As
observações a seguir, publicadas no Facebook do advogado e professor da PUC-SP,
Fernando Hideo, são simplesmente demolidoras em relação à sentença do juiz de
Curitiba.
Da
Revista Fórum - O meio jurídico
precisa fazer como Hideo e se posicionar de forma mais firme em relação ao que
está sendo feito não só contra Lula, mas contra todos aqueles que resistem a um
conjunto de ações e reformas que demolindo com a democracia brasileira e com
qualquer possibilidade de projeto nacional.
Por
Fernando Hideo
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A
SENTENÇA CONTRA LULA
1. Não me proponho a exaurir o
tema, tampouco entrar num embate próprio das militâncias partidárias, relatarei
apenas as minhas impressões na tentativa de traduzir o juridiquês sem perder a
técnica processual penal.
2. OBJETO DA CONDENAÇÃO: a
“propriedade de fato” de um apartamento no Guarujá.
Diz a sentença: “o ex-Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa eram PROPRIETÁRIOS DE FATO do
apartamento 164-A, triplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá”.
Embora se reconheça que o
ex-presidente e sua esposa jamais frequentaram esse apartamento, o juiz fala em
“propriedade de fato”.
O que é propriedade ?
Código Civil – Art. 1.228. O
proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de
reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
Portanto, um “proprietário de fato”
(na concepção desse juiz) parece ser alguém que usasse, gozasse e/ou dispusesse
do apartamento sem ser oficialmente o seu dono.
Esse conceito “proprietário de
fato” não existe em nosso ordenamento jurídico. Justamente porque há um outro
conceito para caracterizar essa situação, que se chama POSSE:
Código Civil – Art. 1.196.
Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não,
de algum dos poderes inerentes à propriedade.
E não foi mencionada na sentença
qualquer elemento que pudesse indicar a posse do ex-presidente ou de sua esposa
do tal triplex: tudo o que existe foi UMA visita do casal ao local para
conhecer o apartamento que Léo Pinheiro queria lhes vender.
Uma visita.
Portanto, a sentença afirma que
Lula seria o possuidor do imóvel sem nunca ter tido posse desse imóvel. Difícil
entender ? Impossível.
3. TIPIFICAÇÕES:
– corrupção (“pelo recebimento de
vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio
CONEST/RNEST com a Petrobrás”)
– lavagem de dinheiro (“envolvendo
a ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, triplex, e do
beneficiário das reformas realizadas”).
4. PROVAS DOCUMENTAIS: um monte de
documento sobre tratativas para compra de um apartamento no condomínio do
Guarujá (nenhum registro de propriedade, nada que indique que o casal tenha
obtido sequer a posse do tal triplex) e uma matéria do jornal O Globo (sim,
acreditem se quiser: há NOVE passagens na sentença que fazem remissão a uma
matéria do jornal O Globo como se prova documental fosse).
Esse conjunto de “provas
documentais” comprovaria que o ex-presidente Lula era o “proprietário de fato”
do apartamento.
Mas ainda faltava ligar o caso à
Petrobras (a tarefa não era assim tão simples, porque a própria denúncia do
Ministério Público do Estado de São Paulo — aquela mesmo que citava Marx e
“Hegel” — refutava essa tese)…
5. PROVA TESTEMUNHAL: aí entra a
palavra dos projetos de delatores Léo Pinheiro e um ex-diretor da OAS para
“comprovar” que o apartamento e a reforma seriam fruto de negociatas envolvendo
a Petrobras.
Não há nenhuma prova documental
para comprovar essas alegações, apenas as declarações extorquidas mediante
constante negociação de acordo de delação premiada (veremos adiante que foi um
“acordo informal”).
6. CORRUPÇÃO
Eis o tipo penal de corrupção:
Art. 317 – Solicitar ou receber,
para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou
antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa
de tal vantagem.
Portanto, deve-se comprovar
basicamente:
– solicitação, aceitação da
promessa ou efetivo recebimento de VANTAGEM indevida; e
– CONTRAPARTIDA do funcionário
público.
No caso, o ex-presidente foi
condenado “pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do
contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás”.
O pressuposto mínimo para essa condenação
seria a comprovação:
– do recebimento da vantagem (a tal
“propriedade de fato” do apartamento); e
– da contrapartida sobre o contrato
do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás.
Correto ?
Não.
Como não houve qualquer prova sobre
a contrapartida (salvo declarações extorquidas de delatores), o juiz se saiu
com essa pérola:
“Basta para a configuração que os
pagamentos sejam realizadas em razão do cargo ainda que em troca de atos de
ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam.”
E prossegue, praticamente
reconhecendo o equívoco da sua tese: “Na jurisprudência brasileira, a questão é
ainda objeto de debates, mas os julgados mais recentes inclinam-se no sentido
de que a configuração do crime de corrupção não depende da prática do ato de
ofício e que não há necessidade de uma determinação precisa dele”.
Ou seja, como não dá pra saber em
troca de que a OAS teria lhe concedido a “propriedade de fato” do triplex, a
gente diz que foi em troca do cargo pra que as vantagens fossem cobradas “assim
que as oportunidades apareçam” e está tudo certo pra condenação!
Para coroar, as pérola máxima da
sentença sobre o crime de corrupção:
– “Foi, portanto, um crime de
corrupção complexo e que envolveu a prática de diversos atos em momentos
temporais distintos de outubro de 2009 a junho de 2014, aproximadamente”.
Haja triplex pra tanta vantagem…
– “Não importa que o acerto de
corrupção tenha se ultimado
somente em 2014, quando Luiz Inácio
Lula da Silva já não exercia o mandato presidencial, uma vez que as vantagens
lhe foram pagas em decorrência de atos do período em que era Presidente da
República”.
Haja crédito pra receber as
vantagens até 4 anos depois do fim do mandato…
7. LAVAGEM DE DINHEIRO
A condenação por corrupção se
baseia em provas inexistentes, mas a pior parte da sentença é a condenação pelo
crime de lavagem de dinheiro.
Hipótese condenatória: lavagem de
dinheiro “envolvendo a ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento
164-A, triplex, e do beneficiário das reformas realizadas”.
Ou seja, o ex-presidente Lula teria
recebido uma grana da OAS na forma de um apartamento reformado e, como não
estava no nome dele, então isso seria lavagem pela “dissimulação e ocultação”
de patrimônio.
Isso é juridicamente ridículo.
Lavagem é dar aparência de licitude
a um capital ilícito com objetivo de reintroduzir um dinheiro sujo no mercado.
Isso é “esquentar o dinheiro”. Exemplo clássico: o cara monta um posto de
gasolina ou pizzaria e nem se preocupa com lucro, só joga dinheiro sujo ali e
esquenta a grana como se fosse lucro do negócio.
Então não faz o menor sentido falar
em lavagem nesses casos de suposta “ocultação” da grana. Do contrário, o
exaurimento de qualquer crime que envolva dinheiro seria lavagem, percebem?
Não só corrupção, mas sonegação,
roubo a banco, receptação, furto… Nenhum crime patrimonial escaparia da lavagem
segundo esse raciocínio, porque obviamente ninguém bota essa grana no banco!
8. DELAÇÃO INFORMAL (OU SEJA,
ILEGAL) DE LÉO PINHEIRO
Nesse mesmo processo, Léo Pinheiro
foi condenado a 10 anos e 8 meses (só nesse processo, pois há outras
condenações que levariam sua pena a mais de 30 anos).
Mas de TODAS AS PENAS a que Léo
Pinheiro foi condenado (mais de 30 anos) ele deve cumprir apenas dois anos de
cadeia (já descontado o período de prisão preventiva) porque “colaborou
informalmente” (ou seja, falou o que queriam ouvir) mesmo SEM TER FEITO DELAÇÃO
PREMIADA OFICIALMENTE.
Ou seja, em um INÉDITO acordo de
“delação premiada informal”, ganhou o benefício de não reparar o dano e ficar
em regime fechado somente dois anos (independentemente das demais condenações).
Detalhes da sentença:
“O problema maior em reconhecer a
colaboração é a FALTA DE ACORDO de colaboração com o MPF. A celebração de um
acordo de colaboração envolve um aspecto discricionário que compete ao MPF,
pois não serve à persecução realizar acordos com todos os envolvidos no crime,
o que seria sinônimo de impunidade.” –> delação informal
“Ainda que tardia e SEM O ACORDO DE
COLABORAÇÃO, é forçoso reconhecer que o condenado José Adelmário Pinheiro Filho
contribuiu, nesta ação penal, para o esclarecimento da verdade, prestando
depoimento e fornecendo documentos” –> benefícios informais
“é o caso de não impor ao
condenado, como condição para progressão de regime, a completa reparação dos
danos decorrentes do crime, e admitir a progressão de regime de cumprimento de
pena depois do cumprimento de dois anos e seis meses de reclusão no regime
fechado, isso independentemente do total de pena somada, o que exigiria mais
tempo de cumprimento de pena” –> vai cumprir apenas dois anos
“O período de pena cumprido em
prisão cautelar deverá ser
considerado para detração” –>
desses dois anos vai subtrair o tempo de prisão preventiva
“O benefício deverá ser estendido,
pelo Juízo de Execução, às penas unificadas nos demais processos julgados por
este Juízo” –> ou seja, de todas as penas (mais de 30 anos) ele irá cumprir
apenas dois anos em regime fechado…
9. TRAUMAS E PRUDÊNCIA
Cereja do bolo: o juiz diz que “até
caberia cogitar a decretação da prisão preventiva do ex-Presidente Luiz Inácio
Lula da Silva”, mas “considerando que a prisão cautelar de um ex-Presidente da
República não deixa de envolver certos traumas, a prudência recomenda que se
aguarde o julgamento pela Corte de Apelação antes de se extrair as
consequências próprias da condenação”.
É a prova (agora sim, uma prova !)
de que não se julga mais de acordo com a lei, mas pensando nos traumas e na
(im)prudência…
_______
Independentemente da sua simpatia
ideológico-partidária, pense bem antes de aplaudir condenações dessa natureza.
Eis o processo penal de exceção:
tem a forma de processo judicial, mas o conteúdo é de uma indisfarçável
perseguição ao inimigo!
Muito cuidado para que não se
cumpra na pele a profecia de Bertolt Brecht e apenas se dê conta quando
estiverem lhe levando, mas já seja tarde e como não se importou com ninguém…