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No Sudeste, 70% das escolas não têm aula de história afro-brasileira

 

Criança negra lê livro na escola. (FOTO | Reprodução).

Sete de cada dez Secretarias Municipais de Educação da região Sudeste do Brasil realizam pouca ou nenhuma ação para cumprir a Lei 10.639, de 2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas públicas e privadas.

A E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais e a lei n° 10.639/2003: resistência antirracista no cotidiano da sala de aula em Milagres – CE (2003/2020)

 

Escola Dona Antônia Lindalva de Morais na cidade de Milagres-CE, desde 2021 incluiu no seu PPP o projeto de um currículo antirracista. (FOTO |  prof. Emanuel Issacar).

 

“Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda...”

(Paulo Freire)

Por César Pereira, Colunista

O acesso da população negra aos bancos escolares se democratizou ao longo da década de 1990 e 2000, mas essa democratização não afetou de forma generalizada a vida dessa maioria de brasileiros. Houve importantes ganhos sociais sem dúvida, pois o número de estudantes negros ingressando nas universidades também cresceu e a renda dos trabalhadores negros melhor qualificados também aumentou, mas o grosso da população preta do país continuou na miséria, sem falar que a violência contra o negro aumentou muito nesses primeiros vinte anos do século XXI.[1]

Mesmo tendo representado avanços consideráveis para a educação e a escolarização em massa da população brasileira a Lei n° 9.934/1996 possuía limitações que logo despertaram a atenção de movimentos sociais que desde as décadas de 1970 e 1980 vinham pleiteando políticas e ações específicas voltadas para a parcela da população brasileira que historicamente havia sido excluída da escola, dos processos educacionais e da própria História do Brasil. Esse grupo social excluído é formado principalmente pela população negra do nosso país.

Assim em 09 de janeiro de 2003 foi feita uma emenda na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN/1996) com a sanção pelo presidente da república Luís Inácio Lula da Silva, da Lei n° 10.639/2003 que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no cotidiano das escolas de todo o país. A aprovação e posterior sanção da lei fora uma vitória do movimento negro que vinha pleiteando o ensino do protagonismo histórico e cultural do negro na história e na cultura desde a década de 1980.

A LDBEN/1996 possibilitou a conquista do direito de escolarização para os filhos dos trabalhadores pobres e isso favoreceu o aumento do número de estudantes nas escolas públicas principalmente no ensino fundamental e isto massificou a escola já no começo da década de 2000, no entanto o ensino médio ainda apresentava baixos índices de escolarização, pois apenas 34,4% dos adolescentes entre 15 e 17 anos estavam matriculados no ensino médio (MEC/Inep/DTDIE, 2000).[2]

No interior desse contexto de massificação da escola pública e de proposição de novas políticas educacionais como também do ingresso massivo de estudantes negros no sistema escolar e das lutas históricas do movimento negro, é que emerge decisivamente na sociedade brasileira, a proposição de uma política educacional antirracista.

Essa chegada dos estudantes negros na escola pública garantida pela obrigatoriedade da oferta de vagas e matrículas no ensino básico não significou a imediata inclusão destes nos programas dos currículos escolares, assim é preciso analisar especificamente como os estudantes negros vêm sendo atendidos na escola pública ao longo dessas últimas décadas e compreender como o acesso desses novos educandos a escolarização transformou o cotidiano das salas de aulas e das escolas públicas.

Pensar as transformações que ocorreram na estrutura e funcionamento da escola pública e do ensino básico para que o negro, entender o processo político que atua para que o estudante negro deixe de ser apenas mais um sujeito pobre e desvalido acolhido dentro da escola e passe a ser o protagonista da sua história e da sua cultura é fundamental para a produção de escolas antirracistas e currículos escolares afrocentrados.

Desse modo é preciso refletir os seguintes problemas:

Quais foram às mudanças propostas para a educação básica pela Lei n° 10.639/2003, visando criar uma prática pedagógica inclusiva e antirracista nas escolas públicas?

Como ocorreu a inserção dos estudantes negros no ensino público no período de 1996 a 2020, tomando como base a Lei n° Lei n° 10.639/2003?

Como foi processo de efetivação da Lei 10.639/2003 dos estudantes negros na escola pública?

Para responder tais questionamentos me debrucei sobre o cotidiano de uma escola pública do município de Milagres-CE, a E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais meu local de trabalho, e a partir dessa escola pública e de Milagres, cidade do estado do Ceará cuja população negra segundo o censo de 2010 era de 73,4%.

Até o ano de 2009 o Governo do Ceará não dispunha de uma agenda política específica nem tampouco secretarias que buscassem promover a igualdade racial, somente a prefeitura de Fortaleza possuía uma Coordenadoria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (COPPIR) que fora criada ainda em 2007, a criação desse núcleo está vinculada a um decreto da prefeita municipal de Fortaleza Luiziane Lins, PT (Partido dos Trabalhadores), tal decreto é do ano de 2005 e foi uma das primeiras ações no Estado do Ceará voltada especificamente para a criação de meios que permitissem a aplicabilidade da Lei n° 10.639/2003 em escolas públicas da rede:

A Prefeita Municipal de Fortaleza, no uso das atribuições que lhe confere o art. 7°, inciso XXI, da Lei Orgânica Municipal (LOM), decreta: Art. 1° - Fica convocada a 1ª Conferência Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de Fortaleza, a se realizar nos dias 01 e 02 de abril de 2005, sob a coordenação do Gabinete do Vice-Prefeito, com o objetivo de propor diretrizes ao Plano Municipal de Políticas de Promoção de Igualdade Racial. Art. 2° - A 1ª Conferência Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial terá como tema central “Estado e Sociedade Construindo a Igualdade Racial” (...)[3]

O decreto que cria a Conferência Municipal de Promoção da Igualdade Racial em Fortaleza é anterior à decisão da CEE-CE que baixou no final do ano de 2006 a Resolução 416[4]. O que podemos perceber é que as ações que o Estado do Ceará deveria assumir para si com o objetivo de cumprir a e fazer cumpri as Lei n° 10.639/2003 nas escolas de ensino público e privado cearense estavam ocorrendo lentamente.

Compreendemos que o combate ao racismo e a criação de um projeto de educação antirracista é uma política de estado e como tal só pode ser plenamente executada com a ação firme do governo federal, estadual e municipal. Tais políticas de estado devem criar um plano de ação, investimentos e organismos que desenvolvam ações e fiscalizem se tais ações e os recursos destinados às suas efetivações estão de fato produzindo resultados.

A demora em haver um engajamento visível por parte do Governo do Estado Ceará, Secretaria Estadual de Educação e da própria sociedade civil cearense demonstra que as resistências em aceita os termos da Lei 10.639/2003, explicava-se principalmente por causa do mito da não existência de negros no Ceará.

Essa falsa versão dobre a história do negro no Ceará, criada e sustentada por mais de um século, impediu que os milhões de negros cearenses tivessem sua história e suas lutas devidamente reconhecidas, impediu que o protagonismo afro-cearense fosse abordado nas salas de aula do ensino básico e agora estava de alguma forma barrando a necessidade de se efetivar a Lei n° 10.639/2003 e empreender-se um projeto de educação antirracista em nosso estado. Mas o Movimento Negro e outros grupos de atuação política na luta pela igualdad eracial e combate a discriminação e o racismo no Ceará, estavam atentos ao probblema e logo partiriam para a luta, com o objetivo de pressionar o governo cearense e os municípios de nosso estado a adotarem ações e agendas que promovessem a aplicação da Lei de 09 de janeiro de 2003 sobre ERER.

Em 2007 a SEDUC-CE, enviou as escolas da rede uma portaria recomendando que a escolas do estado e as secretarias municipais incluíssem em suas semanas pedagógicas a discussão da Lei Federal de 09 de janeiro de 2003 sobre a ERER. Na prática tal recomendação não surtiu nenhum efeito específico, pois se havia os documentos norteadores do MEC, do CNE e do CEE-CE, faltava o devido preparo de coordenadores e gestores escolares para empreender uma discussão mais sistemática e direcionar o corpo docente de suas escolas a cumprirem a lei 10.639/2003 e porem em práticas as DCN’S/2004.

Nos dois anos que se seguiram a portaria da SEDUC-CE, aumentou a pressão do Movimento Negro pela efetivação da Lei n° 10.639/2003 no Ceará e por mudanças estruturais no sistema de ensino cearense bem como nos currículos escolares. Grupos de defesa dos direitos da população negra e de combate ao racismo e a discriminação atuaram fortemente solicitando posições claras do Governo do Estado do Ceará e compromissos com relação à promoção de uma política antirracista no Ceará.

Na ata da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais arquivada na secretaria da escola e que traz o registro das atividades desenvolvidas durante a semana pedagógica de 2007, não há nenhuma menção de que tenha havido estudos sobre ERER direcionados aos professores de Ciências Humanas e suas Tecnologias e Linguagens e Códigos, as duas áreas do conhecimento que na época eram as que deveriam exercer maior atenção sobre as DCN’s/2004.

A ausência de qualquer registro sobre atividades pedagógicas de formações docentes relacionadas à Educação para as Relações Étnico Raciais na E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais até aproximadamente o final da década de 2000, mostra o total despreparo da rede de educação cearense para satisfazer o disposto na Lei n° 10.639/2003 já devidamente complementada pela Lei n° 11.645/2008. Como as equipes pedagógicas das escolas da rede não sabiam de que maneira atuar para promover a educação antirracista na escola e os professores desconheciam as leis que amparavam essa prática pedagógica não tinham como mudar seus planos de aula nem tampouco criar abordagens novas da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena no cotidiano da sala de aula.

Desde o século XIX as relações de Milagres com sua população negra são problemáticas. Tendo sido o trabalhador escravizado no Ceará emancipado ao longo dos anos de 1883 e 1884, o município de Milagres resistiu ao projeto de emancipação das elites da capital da província e um acordo local entre a elite regional, o juiz de direito Joaquim do Couto Cartaxo e o político cratense Leandro Ratisbona manteve a escravização dos trabalhadores negros por pelo menos dois anos na cidade. O trabalhador escravizado só foi emancipado em Milagres entre o final do ano de 1886 e princípios de 1887.

Mesmo com uma enorme população negra e tendo sua identidade cultural ligada às africanidades, isso não impede que os negros do município de Milagres sejam marginalizados e pessimamente escolarizados. Vivem também de subempregos e relegados à miséria na periferia da sede municipal ou em trabalhos mal remunerados na zona rural.

Os dados do censo de 1940 para o município de Milagres apresentam números bastante destoantes com relação a sua composição étnica e demográfica. Segundo os dados levantados havia em Milagres 24.300 habitantes dos quais 18.244 se declararam brancos, 5.816 pretos, 194 pardos e um não declarou sua cor. Temos aí um indício evidente de que o racismo no município havia constrangido uma enorme parcela da população negra a rejeitar sua cor e identidade étnica e ao serem questionados, esses indivíduos, provavelmente pardos, entre se declarar pardo ou branco, optaram por autodeclarar como branco, pois ao aderir a essa categoria supunha estar livre do racismo.

Sabemos pelos dados posteriores dos censos de 1960 a 2010 que não houve grandes mudanças demográficas em Milagres no decorrer desses últimos cinquenta anos, pois a população que era de 24.300 pessoas em 1940 chegou em 2010 com 28.316 habitantes. Da população de Milagres de 10 ou mais anos, portanto em idade escolar, 201 se autodeclarou amarelo, 6.728 brancos, 3 indígenas, 15.623 pardos e 1.176 pretos, logo o percentual de pessoas negras com 10 ou mais anos em Milagres pelo censo de 2010 era de 71% chegando o percentual de negros a 73% do total geral da população milagrense, considerando todas as idades.

Como já demonstrei acima, a maior parcela da população de Milagres é composta de trabalhadores negros e pobres, sendo assim, quem passará a ocupar majoritariamente os bancos escolares das escolas públicas da rede municipal e estadual do município serão essas crianças e adolescentes pobres negros filhos dos trabalhadores rurais e dos trabalhadores urbanos que sobrevivem com baixíssima renda que lhes garante os subempregos disponíveis no município.

Temos em Milagres um exemplo de como o devir-negro no mundo atua na sociedade. O devir-negro segundo MBEMBE (2012), é aquilo de ruim, o preconceito, a segregação, razzias, guetos, violência institucional, epistemicídeo, genocídio, que lá nas sociedades organizadas em torno dos princípios do primeiro capitalismo era praticamente exclusivo ao negro, agora volta-se sobre “o lote de todas as humanidades subalternas” (MBEMBE, 2016), universaliza-se a condição do negro no capitalismo neoliberal do final do século XX e início do XXI.

O devir-negro no mundo atua sobre Milagres a partir do rápido sucateamento dos equipamentos de educação no município ao longo da década de 2000 e 2010, pois à medida que o número de alunos pobres e estudantes negros chegam ao ensino básico da rede pública as escolas perdem investimentos e a qualidade do ensino decai rapidamente.

Podemos perceber isto observando os baixos índices do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) do município de Milagres ao longo das duas primeiras décadas do século XXI. Os dados do IPECE (Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará) disponíveis em http://repositorio.ipea.gov..br, informam que entre 2004 a 2014 o IDEB de Milagres estava na faixa de 0 a 4%, isto é, entre os piores índices do estado e do Brasil. A qualidade do ensino público do município e avaliada como péssima e a aprendizagem dos alunos é muita crítica.

No caso específico da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais que pretendemos refletir aqui a partir dessa perspectiva necropolítica de Achille Mbembe, nós precisamos nos debruçar sobre os dados mais específicos sobre o corpo discente dessa escola. Para tanto tomamos como base os dados dos censos escolares das décadas de 2000 e 2010.

O censo escolar de 2005, cujos dados são mostrados na Tabela 1 pelo fato de ter sido primeiro realizado dois anos depois da Lei 10.639/2003 e quando já se vinha divulgando nas escolas as DCN’s/2004 nos permite tirar algumas conclusões importantes sobre a composição étnico-racial dos discentes da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais.

 

 

Tabela 2: Censo escolar 2005, alunos cor/raça E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais

Cor/raça

Autodeclaração

Percentual

Pardo

772

61,6%

Branco

361

28,8%

Preto[5]

104

8,3%

Moreno

14

1,1%

Mulato

1

0,07%

Loiro

1

0,07%

Total

1253

94,94%

Fonte: Arquivo da secretaria da escola.

Podemos perceber que a escola possuía um enorme contingente de estudantes negros, mas infelizmente estava despreparada para a chegada desses estudantes na sala de aula, chegamos a esta conclusão quando analisamos os planos de aula de Ciências Humanas e suas tecnologias. Vejamos o desenvolvimento de um plano de aula se Sociologia realizada no período de 07 a 25 de novembro 2005.

A professora assim descreve as atividades realizadas com as turmas de 1° ano médio da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais:

07/11: Atividades realizadas: [aula expositiva dialogada], individualismo e agressividade, apresentação [do tema].
14/11: Filme: ORFEU – Retratando a violência social e a sobrevivência. (2 aulas).
21/11: Apreciação e resolução da atividade referente a temática anterior.
28/11: Socialização da produção dos conteúdos da aula anterior[6]. (Grifo meu).

O plano de aula da professora em questão reflete especificamente uma realidade urbana, industrial, cujos valores econômicos, políticos e sociais do neoliberalismo já se firmaram profundamente na mentalidade dos adolescentes aponto de já ser considerado natural que precisam ser estudados na sala de aula sem uma necessária problematização ou reflexão crítica.

Nesse caso a professora não levou em conta a predominância de jovens da zona rural como o público mais numeroso na sua aula. Percebemos que a docente não tinha o preparo fundamental para compor uma aula que problematizasse as questões sociais, políticas e econômicas da realidade de seus alunos, isto é, em sua maioria meninos e meninas negros da zona rural, ou adolescentes filhos de trabalhadores pobres sobrevivendo com renda baixíssima advinda dos dias de trabalho alugado nas terras de algum fazendeiro local, ou de subempregos na zona urbana.

A professora está seguindo um livro didático completamente desvinculado da realidade dos seus alunos. Na aula de 14 de novembro ela exibe para seus alunos o filme Orfeu, filme brasileiro de 1999, dirigido por Cacá Diegues, adaptação da peça Orfeu da Conceição escrita em 1954 pelo poeta Vinícius de Moraes. O filme é uma releitura do mito grego de Orfeu e Eurídice. Estrelado por atores negros como Toni Garrido, Patrícia França, Isabel Filardis, Zezé Mota, Milton Gonçalves, Maria Ceiça, Léa Garcia, entre outros, presenciamos no filme a intensa presença de elementos da cultura e da história negra no Brasil.

Sem problematizar o filme com os alunos a professora volta sua fala especificamente para um discurso cordial sobre a questão racial brasileira, ela prefere o discurso do filme vinculado à crença na democracia racial, direciona seu olhar exclusivamente para um cotidiano estereotipado onde o negro é representado como pertencente a um universo de violência endêmica da qual a única forma de fugir é através do carnaval.

O lirismo e as táticas de resistência do negro contra o racismo presentes no texto original de Vinícius de Morais são desconsiderados em favor de um discurso sobre violência urbana no Rio de Janeiro, o elemento trágico que poeta concebera para fazer emergir a reflexão do espectador sobre a condição dos negros numa sociedade racista simplesmente não é levado em conta e a professora caminha facilmente com seus alunos para uma percepção de que tudo está permeado de violência e que o problema está entre os negros favelados das grandes cidades brasileiras.

As descrições do andamento do plano de aula permite-nos supor que a professora fez com seus alunos uma discussão a partir do filme, mas em nenhum momento ela alude aos elementos étnico-raciais presentes nele. Não chega a problematizar o fato da obra em questão haver escolhido personagens negros para encenar um mito da Grécia Antiga, todo o plano de aula desconsidera a presença em massa de adolescentes negros na E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais, para considerar somente o óbvio, a violência urbana que vitimiza a classe média brasileira, pois esse é o discurso de fundo do filme Orfeu do diretor Cacá Diegues.

          Estamos diante de uma prática de racismo institucional dentro da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais. Segundo Sílvio Almeida:

O racismo institucional é menos evidente, muito menos identificável em termos de indivíduos específicos que cometem os atos. Porém alertam os autores [Charles Hamilton, Kawane Ture] para o fato de que o racismo institucional “não é menos destrutivo da vida humana.” O racismo institucional se origina na operação de forças estabelecidas e respeitadas na sociedade e, portanto, recebe muito menos condenação pública do que o primeiro tipo. [racismo individual]...as instituições atuam na formulação de regras e imposição de padrões sociais que atribuem privilégios aos brancos ou a grupos sociais específicos. (ALMEIDA,2018, p.33-35).

Ao conceber aulas de História e Sociologia que privilegiam o debate sobre a violência urbana que os discursos racistas do cinema brasileiro e da mídia em geral vinculam estereotipadamente ao pobre e ao negro, os professores da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais levaram para as salas de aula da instituição as práticas do racismo institucional e promoveram as ideologias do racismo institucional brasileiro, contribuindo assim para a consolidação da visão negativa e discriminatória contra o negro.

Assim sendo, nenhuma dos professores da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais estava devidamente preparado em 2005 para trabalhar questões de educação antirracista, mesmo que a escola possuindo 71,07% de alunos negros.

          No censo escolar de 2012, quase uma década após a promulgação da Lei 10.639/2003 os números da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais são os seguintes:

Tabela 2: Censo escolar de 2012, alunos cor/raça E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais

Cor/raça

Autodeclaração

Percentual

Pardo

402

60,08%

Branco

171

25,56%

Preto

65

9,71%

Moreno

25

3,8%

Mulato

6

0,89%

Total

669

100%

Fonte: Arquivo da secretaria da escola

 

Ao longo do período de 2014 a 2018 houve diminuição no número de alunos atendido pela E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais. Isto se deu devido a implantação de uma unidade de escola profissionalizante em Milagres no ano de 2012. A partir de 2015 o número de alunos matriculados na escola se estabilizaria entre 450 a 470, as escola já funcionando em dois turnos, manhã e tarde, com cinco turmas de 1° ano e 4 turmas de 2° e 3° anos do ensino médio.

No letivo de 2018 estavam matriculados na escola 464 estudantes. Desses 67,45% eram da zona rural. Pertenciam às famílias de agricultores que sobreviviam de suas pequenas propriedades e da agricultura de subsistência ou trabalhavam alugado para algum proprietário rural local.

Uma grande parcela desses jovens são filhos de pais emigrantes (homens que saem de Milagres para ganhar o sustento de suas famílias em outras regiões) e as mães é que são os verdadeiros chefes da família, estimativas do Atlas Brasil informam que em 2018, 21,37% dos chefes de família em Milagres eram mulheres, a maioria dessas são de esposas de trabalhadores emigrantes que vivem em outros estados e regiões do país trabalhando para sustentar suas famílias.[7]

Segundo o censo escolar de 2018, dos 464 alunos matriculados na E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais. 75,2% dos alunos se autodeclararam negros, isto é, 11,7& se autodeclaram pretos e 63,5% pardos. Apenas 24,8% se autodeclaram brancos.

Mestre Doca Zacarias sendo homenageado na Semana da Consciência Negra em 2021. (FOTO | prof. Jeremias Rocha). 

Outro dado importante desse censo é o número de alunos do sexo masculino na escola em 2018 era de 56% e de do sexo feminino de 44%. Desses alunos do sexo masculino 86% se autodeclaram NEGROS enquanto 14% se autodeclaram brancos. O percentual de alunas que se autodeclararam negras foi de 82% e 18% brancas. Como percebemos pelos dados levantados pelo censo escolar entre os jovens atendidos pela E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais a maioria dos estudantes dessa unidade de ensino são negros.[1]

Como vemos a maioria dos estudantes que frequentam a E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais são adolescentes negros e de famílias negras da zona rural do município ou das periferias da sede municipal.

Diante disso a partir de 2014 os professores da área de Ciências Humanas e Linguagens e Códigos, e mais especificamente os professores de História, Geografia, Filosofia e Sociologia da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais passaram a desenvolver uma série de projetos e ações em articulação com o núcleo gestor da escola para viabilizar um processo de integração desses estudantes negros na cultura escolar e trazer as práticas pedagógicas antirracistas propostas pelas DCN’s/2004 para o cotidiano da sala de aula.

Logo abaixo vamos apresentar um quadro das ações realizadas pela E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais entre 2014 a 2018 visando à efetivação da Lei n° 10.639/2003 e a articulação política dentro da escola em torno da proposta de uma prática efetiva de educação antirracista que considerasse as vivências, a história e a cultura dos estudantes negros nela matriculados.

Quadro 1: Quadro das ações em educação antirracistas desenvolvidas na E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais entre 2014 a 2018.

Ano letivo

Ação

2014

Seminário Mulheres Negras do Cariri;

Festival da Cultura Raízes Negras Brasileiras;

O homem Kariri em Milagres;

Semana da Consciência Negra;

Aniversário de Mestre Doca Zacarias, 85 anos historiando;

2015

Projeto: A questão do Escravismo em Milagres;

Projeto: Pega do Boi no Mato na tradição dos vaqueiros de Milagres;

Projeto: Um som sem preconceito, o Funk na sociedade e a sociedade no Funk;

Semana da Consciência Negra;

2016

Projeto: Vidas Negras Importam;

Projeto: Penitentes de Milagres;

Projeto: A cor do teu preconceito;

Sarau Literário: Poema Negro, Cruz e Sousa e outras poesias negras;

Semana da Consciência Negra;

 

2017

Projeto: “Eram Todos bandidos”... O extermínio do negro no Brasil;

Projeto: Diálogos com a Juventude Negra;

Café Filosófico: O lugar do negro na democracia brasileira em construção;

Projeto: Deusas, candaces e orixás: a mãe África e seus filhos desterrados;

Semana da Consciência Negra;

2018

Projeto: Juventude Negra, movendo estruturas;

Projeto: Beleza Negra;

Projeto: Artefatos da Cultura Negra de Milagres;

Semana da Consciência Negra;

 

Fonte: Elaboração própria a partir do arquivo da escola

Com essas ações demonstramos que aos poucos o trabalho com a ERER foi se mostrando possível na E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais ao longo da segunda metade da década de 2010. Evidentemente que estamos longe de realizar o projeto de educação antirracista proposto pelas DCN’s/2004, pois apesar de todas as ações desenvolvidas ao longo dos últimos cinco anos na escola, como enumeramos no quadro acima, tais práticas pedagógicas ainda que tendo motivado os alguns professores de outras áreas a se engajarem na luta pela efetivação da Lei n° 10.639/2003, ainda não se consolidaram como processos pedagógicos naturais do currículo escolar, ainda é preciso que a gestão da escola motive os professores e os docentes de história concebam as ações antirracistas para serem efetivadas em datas específicas do calendário escolar.

Apesar desses entraves, podemos afirmar que entre 2018 a 2021 houve uma aproximação maior do corpo docente da escola com relação à ERER. Formações de professores promovidas pela SEDUC-CE e pela própria escola desencadearam uma maior preocupação com a questão da educação antirracista na sala de aula e já foi possível observar no ano de 2020 e 2021 a presença de conteúdos de história e cultura africana e afro-brasileira, bem como das epistemes afrocentradas nos planos de aula dos professores da escola.

O aluno negro Jonas Moreira vencedor do Prêmio Beleza Negra 2022 e a diretora da escola a professora negra Ana Maria Nunes. (FOTO | prof. José Emanuel Issacar). 

Em 2021 finalmente após as reflexões realizadas entre 2019 e 2020, a comunidade escolar aceitou a sugestão de incluir no texto do PPP escola a proposta de um currículo antirracista. Atualmente esta proposta está em construção e até 2022 quando o novo documento estará pronto a E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais se afirmará como uma escola antirracista.

O aluno negro José Cícero vestido como Dom Pedro Quaderna no Festival do Caju de 2022 em homenagem a Ariano Suassuna. (FOTO | prof. Emanuel Issacar).


Em consonância com a fala da gestora da escola Ana Maria Nunes da Silva nós docentes da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais creditamos que a inclusão no PPP da escola das propostas pedagógicas das DCN’s/2004 ampliará a necessidade de aulas e ações voltadas para a prática de educação antirracista para as outras áreas do conhecimento e viabilizará finalmente um currículo voltado para a educação das relações étnico-raciais na escola, deixando tais ações de ocorrerem somente vinculadas a um grupo de professores específicos ou ao trabalho do grupo gestor que atua no momento na escola, tornando-se assim a própria essência e filosofia de ensino da instituição.

Chegamos à conclusão de que mesmo havendo garantido a vaga na escola pública e a matrícula obrigatória de crianças e adolescentes no ensino básico a LDBN/1996 não criou instrumentos práticos para viabilizar a integração de crianças e adolescentes negros no cotidiano da sala de aula e da cultura escolar. Seria preciso esperar quase uma década para a Lei n° 9.394/1996 fosse modificada pela Lei n° 10.639/2003 que estabeleceu a inclusão de práticas pedagógicas que possibilitassem a inserção da história e da cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar para que assim fosse promovida nas escolas uma pedagogia da diversidade e uma educação antirracista.

Conclui-se que na segunda metade da década de 2000 a SEDUC/CE não tinha ainda uma política especificamente voltada para o cumprimento da lei de 09 de janeiro de 2003 e que somente a partir da década de 2010 é que começaram a se interessar pela execução dessa lei nas escolas públicas da rede cearense. No entanto chegando ao fim da década de 2010 a efetivação da Lei n° 10.639/2003 ainda ocorre de forma lenta e pontual nas escolas cearenses.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Sílvio. O Que é Racismo Estrutural?  Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2018.

ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade, a teoria da mudança social, São Paulo, UCP, 2014.

BRASIL, Legislação. Lei n. º 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei n. º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática" História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Diário Oficial da União, 2003.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf

CHANDLER, Billy. Os escravistas Renitentes de Milagres. Revista do Instituto do Ceará - ANNO LXXX, Fortaleza, 1966, p. 166-176, 1984, disponível em: https://www.institutodoceara.org.br/revista/Revapresentacao/RevPorAnoHTML/1966indice.html, acesso em 21 de julho de 2021.

GOMES, Nilma. Lino. Movimento Negro Educador. Petrópolis: Vozes, 2020.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra, Lisboa, Antígona, 2012.

________________Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2016.

Logotipo do Festival do Caju do ano de 2015 uma reflexão sobre as raízes negras da cultura brasileira. (Desenho da prof. Ana Ivyna Leite Lima).


[1] Todos os dados do censo escolar da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais estão disponíveis no arquivo da secretaria da escola.



[1] Mais da metade da população do Brasil se autodeclarou negra, preta ou parda no último censo realizado pelo IBGE em 2010. Desses brasileiros apenas 26 em cada 100 estudantes das universidades do país são negros. Apesar de ainda baixo esse índice, o acesso da população negra ao ensino superior aumentou 232% quando comparamos os dados de 2000 a 2010. Os dados constam no infográfico Retrato dos negros no Brasil feito pela Rede Angola, disponível em https://www.geledes.org.br, acesso em 05 de julho de 2021.

[2] Dados do relatório Educação para Todos, disponível em http://portal.mec.gov.br, acesso em 26 de outubro de 2020.

[3] Decreto Municipal n° 11.800/2005 convoca a 1ª conferência Municipal de Promoção da Igualdade Racial (CMPIR) e dá outras providências, disponível em https://www.cmfor.ce.gov.br/, acesso em 23 de maio de 2021.

[4] O documento conhecido como Resolução 416/2006 fundamenta como determinava a Resolução nº 1, 17/06/2004 como seriam efetivadas as práticas de educação antirracista e como seria a construção de um currículo escolar voltado para a Educação das Relações Étnico-raciais (ERER).

[5] Segundo a secretaria da escola em exercício e responsável pelos dados do censo escolar de 2005 os alunos ou pais escolhiam a classificação raça/cor na qual queriam se autodeclarar. Preto aqui segundo a secretaria refere-se aos alunos negros que não quiseram se autodeclarar pardos, mulatos ou morenos.

[6] Pasta a A-Z Ciências Humanas, 2005, arquivo da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais.

[7] Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/, aceso em 12 de abril de 2020.