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Quando a casa grande é tomada pela senzala


Na fazenda Roseira
O milho virou pipoca
Eu com meu tambu na mão
Sinhozinho não me toca.
(ponto de jongo)

Antes, o jongo acontecia nos terreiros das senzalas e, hoje, está no terreiro da casa grande!”. A fala de Alessandra Ribeiro, articuladora cultural da Casa de Cultura Fazenda Roseira, representa bem o que significou a resistência e, consequentemente, a conquista de toda uma comunidade e de alguns movimentos sociais: a ocupação da “casa grande”, a ocupação do casarão da Fazenda Roseira. Situado em meio a prédios e condomínios frutos da especulação imobiliária e em frente a uma das importantes avenidas de Campinas, cidade do interior de São Paulo, o casarão foi construído no século XIX e, agora, transformado em um centro de referência cultural de matrizes africanas, destacando-se por ser um espaço de fortalecimento e visibilidade da comunidade negra.

O casarão foi construído no século XIX e, agora, transformado
em centro de referência cultural de matrizes africanas.
Foto: Arquivo Casa de Cultura Fazenda da Roseira.
O local é gestado, juridicamente, pelo grupo de jongo “Dito Ribeiro” que, depois de sete anos de luta, conquistou, junto à prefeitura da cidade de Campinas, o Termo de Permissão de Uso do lugar. A conquista desse documento foi muito comemorada, pois, além de significar um reconhecimento da cidade pelo trabalho que já é desenvolvido, será a partir dele que novos investimentos, tanto federal como estadual, poderão ser viabilizados.

A história da resistência se iniciou quando o antigo proprietário da fazenda, André Cantúzio, começou a dilapidar o casarão e seu entorno. A fim de conseguir autorização da prefeitura para o loteamento de suas terras, a família Cantúzio, devido à legislação municipal, foi obrigada a doar a sede da fazenda e as construções próximas para serem transformadas em equipamento público comunitário. O problema é que esse antigo proprietário começou a desmontar todo o espaço. “Ele já havia desmanchado um galpão e levado todos os tijolos embora, mas a gota d’água foi quando começou a tirar as portas do casarão”, explica Alessandra ao se lembrar do dia em que o material começou a ser retirado e da reação da comunidade para evitar que um patrimônio público fosse saqueado.

Com o objetivo de lutar contra a discriminação, a fazenda
oferece retiros aos seguidores da umbanda e do candomblé.
Foto: Arquivo Casa de Cultura Fazenda da Roseira.
Inicialmente, a comunidade local instalou faixas no casarão lembrando às autoridades que aquele espaço já pertencia ao município e empreendeu uma vigília a fim de evitar a demolição da sede. A ocupação, ou seja, a tomada do local pelas famílias que residiam no entorno da fazenda impedindo a sua depredação ocorreu, de fato, quando o antigo proprietário estacionou um caminhão e iniciou a retirada das portas e de outros materiais. Nesse dia, o poder público foi acionado, a polícia foi chamada e a comunidade conseguiu impedir o crime. “A ocupação não foi pensada, foi reação à depredação” continua Ribeiro. Ainda segundo ela, “a elite prefere ver no chão algo que a pertenceu a ver o uso popular”. Em torno de 500 pessoas, entre integrantes da comunidade e vários grupos culturais de Campinas, participaram do processo de intervenção e ocupação da fazenda.

Hoje, a Casa de Cultura Fazenda Roseira abre todos os dias à comunidade e promove vários eventos: “Não estamos sozinhos. Podemos contar com 500 pessoas, mas isso nos impõe, também, um compromisso com pelo menos 500 pessoas”, afirma Alessandra. O custo de manutenção desse espaço de uso público está orçado em R$40.000,00 anuais. Tal valor é levantado, principalmente, por meio da promoção de eventos como o arraial afro-junino do jongo e a feijoada das Marias do jongo, bem como pelo oferecimento de cursos de formação sobre história e cultura afro-brasileiras.

O espaço tem como pilares de sustentação a educação – formação de jovens e professores; a cultura – promoção do jongo e do intercâmbio com comunidades que vivem no continente africano; e a etnobotânica – cultivo de plantas de origem africana e luta contra o racismo ambiental. A casa de cultura é uma comunidade de tradição e de ciência, pois faz registro de brincadeiras, cuida da história de seus antepassados e compartilha conhecimentos por meio de aulas de dança, cursos de línguas e biblioteca com temática afro. Promove, também, com o objetivo de lutar contra a descriminação, retiros entre seguidores da umbanda e do candomblé, entendendo que, apesar de essas serem religiões distintas e de possuírem diferenças, aproximam-se pela raiz africana e pela exclusão a que são submetidas.

A casa é espaço de eventos como o arraial afro-junino do jongo e a feijoada das Marias do Jongo, bem como pelo oferecimento de cursos de formação sobre história e cultura afro-brasileiras.
Foto: Arquivo  Casa de Cultura Fazenda da Roseira.
Os resultados de toda essa luta e resistência começam a ser percebidos. Alessandra lembra que o ano de 2014 foi o primeiro, desde que começaram os trabalhos, em que não receberam alguém perguntando se apenas negros poderiam frequentar o local e participar dos eventos. Com muito bom humor, questiona: “a Macarronada Italiana é só para italianos? Restaurante chinês é só para chinês?”. Maria Alice Ribeiro, mãe de Alessandra e pessoa fundamental durante a resistência e a ocupação da fazenda, comenta que, nas primeiras visitas das crianças da comunidade, elas lhe perguntavam se ela era a ‘tia Nastácia’. Ambas, mãe e filha, lembram, também, que nessas primeiras visitas, algumas crianças choravam ao vê-las com turbantes e tocando tambor, pois achavam que eram “capetas”. Isso mostra como o trabalho de desmistificação que fazem é importante e necessário. “Trabalho para que elas vejam como isso é bonito, e não assustador”, arremata Alessandra.

Outro ganho de todo o trabalho feito é a relação que a comunidade conseguiu criar com a mídia, principalmente, a campineira. Ribeiro comenta, fazendo menção à tese de mestrado de sua autoria intitulada Requalificação urbana: a fazenda Roseira e a comunidade Jongo Dito Ribeiro Campinas/SP , “a gente ocupou a Roseira e fez mestrado. A mídia sabe com quem está lidando. Assumimos um papel de protagonista”. No entanto, mesmo tendo conseguido conquistar o respeito e algum espaço na mídia, Alessandra sabe que o senso-comum jornalístico não trata bem a questão da negritude e que a relação da mídia tradicional com os movimentos não é positiva. Ela credita esse tratamento diferenciado ao fato de o Brasil ser um país racista, salientando a necessidade de se desconstruir essa ideia imposta e a imagem errônea e estereotipada que se faz do negro. “Acabar com o racismo não é função unicamente dos negros, é de todo ser humano!”

Atualmente, corre um pedido de tombamento imaterial do casarão, uma vez que o tombamento material seria muito difícil, visto que o local sofreu algumas reformas na década de 1920 que o descaracterizaram. O argumento de patrimônio imaterial vem da necessidade de defender a memória, “mas não a memória da elite branca, da casa do senhor. Quando olho para o casarão, vejo as contribuições dos meus ancestrais como as técnicas construtivas, por exemplo. Aí está a memória que defendo”, finaliza Alessandra. Dessa forma, a “senzala” não deixa a história ser apagada nem mal contada e resgata a presença africana na construção e no desenvolvimento da cidade de Campinas.