Primeiro neurocientista
negro a se tornar professor titular da universidade de Columbia, em Nova York
(EUA), autor do livro Um Preço Muito Alto: a jornada de um neurocientista que
desafia nossa visão sobre as drogas, o pesquisador norte-americano Carl Hart,
48, deixa, nesta quinta-feira, 3, Salvador, após cumprir três dias de uma
agenda de compromissos com a Iniciativa Negra por Uma Nova Política Sobre
Drogas (INNPD) e o governo estadual, por
meio das secretarias da Justiça e Direitos Humanos e da Segurança Pública.
Nessa entrevista exclusiva ao A TARDE, na segunda passagem pela capital baiana,
Hart fala sobre o trabalho que vem
desenvolvendo em relação à política mundial antidrogas (na visão dele "uma
política enganadora").
Entrevista cedida ao portal A Tarde
em 2015
Quais são suas principais ideias
sobre a política de drogas no mundo?
É
uma pergunta ampla. Escrevi um livro inteiro sobre isso. As políticas de drogas
são diferentes a depender de onde se está. No Brasil, o principal problema é
que as pessoas estão sendo induzidas ao erro, enganadas, em relação às drogas
na sociedade. Dizem à população que as drogas são um problema em si, quando as
questões estão ligadas à própria estrutura social, discriminação racial,
pobreza, falta de educação, falta de inclusão em certos grupos. O que há,
essencialmente, é um apartheid. E culpam as drogas, por meio de campanhas
contra o crack, como se o crack fosse o problema. O crack apareceu no Brasil
por volta de 2005, a pobreza está desde sempre, assim como a violência e o
crime. Atribuir essas questões à existência das drogas e dos traficantes é
desonesto. Sugiro às pessoas, principalmente aquelas que estão sendo colocadas
nas cadeias ou mortas pela polícia, que se levantem e digam: "Essa
política antidrogas é besteira!".
A respeito da defesa do sr. da
legalização ou descriminalização das drogas nos EUA, o mesmo pode ser aplicado
no Brasil?
Claro.
Seja legalização ou descriminalização, o que quer que funcione na sociedade
seria bom. Devemos perguntar quais questões queremos resolver: se estamos
preocupados com traficantes, teremos que pensar sobre a legalização, pois tem a
ver com o comércio. Por outro lado, traficantes não terão êxito se houver
inclusão social. Até descobrimos como sermos mais inclusivos, sempre teremos
problemas com o tráfico. Onde houver drogas e pessoas terá tráfico. Mas,
enquanto pessoas não forem incluídas, haverá economia clandestina.
O sr. crê que o uso de drogas passa
por um problema de saúde em vez de polícia?
Depende
muito. Para a maioria das pessoas que usa drogas não se trata de um problema de
saúde, embora possa se tornar. Pense, por exemplo, no uso do automóvel. Muita
gente dirige de forma imprudente e acaba tendo problemas, se envolve em
acidentes, o que acaba se tornando um problema de saúde. Mas a maioria da
população usa o automóvel de maneira segura e tal uso não se configura um
problema de saúde pública.
Quais diferenças o sr. percebe na
política antidrogas nos EUA e Brasil?
Recentemente,
escrevi um artigo mostrando como a política antidrogas dos EUA foi exportada
para o Brasil. É uma política criada para subjugar a população negra. Como
resultado, lá, um a cada três homens negros estão sujeitos a passar algum tempo
na cadeia. É uma estatística terrível. O que contribuiu para isso foi uma política
de combate ao tráfico, sobretudo de cocaína e crack, criada em 1986. Agora,
estamos revendo essa política, uma vez que percebemos que está errada e
inapropriada. O que está sendo feito no Brasil, nos dias de hoje, é basicamente
a mesma coisa que adotamos nos anos 1980. Portanto, podemos esperar os mesmos
resultados: pessoas negras, particularmente homens, enchem as prisões. Isso
quando não são mortas pela polícia.
O sr. foi criado em uma comunidade
pobre de Miami. Há alguma similaridade com nossas favelas?
Sim,
financeiramente pobre, mas culturalmente rica, em amor, em pessoas brilhantes.
Não tínhamos muitos recursos financeiros, mas tínhamos outros. Não é muito
diferente das comunidades onde os negros daqui são criados. Eu fui criado como
um pobre, não preciso ver como é aqui para saber. Vi a pobreza o tempo todo na
minha vida. A favelas daqui, em termos de arquitetura, são as piores que já vi.
Já estive em inúmeros lugares, nas favelas da África do Sul, mas as estruturas
das casas no Brasil são realmente ruins. Nos Estados Unidos, as pessoas são
pobres, porém seus lares não são tão desiguais. Há uma pobreza séria ocorrendo
aqui.
Esse talvez seria um dos motivos
pelos quais as pessoas enveredam pelo tráfico?
As
pessoas sempre perseguem as necessidades básicas, não importa em qual sistema
vivam. Elas precisam comer, morar, precisam do mínimo de respeito. Quando não
se tem isso, elas vão buscar em outro lugar. De repente, vem alguém que oferece
um 'trabalho' no tráfico ou qualquer outra atividade, e essa pessoa
simplesmente pega.
Temos um dilema na Bahia: a maioria
dos policiais é negra e educada para combater uma população predominantemente
negra. Qual a percepção do sr. sobre essa realidade?
Essa
pergunta tem uns componentes notáveis. A primeira coisa é que toda pessoa, de
qualquer raça, tende a ser morta por um semelhante dela. Por todo o mundo, não
é incomum. Quando falamos de negros, achamos que seria incomum, mas não é.
Segundo, quando pensamos na polícia, é uma organização que simplesmente faz o
que a estrutura de poder quer que ela faça. E a estrutura de poder, nesse caso,
é branca. Não é como se a polícia daqui se comportasse de forma anormal. Eles
sabem a quem obedecem. É simples. Por isso que estou tentando enfatizar que é
um problema não haver lideranças negras aqui. Por que, se houvesse, realmente
poderia se traçar um panorama sobre quais são os problemas da violência, de
fato. Não é uma garantia de que teríamos um entendimento por completo, até por
que nos Estados Unidos temos lideranças negras em inúmeros locais, mas eles são
igualmente ignorantes. Eles não entendem o que está acontecendo, enquanto
outros são conscientes. Dessa maneira, o fato de haver lideranças negras não é
garantia de que tenham uma leitura do contexto. Mas, certamente, essa presença
aumenta as possibilidades de compreensão desse quadro.
Para sustentar a proibição, políticos
no Brasil defendem que o sistema público de saúde não suportaria uma possível
legalização...
Provavelmente,
é algo estúpido e errado. Eu realmente não ouço políticos, não são pessoas que
devem ser ouvidas nesse assunto, mas pessoas que têm publicações nessa área,
que têm evidências, informação. Políticos, geralmente, são idiotas e, nem penso
neles.
Muitos pela proibição do drogas dizem que a maconha leva
ao uso de outras substâncias. Quanto há de verdade nisso?
Em
1937, a ciência acreditava nisso. Mas não estamos mais em 1937. As evidências,
hoje, são claras e dizer isso é de uma estupidez imensa. Eu fico surpreso que a
população permita que esse tipo de pessoa a represente.
E quanto ao álcool?
O
alcance é mais amplo e não é nada inesperado que mais pessoas tenham mais
problemas em decorrência do consumo do álcool. Volto à comparação com dirigir
veículos: a maioria das pessoas que bebe o faz de maneira segura. Quando
consumido em doses moderadas, chega a ser associado a benefícios positivos à
saúde. Obviamente, se as pessoas bebem demais, em excesso, elas terão
problemas, assim como qualquer outra coisa consumida imprudentemente. Uma das
consequências do uso abusivo, por exemplo, é a inclinação que as pessoas têm a
praticar sexo sem proteção. Fora isso, está tudo bem. Em qualquer sociedade ou
qualquer comportamento, potencialmente haverá problemas de todos os tipos. É
algo inerente ao ser humano. Se formos pensar que tudo é nocivo, que podemos
controlar tudo, a gente não vai nem comer. Não temos como evitar tudo que faz
mal, caso contrário, a gente não vive.
Salvador é a cidade com a maior
população negra fora da África. Ainda assim, nunca tivemos um prefeito negro.
Como o sr. vê isso?
É
algo vergonhoso. Percebo que há muito poucos negros em posições de liderança.
Por conta disso, penso que os negros daqui deveriam protestar. Deveriam ser
educados para dizer: 'Isso é inaceitável!" Até que as pessoas tenham
consciência disso tudo vai continuar na mesma. Enquanto houver essa falta de
inclusão, toda a conta vai ser creditada às drogas. Há um apartheid silencioso
acontecendo aqui.
O sr. acredita que o Brasil, assim
como ocorreu com Obama nos Estados Unidos, um dia terá um presidente negro?
Eu
não sei se esse deva ser o objetivo primordial do Brasil, por agora. Não faço
ideia. Até porque, se você me perguntasse se eu imaginaria que um dia haveria
um presidente negro nos Estados Unidos, eu diria não. No final, estaria errado.
Não sou muito bom nessas especulações. Penso que a população brasileira deveria
se focar mais na igualdade, na inclusão dos cidadãos no mainstream (posição de
destaque). Assegurar que deve haver mais negros com educação, moradia,
empregos, na classe média. Penso que esse deva ser o foco.
Durante a estada do sr. no Brasi
houve algum tipo de preconceito como um homem negro, sobretudo rastafári?
Não,
porque eu não sou o típico negro comum, uma vez que ando pelas ruas e as
pessoas meio que me reconhecem. Nós deveríamos andar pelas ruas e perguntar aos
nativos daqui como eles se sentem. A visão deles é mais importante que a minha,
porque eles vivem aqui todos os dias.
Então, o que realmente aconteceu no
Hotel Tivoli, em São Paulo, na semana passada?
Nada.
Absolutamente nada. Me disseram que um segurança vinha em minha direção para me
barrar, mas eu não vi. Pessoalmente, eu não vi nada. As pessoas começaram a me
pedir desculpas, sem motivo. Algum repórter falou com outra pessoa e vimos no
que deu. No final, eu fiz um vídeo para explicar que não aconteceu nada. A
notícia se espalhou como um vírus. Sabemos que há um ressentimento quanto à
discriminação racial aqui. Eu acho que as pessoas se envergonharam por algo
assim supostamente ter ocorrido comigo, por eu ser um estrangeiro. Por isso,
tentaram resolver rapidamente. Mas esse fato não é o que deveria ser discutido,
mas, sim, o racismo diário que acontece na sociedade. Fico feliz que esse assunto
esteja resolvido quanto a mim.