O
Conselho Universitário da USP aprovou, na terça-feira 4, a criação de cotas
sociais e raciais. A partir de 2018, 37% das vagas serão destinadas a alunos da
escola pública, número que deve subir para 40% em 2019 e atingir 50% em 2021.
Dentro dessa cota, 37% das vagas serão reservadas para pretos, pardos e
indígenas.
Por
Guilherme Boulos, na CartaCapital - Apesar
de a proposta inicial prever apenas cotas para estudantes da escola pública, a
forte mobilização do Movimento Negro, dos estudantes e de 300 professores que
apresentaram manifesto favorável às cotas etnorraciais foi decisiva para o
desfecho positivo.
Há
pouco mais de um mês, a Unicamp também aprovou cotas em seu Conselho
Universitário. Lá, além de 50% das vagas reservadas para alunos de escolas
públicas, até 37,5% do total será progressivamente reservado para pretos,
pardos e indígenas.
Foi
o suficiente para iniciar um desfile de chorume nas redes sociais. Não adianta
relembrar que, nas universidades onde as cotas foram implantadas, diversas
pesquisas apontam que o desempenho desses estudantes é igual e, em muitos
casos, superior ao dos estudantes não cotistas. Não adianta. O preconceito fala
mais alto.
É
impressionante a naturalidade com que repetem discursos meritocráticos, sem
qualquer sustentação nos fatos. A meritocracia pretende-se uma visão realista,
antiutópica, quando na verdade é o paradigma da ingenuidade. Honoré de Balzac
fez de um de seus principais romances, Ilusões Perdidas, um libelo contra essa
falácia.
Corria
o século XIX e o mito de Napoleão ainda estava em alta. Toda uma legião de
jovens europeus inspirava-se na ascensão daquele soldado a general, por seu
mérito, e acreditava poder reeditar o feito, cada um a seu modo. No romance, o
genial Balzac conta a saga de Lucien de Rubempré, jovem que sai do interior da
França acreditando que conquistaria Paris com seus versos.
A
história mostra como o sistema tritura os sonhos e os versos do rapaz. Os
poemas até que eram bons, mas isso estava longe de ser o principal. Era preciso
oportunidade, contatos, status social. Assim, nos diz Balzac, o sistema impõe
um filtro capaz de matar talentos e elevar medíocres. O “mérito” aqui depende
muito mais do berço e da classe do que do merecimento propriamente dito. É
preciso boas doses de ilusão e ingenuidade para crer que os melhores vencem no
final.
Voltemos
então às cotas raciais. A desigualdade no acesso à educação, ao trabalho e à
renda entre negros e brancos é inequívoca. Vamos aos dados da Pnad de 2015. Na
educação, 25,9% da população branca tem 12 ou mais anos de estudo. Entre a
população negra, somente 12% tem a mesma escolaridade, menos da metade. Entre
os brasileiros com menos de um ano de estudo, os negros atingem 14,4%, enquanto
os brancos chegam a 7,4 %.
No
mercado de trabalho, enquanto o homem branco tinha, em 2015, uma taxa de
desocupação de apenas 6,8%, a mulher negra chegava a 13,3%. Quando o assunto é
renda, a desigualdade salta aos olhos. O homem branco tem renda média de 2.509
reais, enquanto o homem negro ganha 1.434 e a mulher negra, somente 1.027.
É
possível interpretar esses dados de duas formas. Pode-se dizer que os negros e negras
têm menos escolaridade e menores ganhos por falta de mérito e esforço próprio.
Ou se constata o óbvio: tal cenário é resultado da brutal disparidade de
oportunidades sociais.
O
Estado brasileiro guarda uma dívida histórica com o povo negro, desde a
escravidão. As cotas representam uma iniciativa de reparação tardia e ainda
tímida de séculos de desigualdade racial. Devem ser saudadas como um avanço. E
aos fanáticos da meritocracia, que vivem no mundo da fantasia em que o esforço
se sobrepõe às engrenagens sociais, não lhes peço que leiam Marx, Simone de
Beauvoir ou Malcolm X. Isso seria demais. Leiam apenas Balzac, insuspeito de
comunismo.
Parabéns
ao Movimento Negro, grande responsável por pautar a questão na sociedade
brasileira.