Esvaziar a cruz e vencer impérios – o memorial da Páscoa

 

O que eu mais gosto no aplicativo da bíblia que tenho no meu celular é que, quando você abre um versículo avulso, ele deixa um botão bem grande embaixo escrito: “VER CONTEXTO”. Isso me chama a atenção porque, em tudo que vivemos, mas principalmente na narrativa bíblica que nos formou como sociedade, o contexto é MUITO importante.

Eu sou uma mulher jovem, nascida, crescida, criada e vivida na igreja evangélica e foi o contexto que me libertou da religiosidade. Se hoje, vivo minha fé de forma emancipadora, tenho me curado de dores e vivido livre de dogmas, foi porque um dia o contexto me encontrou. Sem caô – se todo crente em Jesus Cristo fosse ensinado sobre o contexto sócio-histórico do tempo bíblico, muitas das nossas crises como sociedade religiosa teriam sido esvaziadas, já que entender o contexto é quebrar as correntes de controle e do poder do “único caminho”.

Nesse sentido concordo com Marx quando diz: “A existência precede a essência”; nenhum ser humano nasce pronto, mas o homem é, em sua essência, produto do meio em que vive, que é construído a partir de suas relações sociais em que cada pessoa se encontra. Assim como o homem produz o seu próprio ambiente, por outro lado, esta produção da condição de existência não é livremente escolhida, mas sim, previamente determinada. O homem pode fazer a sua História mas não pode fazer nas condições por ele escolhidas. O homem é historicamente determinado pelas condições, logo é responsável por todos os seus atos, pois ele é livre para escolher.

Vejam, Jesus era produto do seu meio, fez sua história mas não tinha como controlar as condições em que estava inserido e por isso foi crucificado. Jesus é um homem, negro, de Nazaré, que revoluciona o status quo do seu tempo, é condenado pelo império – à morte mais cruel – e ressurge esvaziando fisicamente a cruz, mas também a destruindo simbolicamente – o memorial da emancipação dos corpos divergentes.

Começo falando de contexto, justamente para chegar nesse ponto: a memória é aliada da história e a história só é possível com contexto. A morte e ressurreição de Jesus é, sem dúvida, um memorial para a história da humanidade. Mensagem forte e latente: ninguém é merecedor de tronco, tortura, humilhação e morte. Jesus denuncia, através da sua vida, um plano de extermínio e poder sobre corpos de não-poder que ousam divergir do único caminho. O Cristo destituii a ideia do único caminho!!

Não romantizo a cruz porque tenho memória! A memória não me deixa acreditar que a morte de Jesus está esvaziada de contexto social, histórico, econômico. Também não me deixa esquecer que ser produto do meio não é dizer amém para a ideia do único caminho – a cruz vazia é anúncio de liberdade para sermos protagonistas de nossas histórias.

Por fim a mensagem revolucionária da páscoa, que permeia o imaginário do nosso povo, é a mensagem de que é possível vencer o império, mesmo em contextos duros e cruéis. Jesus é a memória viva para quem crê, a cruz é a memória física para que, mesmo sem crer no Cristo, nos lembremos da mensagem histórica da sua existência. Podemos vencer impérios! Viver abundantemente e subverter poderes, é direito dessa nossa humanidade e isso fundamentalismo nenhum pode tirar da narrativa bíblica e nem da nossa experiência de fé.

Não romantizo a cruz mas não sugiro destruí-la para que lembremos dessa cruz, a vazia, e paremos de colocar corpos nela, paremos de permitir que impérios continuem colocando nossos corpos em calvários.

É nesse ponto que a memória bíblica se une com a memória do nosso tempo: Estamos em abril de 2021 vivendo a vertigem – mais de 330 mil mortos no Brasil, descaso do governo, assistindo à sensacionalização de massacres, a romantização de mortes. Todos os dias milhares de brasileiros são colocados em cruzes por uma estrutura diabólica autodeclarada “Cristã”. Jesus, ainda divergente – depois de 2021 anos-, não está mais na cruz, INCLUSIVE ninguém é merecedor de estar nela. O povo quer vida, pão, vacina e educação e cruzes vazias.

Pelos que morrem de covid, mas pelos que morrem de tiro, de frio, de fome, pelo descaso – a cruz é nosso memorial e nosso começo – não nosso fim.

Feliz páscoa!

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Por Rachel Daniel, produtora audiovisual, educomunicadora e feminista cristã. Constrói a Frente Evangélica pela Legalização do Aborto e é colaboradora da Mídia NINJA, espaço da publicação original.

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