Maria Aparecida de Aquino
é professora titular aposentada da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente,
colabora com o Programa de Pós-Graduação em História Social da mesma
instituição. Durante a carreira, se dedicou ao estudo da repressão política
durante o período da ditadura civil-militar no Brasil, especialmente a censura
exercida sobre os veículos de comunicação.
Nesta
entrevista à Agência Brasil de Fato,
ela aborda os motivos que levaram ao golpe de Estado, o papel exercido pela
imprensa e faz comparações com o atual cenário da política nacional. Segundo a
historiadora, há um elemento em comum entre passado e presente: “Uma das coisas que persistem é o
comportamento das elites. Ainda é muito parecido com o que era em 1964.”
Brasil de Fato: Quais foram os
motivos que levaram ao golpe de 1964?
A
gente precisa levar em consideração que no golpe estão presentes diversas
forças dentro do Brasil, bem como existiu apoio internacional - mais
especificamente, apoio dos Estados Unidos. Quando a gente pensa quais seriam os
motivos que levariam essas forças internas e externas a embarcarem numa
aventura, que foi o golpe de 1964 - aventura essa ilegal e ilegítima sobre
todos os aspectos - existem razões bastantes diversas. Se tivéssemos que
centralizar essas razões eu diria que, basicamente, foi o programa de reformas,
as chamadas reformas de base do então presidente João Goulart, o elemento
detonador dessa questão. Essas reformas atingiriam todos os setores:
penetrariam na educação, no mundo agrícola, na indústria. Era uma proposta para
mudar o Brasil.
Mas não se tratavam de reformas
feitas em outros países? Por que aqui não foram aceitas pela elite?
Sim,
era um projeto reformista, não revolucionário, mas “há elites e há elites”. Ela
não aceitou porque não suporta partilhar, essa é a característica da nossa
elite. Não apenas da elite do nosso país. É uma marca das elites dos países que
eram consideradas subdesenvolvidas.
Enquanto
você tem nos países considerados avançados, como Inglaterra, França, Alemanha,
uma determinada caracterização das elites, na medida em que não existe um
distanciamento tão grande entre aquele que pertence à elite e aquele que está
alijado na sociedade, no Brasil e em outras nações, você tem uma distância
imensa. Existem nações em que o menor salário e o maior não ultrapassa dez vezes.
Aqui não dá para mensurar quantas vezes ultrapassa. Consequentemente esse
distanciamento tão grande faz com que essa elite nossa não seja tão permissiva.
Ela
não admite, ela não é democrática. Ela é cruel, mesquinha. No momento em que
ela diz “não podem se sentar à mesa”,
ela está negando o próprio desenvolvimento. Porque é do acesso dessas pessoas a
bens que elas não teriam, e a possibilidade que elas teriam que, inclusive,
você tem o maior desenvolvimento do país. Quanto mais gente consumindo, partilhando,
mais o país será desenvolvido. Nossa elite nega inclusive o desenvolvimento. O
seu próprio desenvolvimento. É predatória, talvez seja o melhor adjetivo para
ela.
Hoje se fala muito do papel de
resistência à ditadura que os órgão de imprensa desempenharam. Como eles
atuaram antes do golpe?
Têm
um papel de protagonismo. Eles foram conspiradores. Toda a grande imprensa
estava na conspiração contra a democracia. Vai ser uma das articuladoras mais
importantes do golpe. O único veículo que não apoiou o golpe e se manteve ao
lado do regime deposto foi o jornal “Última Hora”, do Samuel Wainer. Por conta
disso, ele ganhou um inimigo total, que vai destruir o jornal. Demora pelo
menos quatro anos até ele perder a posse do jornal em 1968, mas é destruído. Também
ocorreu com o “Correio da Manhã”, que apoia o golpe, mas que dois dias depois
já está contra, se colocando na oposição, já que percebeu o monstro que ajudou
a criar. Por conta disso, também será destruído, pelo mesmo grupo que comprou o
“Última Hora”.
Então como se explica que parte da
grande impressa, após esse momento inicial, passa a resistir à ditadura?
A
maior parte dos órgãos de divulgação de notícias tem um tendência absolutamente
liberal. Faz parte dos objetivos do liberalismo a defesa da liberdade de
expressão e de opinião. Então, a liberdade de imprensa é um elemento central no
interior da plataforma liberal. A imprensa tem essa plataforma. Não é o tipo de
coisa que eles queriam que acontecesse. Embarcou numa terrível aventura,
descobriu que a canoa era furada, num determinado momento a canoa deles também
fura. O exemplo lapidar é o jornal que eu estudei, “O Estado de S. Paulo”. Foi
um grande conspirador. Os Mesquita [família dona do jornal] assumem que estavam
na conspiração, dois anos antes do golpe eles já faziam parte das reuniões que
discutiam como seriam o Brasil depois do apocalipse. Mas três anos depois do
golpe já está na linha de tiro, tanto que vai receber a censura. Talvez o
único, ao lado da revista “Veja” órgão da grande imprensa que tem censura
prévia no interior da redação.
Com o fim da ditadura, é possível
dizer que há uma contradição entre democratização política e a ausência de
democratização da mídia?
Os
grandes blocos de comunicação, o Brasil tem meia dúzia, se chegar a tanto, você
observa que eles não tem como seu ideal a defesa da democratização das
comunicações. Porque democratizar significa, ao fim, que você dará liberdade
para as pessoas se organizarem em pequenos jornais que nasceriam, que passariam
a ter direito à luz do sol. Para grande imprensa isso não interessa.
Quando
você pega “o grande jornal A” versus
“o grande jornal B” você vai ver
manchetes idênticas, até a fotografia de capa muito parecida. O mesmo para as
grandes revistas, parece tudo a mesma coisa. É bom esse mundo, né? Esse mundo
entre “iguais” agrada a grande imprensa, o mundo da diversidade não.
Na
realidade se está na defesa do oligopólio. Há grupos enormes que dominam fatias
gigantescas do mercado das comunicações. É uma defesa cooperativista. Não quer
que outros entrem. Para eles o “mesmismo” é bom. De forma alguma tem a ver com
liberdade imprensa. Liberdade de imprensa, inclusive, seria lutar pela
diversidade
Você
vai em uma cidade do Acre, tem uma concessionária dos grandes veículos. É isso
que está em jogo. Por isso que está jogo, a perda de domínio. No Brasil, antes
mesmo de se colocar em pauta, se faz o discurso de dizer que está se ameaçando
a liberdade de imprensa.
Nesse sentido, qual sua avaliação
mais geral sobre o papel da imprensa no fortalecimento da democracia?
Fortalece
enquanto defensora das liberdades democráticas, dentre elas a liberdade de
expressão e imprensa. Tem um papel importante sim, mas não se pode dizer que
ela seja fiel à democracia no sentido de que a democracia também significa
conviver com o diferente, com o antagônico. O que se vê hoje é a incapacidade
de viver com o antagônico. “Vocês estão
de um lado, eu de outro, não quero diálogo”. Hoje cumpre um papel péssimo,
nesse sentido
fico muito chateada e entristecida quando eu comparo as manchetes que antecedem
o golpe de 1964 e o que se faz hoje na grande imprensa. Só é comparável o que
se faz hoje em relação ao governo. A grande imprensa está fazendo isso de novo,
não aprendeu com a censura, com o fechamento com o empastelamento, não aprendeu
nada, repete a mesma coisa. Só a semelhança com a destruição que hoje se faz do
governo com o processo de destruição de que foi alvo o governo de João Goulart.
Quando
você acompanha as manchetes, as primeiras páginas, os editoriais daquela época,
eles são devastadores. Não é “queremos um Brasil melhor”, mas sim “o que está
aí não nos serve”, independente de ser democrático ou não, então partiram pro
ataque. Está acontecendo o pior que pode ocorrer, não se está dando
possibilidade de defesa para alguém que você colocou no chão. Usa-se todo seu
potencial e destrata cada um dos pontos do governo. “Nada é bom”.
“O Brasil teve coisas negativas, mas cresceu
o nível de emprego”. O “mas cresceu o
nível de emprego” é o mais importante, mas aparece no rodapé da página. É
clara a iniciativa para quem quiser ver e estiver prestando atenção.
Na sua opinião o que permaneceu
intocado mesmo com o fim da ditadura?
Hoje
pouca coisa. Uma das coisas que persistem é o comportamento das elites. Ainda é
muito parecido com o que era em 1964. As elites não evoluíram, não avançaram.
Enquanto o Brasil mudou muito, para melhor, um país que inclui muito mais
pessoas, e não só por causa dos últimos anos, vem num processo de inclusão
muito importante. A realidade que vivemos hoje está a léguas de diferença da
realidade de 50 anos atrás. Talvez a única que que persista é uma atitude
semelhante das elites, infelizmente.
Então as elites ainda se comportam
do mesmo jeito?
Quando
você analisa as elites que estavam posicionadas em 1964 elas são claramente
golpistas. Elas querem a derrubada do regime democrático. Elas não sabem e não
conseguem conviver com o Estado democrático. Portanto, partem, para sua
destruição e dissolução, que ocorre através do golpe, ilegal e ilegítimo.
Hoje
você tem uma elite que tem um pouco de receio. Ela tem um pouco de receio de
dizer “para nós acabou a brincadeira, a
bola é minha e não brinco mais” e assumir uma caracterização abertamente
golpista. Não que ela não flerte. Não que ela não seja capaz de embarcar em um
aventura terrível, pela forma como age, pelas considerações que ela faz.
Um
exemplo foi quando a presidenta Dilma se elegeu. Ela teve uma capacidade
eleitoral bastante grande no Nordeste. Quando você olha as redes sociais
falando dos nordestinos, você vai ver a cara dessa elite. Ela é exatamente
aquilo. Ela começa a dizer: “é esse tipo
de gente que elegeu, e nós somos melhores”. Ela tem condições, desejo e
vontade de flertar abertamente [com o autoritarismo].
Ou
seja, hoje você tem um processo ou uma proposta de inclusão social, que de uma
maneira ou de outra dá o acesso às pessoas que não teriam a determinadas
instâncias, desde a casa própria até o ensino universitário.
Essa
proposta descontentava, como descontenta hoje. A proposta de inclusão. Se o
Brasil vive um momento de crise, se é que existe a crise, se ela não é fabricada
pelos meios de comunicação, essa crise se deve fundamentalmente a esse
descontentamento. São os mesmos grupos, a mesma raiz, que não aceita que as
pessoas que não têm nem acesso às migalhas passem a se sentar na mesa.
Como a senhora analisa os protestos
pedindo impeachment, os “panelaços”?
Quem
bateu panelas? Foi a grande elite? Eu sou capaz de entender o porquê. Tem o que
perder, e é só por isso que está batendo panela. Eu não tenho dúvida que essa
gente está em defesa de seus privilégios. Existiu a tentativa de puxar um fio
de corrupção que envolveria o PSDB, mas foi engavetado. Então por que se diz
que só existe um criminoso, o PT?
O
Paulo Francis, há mais de vinte anos já falava de corrupção na Petrobras.
Faleceu porque veio um processo judicial que ele não conseguiu arcar. A
corrupção é exclusiva desse governo?
Mas
o consevadorismo, atualmente, não se resume à elite...
Uma
coisa é pensarmos no Brasil como um país jovem, que está vivendo um processo de
ascensão das chamadas classes médias, quanto a isso não há dúvida, mas é um
erro achar que nesse mesmo processo progressivo também terá o mesmo processo no
sentido de qual leitura eles terão da realidade brasileira. Infelizmente, a
leitura que se tem, na média, é conservadora.
Isso
se deve à formação do Brasil, uma escolarização muito baixa. Teve o acesso das
pessoas ao ensino, mas é um ensino transformador? Quando se pega a escola
pública, que atende à vasta maioria, essa educação transforma sua mentalidade,
prepara para os novos tempos? Se tivesse uma imprensa que fosse muito mais plural,
também contribuiria para que tivéssemos esses debates ampliados.
O que você diria para alguém que
defende o retorno da ditadura?
Pensa,
raciocina e observa o que o regime militar produziu. Um mundo sem luz. A
desigualdade se ampliou enormemente nesse período, os ricos mais ricos e os
pobres mais pobres. É isso que você quer para a sociedade brasileira? O remédio
para a sociedade brasileira é uma aventura antidemocrática? Para combater a
corrupção é necessário acabar com a democracia?
Para
pessoas que pensam nisso, eu aconselharia a ver as contas da Transamazonica. Ou
as contas nunca fechadas da Ponte Rio-Niterói. Ninguém falou, porque naquele
momento não podia falar. Se você levantar, você vai trazer uma quantidade de
coisas irregulares que arrepia os cabelos de qualquer um. Hoje, graças ao
caminho que a sociedade brasileira trilhou, nós temos liberdade de falar. O
autoritarismo corre ao lado da irregularidade, porque ele abafa a
irregularidade.