, as pessoas dispõem da possibilidade de questionar o que muitas narrativas apresentam como necessário, assim como as formas de poder e dominação que se pretendem absolutas.

Os procedimentos de Foucault postulam, tal como Nietzsche descobrira no final do século XIX, que é possível fazer uma história de tudo aquilo que nos cerca e nos parece essencial e sem história – os sentimentos, a moral, a verdade etc. Essa descoberta indica que, mesmo esses elementos aparentemente universais ou imunes à passagem do tempo, se dão como contingências históricas, como coisas que foram criadas em um dado momento, em circunstâncias precisas.

Trata-se, assim, para Foucault, de pensar a história de determinadas problematizações: a história de como certas coisas se tornam problemas para o pensamento, dignas de serem pensadas por um ou outro domínio do saber e, através de formas de racionalização específicas, verdades são fabricadas. De maneira que suas pesquisas mostram que nossas evidências são frágeis e nossas verdades, recentes e provisórias.

Textos citados:

FOUCAULT, Michel. Estruturalismo e Pós-estruturalismo 1983. Ditos e Escritos II, Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento, Trad. Elisa Monteiro, Rio de Janeiro: Forense, 2008.

DELEUZE Gilles. A vida como obra de arte, Conversações. Ed. 34, Rio de Janeiro, 1992.

Confira o filme “Foucault por ele mesmo”

                     

Do blog Outras Palavras (Carta Capital)

Michel Foucault e o neoliberalismo




O Filósofo Foulcault dá importância secundária à hipótese
 mais óbvia sobre a arte neoliberal de governar
O mundo se abriu para o novo milênio dominado por certezas que hoje se desmancham sob a ação demolidora da crise financeira. A ideologia neoliberal, quase sem resistências, tentou demonstrar que, com a queda do Muro de Berlim, o espaço político e econômico tornou-se mais homogêneo, menos conflitivo, com a concordância a respeito das tendências da economia e das sociedades. 

Não há mais razão, diziam, para se colocar em discussão questões anacrônicas, como a reprodução das desigualdades ou as tendências dos mercados a sair dos trilhos, frequentemente destrambelhados pelos excessos nascidos de suas engrenagens.

Após a crise, os porta-vozes desse quase consenso, economistas e que tais, recolheram-se ao silêncio. Passado o vendaval que ajudaram a semear, já agarrados aos salva-vidas lançados pela famigerada intervenção dos governos, entregaram-se a tortuosas e acrobáticas manobras para justificar suas convicções.

Michel Foucault, um dos pensadores mais fecundos do século XX, não é economista. Talvez por isso tenha compreendido com maior abrangência e profundidade o significado do neoliberalismo. Contrariamente ao que imaginam detratores e adeptos, diz ele, o neoliberalismo é uma “prática de governo” na sociedade contemporânea. O credo neoliberal não pretende suprimir a ação do Estado, mas, sim, “introduzir a regulação do mercado como princípio regulador da sociedade”.

Foucault dá importância secundária à hipótese mais óbvia sobre a arte neoliberal de governar, a que afirma a imposição do predomínio das formas mercantis sobre o conjunto das relações sociais. Para o filósofo, “a sociedade regulada com base no mercado em que pensam os neoliberais é uma sociedade em que o princípio regulador não é tanto a troca de mercadorias quanto os mecanismos da concorrência... Trata-se de fazer do mercado, da concorrência, e, por consequência, da empresa, o que poderíamos chamar de ‘poder enformador da sociedade’”.

As transformações ocorridas nas últimas décadas deram origem a fenômenos correlacionados que não se coadunam com os princípios do liberalismo clássico e sua imaginária concorrência perfeita protagonizada por um enxame de pequenas empresas sem poder de mercado.

A nova concorrência louvada pelos neoliberais admite a “centralização” da propriedade e o controle dos blocos de capital. O processo se deu pela escalada dos negócios de fusões e aquisições, alentada pela forte capitalização das bolsas de valores nos anos 80, 90 e 2000, a despeito de episódios de “ajustamento de preços”. A “terceirização” das funções não essenciais à operação do core business aprofundou a divisão social do trabalho e propiciou a especialização e os ganhos de eficiência microeconômica, além de avanços na produtividade social do trabalho.

A grande empresa que se lança às incertezas da concorrência global necessita cada vez mais do apoio de condições institucionais e legais – sobretudo na derrogação das regras de proteção aos trabalhadores – que a habilitem à disputa com os rivais em seu próprio mercado e em outras regiões.

Elas dependem do apoio e da influência política de seus Estados Nacionais para penetrar em terceiros mercados (acordos de garantia de investimentos, patentes etc.), não podem prescindir do financiamento público para exportar nos setores mais dinâmicos, não devem ser oneradas com encargos tributários excessivos e correm o risco de serem deslocadas pela concorrência sem o benefício dos sistemas nacionais de educação e de ciência e tecnologia.

Tanto a “nova ordem mundial” como a sua crise foram construídas e deflagradas no jogo estratégico disputado entre as empresas globais e seus respectivos Estados. Esse fenômeno político-econômico envolveu os protagonistas relevantes da cena global: os Estados Unidos, apoiados em sua liderança financeira e monetária, e a China, ancorada em sua crescente superioridade manufatureira.

A superação da crise atual não depende apenas da ação competente dos Tesouros Nacionais e dos Bancos Centrais, mas supõe um delicado rearranjo das relações políticas e concorrenciais que sustentaram o modelo sino-americano. Parece que não é fácil.