O Ceará celebrou nesta quinta-feira (25) os 137 anos da “abolição da escravidão”, pois, de acordo com a historiografia tradicional, a província cearense foi a primeira do Brasil a “acabar” com a prática em que negros e negras eram vistos como propriedade de um “senhor”, quatro anos da assinatura da Lei Áurea (1888). Mas, houve mesmo um lei que decretou liberdade aos negros e negras cearenses? Que lugar tem ocupado a negritude nesse processo? Quais as mudanças e as permanências para a população negra no “pós-abolição”?
Foi
pensando nesses embates que tem orientado pesquisas de historiadores e
historiadoras, que o Blog Negro Nicolau promoveu na tarde desta quinta uma roda
de conversa via Google Meet com a temática “Abolição no Ceará e o
Protagonismo da Negritude: Mudanças e Permanências”. Inicialmente foram
convidados para participar e contribuir com a conversa os professores Vinícius
Freire e Nonato Torres, das redes estadual e municipal, respectivamente. Porém,
com a divulgação neste Blog os professores Ytalo Lima e Givaldo Pereira, de
Potengi e Brejo Santo, solicitaram o link de participação.
O
encontro virtual foi dividido em três momentos. O primeiro ficou sob a
responsabilidade do professor Nicolau Neto que além de contextualizar, destacou
e problematizou alguns fatores – a exemplos, como a historiografia tradicional
tem tradado sobre a temáticas da Greve dos Jangadeiros (1881) e do 25 de março
de 1884; o protagonismo negro na luta por liberdade; a (in)existência de uma
lei que decretou o fim da escravidão no Ceará e o pós-abolição. O segundo ficou
a cargo dos demais professores que comentaram acerca das discussões trazidas e
expuseram sobre as mudanças e as permanências do pós-abolição para a negritude.
Entre uma fala e outra, Nicolau fazia contribuições. No terceiro e último, cada
uma fez suas considerações finais.
Nicolau Neto
O
professor e fundador do Blog, Nicolau, começou mencionando sobre temas que são
caros à negritude, como por exemplo a narrativa que foi construída e ainda hoje
alimentada de que no Ceará não tem negro e costurou sua fala destacando que
essa é uma narrativa que não se sustenta e que ela é uma tentativa de apagar a
presença desse conjunto de pessoas e sua história. Mas que esse papel que fora
dado ao negro e a negra no Brasil e no Ceará através da historiografia tradicional,
especificamente, sempre foi rejeitado por eles/as. Para exemplificar, Nicolau
mencionou os recentes estudos de historiadores e historiadoras que trazem a
história de resistência e de lutas de personagens negros para a libertação e de
ter sua história e cultura visibilizadas e respeitadas.
Nesse
contexto, trouxe para a roda de conversa a Greve dos Jangadeiros que em agosto
próximo fará 140 anos, mas que só aparece a figura do pescador Francisco José
do Nascimento, o Chico da Matilde. Este que tem uma narrativa construída como o
herói da libertação e que foi alcunhado de “Dragão
do Mar”. Sem desfazer da importância da história dele, o professor destacou
que para além do Francisco, há o José e a Simoa, mas que não aparecem nos
livros didáticos. “E esse debate que
necessitamos fazer”, disse.
O José e a Simoa que ele frisou são, na verdade, o José Luís Napoleão e a Preta Tia Simoa que foram protagonistas nos primeiros episódios de luta por liberdade do povo negro cearense que entrou para a História como a Greve dos Jangadeiros. Se valendo das escritas do historiador e escritor Raimundo Girão e das pesquisas encabeçadas pela também historiadora e ativista negra do cariri, Karla Alves e em texto publicado no Blog Negro Nicolau (‘Preta Tia Simoa se apresentou para mim como um princípio de autocondução da própria história’), o professor trouxe para o momento as atuações de ambos nesse evento histórico. No século XIX, dentro do “tráfico intraprovincial”, o Ceará era a província que mais fornecia negros e negras para serem escravizadas em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, principais centros econômicos do Brasil imperial. Saindo da região norte do Estado com destino à capital da província para trabalhar como jangadeiro, José Napoleão, um negro liberto e que respondia pela chefia da capatazia Boris Preres, compra também a alforria de outras negros e vai se recusar a transportar negros e negras acorrentas em suas jangadas até os navios, de onde teriam como destino final a escravização.
Napoleão
e Tia Simoa se casam e na capital da Província, diz Nicolau, se mobilizam na
causa da liberdade e junto a outros decidem interromper o tráfico de seus
iguais. A Preta Tia Simoa, uma negra liberta, durante o momento em que os
praças (os policiais) se deslocavam para prender seu esposo e demais, já se
tinha se organizado e mobilizado a população da capital e foram ao encontro dos
jangadeiros para apoiar e reforçar a luta por liberdade. O episódio se deu
entre os dias 27 e 31 de janeiro de 1881. O caminho para a libertação estava
feito e nesse intervalo de dias, homens brancos pertencentes a Sociedade
Cearense Libertadora procuraram José Luís Napoleão na zona praieira pedindo
para que ele ficasse a frente da campanha pela abolição. Mas receberão um não
de José Napoleão sob a justificativa de que não iria servir para os fins da
sociedade e que iria indicar o Francisco José do Nascimento (Chico da Matilde).
É nesse momento que o “herói negro” da abolição desenhado pela historiografia tradicional
surge. A trajetória dos líderes dos episódios dos dias 27, 30 e 31 de 1881 não
estão nos livros didáticos, não fazem parte de matérias jornalísticas, pontuou
o professor. Essa discussão precisa ser feita.
Outro
ponto que confronta com a história escrita e contada nas escolas é(in) existência
de uma lei que decretou o fim da escravidão na província do cearense em 1884,
aos moldes da Lei Área de 1888. Segundo o texto do professor do município de
Brejo Santo, César Pereira, ao revisar um artigo do historiador norte-americano
Billy Chandler intitulado “Os escravistas
renitentes de Milagres – um pós-escrito à história da escravidão no Ceará”
e republicado posteriormente na Revista do Instituto do Ceará, César vai
destacar que o artigo causará um debate que coloca em xeque o título dado ao
Ceará de “Terra da Luz”, uma vez que o Ceará continuou tendo pessoas
escravizadas pós 25 de março de 1884, citando como exemplo Milagres onde
permaneceu com escravizados diante da resistência desses senhores escravagistas.
Outro
ponto importante citado no texto de César (A POLÊMICA EMANCIPAÇÃO DOS ESCRAVOS
EM MILAGRES, CE, publicado originalmente do site O Kariri), é que não houve uma
lei decretando o fim da escravidão no Ceará. O que houve de fato foi “mas uma
festa montada pelos clubes abolicionistas e a elite de Fortaleza que comemorava
a notícia de que na maioria dos municípios e vilas cearenses já não havia mais
escravos.” Citando César, Nicolau mencionou também que a lei que poderia fazer
com que os escravagistas viessem a aceitar a libertação de escravizados e
escravizadas é de um anos antes (1883) e esta também não fazia menção a
proibição da comercialização de pessoas negras, mas tão somente aumentava a
carga de impostos da matrícula dos/as escravizados/as. O valor da taxa para
declarar a propriedade de escravizados era quase igual à da compra destes, o
que dificultou a prática escravistas, mas não a extinguiu.
Para encaminhar o segundo momento, Nicolau destacou que o pós-abolição trouxe algumas mudanças para a população negra em que pese a políticas públicas afirmativas, como o Estatuto da Igualdade Racial, as leis 10.639/03 e 11.645/08, as leis de cotas raciais nos vestibulares (com enfoque na URCA), a lei de cotas raciais em concurso público a nível de Ceará sancionado pelo governador Camilo neste dia 25 de março e a lei 674 de 2017 que instituiu o dia 20 de novembro como ponto facultativo em Altaneira, todas frutos da atuação dos movimentos negros. Em que pese as permanências, muito mais sentidas, destacou o racismo que está cada vez mais forte e que é preciso que as instituições assumam seu papel na luta antirracista disseminando o debate a respeito da questão racial, contribuindo para desarranjar todas as formas de discriminação e preconceito presentes diariamente.
Nonato Torres
Nonato,
professor e que está vereador por Altaneira, destacou como fator principal da
conquista da “abolição” do papel foi
a luta e a resistência negra. Para ele, é inegável a importância das leis
trazidas por Nicolau e entende como ele, que se elas ficarem apenas no papel,
sendo cumpridas em parte ou não cumpridas, elas serão apenas “uma representação simbólica de que as coisas
estão sendo feitas.”
O professor frisou ainda que as leis enquanto políticas afirmativas e
recompensatórias ainda são poucas diante da contribuição dada pelo povo negro e
das desigualdades geradas a partir do racismo.
Vinícius Freire
Professor
da rede estadual e servidor público por Altaneira, Vinícius arguiu que apesar
de reconhecer a necessidade e importâncias dessas ações afirmativas elencadas,
acredita não ter havido grandes mudanças visto que em pleno século XX ter que
construir leis para a derrubada do racismo.
Ele
citou que o caminho para superar a discriminação, o racismo e a homofobia, por
exemplo, para necessariamente pela escola. Citou como ações desenvolvidas por
ele dentro da ambiência de ensino o projeto “Clube de História” que discute com
estudantes e professores temáticas como o racismo e gênero.
Vinicius
destacou ainda que é preciso mesmo construir narrativas que problematize a
historiografia tradicional, trazendo ao campo do debate personalidades invisiblizadas
como o Napoleão, a Tia Simoa, a Tereza de Benguela, Dandara e tantas outras que
ajudaram a construir o pais e que foram peças essenciais na luta pela liberdade
de si e dos demais escravizados.
Ytalo
Lima
O Professor,
natural de Potengi e mestrando em Educação, Culturas e Identidades pela UFRPE,
Ytalo Lima, falou sobre a importância do processo de autoafirmação, ao passo
que frisou os problemas que ocorrer com as cotas raciais, inclusive dissertando
que foi alvo deles quando do processo de seleção que participou. Segundo ele, as
vagas de cotistas tinham sido colocadas para a ampla concorrência.
Outro
problema trazido por Ytalo e que faz parte das permanências é o que ele chamou
de “bode expiatório”, onde algumas pessoas para disfarçarem o racismo ou
ocultarem, chegam a afirmar que em determinada instituição tem negro, negra. Para
ele, “o fato de uma escola ter um diretor
negro, uma diretora negra, não faz dela antirracista.”
Givaldo Pereira
Mestrando
em Educação pela URCA e professor em Brejo Santo, Givaldo, afirmou que as
permanências aparecem com outras correntes e que para quebra-las é necessário a
descolonização do currículo escolar. “É
preciso uma mudança de postura para a construção de uma educação antirracista”,
pontuou ele ao tempo em que disse que “as
instituições perguntam mas não querem respostas. Não querem saber da
necropolítica e das nossas referências como essas que foram colocadas.”
O professor
mencionou também que há trabalhos de professores e professoras que estão fazendo
a diferença e que é sua intenção viabilizá-los e mencionou a disciplina que
fala sobre o Pensamento Negro dentro do mestrado como referência nesse sentido.
Ele,
assim como os demais classificou o encontro como uma resistência e que saiu
provocado.
Referências
https://negronicolau.blogspot.com/2021/02/preta-tia-simoa-se-apresentou-para-mim.html
http://negronicolau.blogspot.com/2017/05/conheca-lei-altaneirense-que-institui-o.html
https://negronicolau.blogspot.com/2018/11/personalidades-negras-que-mudaram-o.html
https://www.okariri.com/milagres-cariri/a-polemica-emancipacao-dos-escravos-em-milagres-ce/
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