Eu, meu pai e meu filho nos movimentos de João Alberto

 

(FOTO/ Diego Vara/Reuters).

Um advogado parte de sua insurgência ao ser tratado como um cidadão de segunda classe para discutir o racismo institucional nas empresas brasileiras.

Logo que assisti pela primeira vez às imagens que antecederam o assassinato brutal de João Alberto Freitas, eu me vi em cada um dos seus movimentos corpóreos frente aos que logo seriam seus algozes. O questionamento, a manifestação de indignação e insatisfação com o tratamento que lhe era dado, o retorno ao caixa seguido de perto, a conversa com a esposa. A tentativa de se mostrar livre. Enquanto isso, todo o sistema o fitava e aumentava o aparato institucional em seu entorno. Quantas vezes fui seguido por olhos que condenam? E nunca sem que os questionasse diretamente com meu olhar e gestos, desafiando perigosamente a narrativa preconcebida.

Para os protocolos de segurança privada atuais em supermercados, lojas de shoppings e outros estabelecimentos de atendimento direto ao consumidor, um jovem negro é antes de mais nada condenado, para depois passar a suspeito. E somente depois da violência institucional já praticada, desde que haja robustas provas de não culpabilidade, a exemplo de imagens de circuito de câmeras ou dos celulares de plantão, poder ser, talvez, elevado a inocente. Eis o percurso da presunção de inocência para jovens negros em estabelecimentos comerciais no Brasil.

Mesmo assim, nunca me fiz de rogado. Assim como parece ter feito João Alberto, também questiono as feras à espreita, recebendo como resposta o olhar indiferente, de quem já mediu e calculou com menosprezo a cotação da minha vida, pronto para levar a cabo a solução final. “Quem esse preto pensa que é?”, os olhos perguntam, sem que lábios nem mesmo se movam.

Não foi muito diferente do episódio em que meu pai e eu fomos atacados por seguranças de uma concessionária de automóveis logo que completei 18 anos, algo que sempre entendi como perverso rito de passagem para minha maioridade na masculinidade negra, já vista pela lente do racismo como intrinsecamente violenta. Após uma discussão pelo péssimo atendimento que nos foi dispensado na concessionária, depois de perguntarmos três vezes com direcionamentos diferentes onde ficava o setor de seminovos, o terceiro funcionário, sem interromper sua conversa ao telefone, nos ouvindo reclamar um atendimento melhor, logo entendeu que no nosso caso não deveria gastar sua valiosíssima saliva, sinalizando com a mão e a mirada de canto de olho para que os seguranças finalizassem a fórceps a discussão, nos enxotando da mesa de atendimento.

Meu pai e eu resistimos ao máximo à retirada forçada e, logo, à troca de socos e pontapés que se seguiu com três seguranças. Assim que recuperamos algum fôlego, fomos denunciar os fatos na delegacia mais próxima, onde ironicamente meu pai sofreria nova violência, ficando detido do fim daquela tarde até altas horas da madrugada, sob a imputação de desacato. Segundo a delegada de plantão, eu deveria me calar, já que aos 18 anos completos, ela também poderia me dar voz de prisão. Ao amanhecer, já acompanhados de advogado, mas ainda atônitos, soubemos que desde o início nossa chegada no distrito policial já era esperada, a partir de ligação telefônica feita por um tal funcionário da concessionária, enquanto estávamos no percurso.

Portanto, ao ver e rever as imagens de João Alberto lutando até o último minuto por sua vida, não pude evitar de pensar que realmente poderia ter sido eu em seu lugar, ou meu pai, ou um parente, ou um amigo. Mas o mais difícil mesmo é pensar em meu filho. É para ele que olho enquanto escrevo este artigo. E é realmente nele que eu mais me vejo, em repetidas doses homeopáticas ao longo de sua ainda curta existência. Com um ano e meio de vida, está justamente na fase de repetir minhas expressões faciais, meus gestos, minhas interjeições, meu jeito. E os medos, serão também repetidos?

Quando analisamos os números revelados a cada novo relatório sobre violência no país, atestamos que a normalidade com que se trata os homicídios sistemáticos de jovens negros se dá por seu pertencimento racial. É como se seus corpos acumulados aos montes cotidianamente materializassem a paisagem social que se espera. Sua natureza morta é o quadro que o Brasil ostenta na sala de estar, onde os jovens negros não estão justamente porque este é o projeto do país.

Neste sentido, uma empresa fundada no racismo institucional pode ter mecanismos que se assemelham a regimes ditatoriais: uma institucionalidade que afirma sua pretensa democracia racial e uma parainstitucionalidade que tortura, em seus porões, aqueles que se insurgem ao serem tratados como cidadãos de segunda classe. É necessário romper com essa lógica para que um dia possamos ter outras possibilidades de relações sociais, para então olharmos para trás e vermos cada vez mais distante nosso antigo regime.

Por isso, quando falamos de equidade racial no trabalho, particularmente em empresas, não estamos nos referindo a belas campanhas de marketing adocicadas por uma ideia de diversidade plastificada que nada diz. Mas sim do racismo institucional que precisa urgentemente ser desmantelado no Brasil e da quebra do ciclo de violência a que está submetida a juventude negra, por meio do acesso a seus direitos fundamentais, principalmente o direito ao trabalho digno, considerando sua condição de pessoa em situação peculiar de desenvolvimento, tal como preceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Isso só é possível com medidas estruturais, ressignificando relações sociais que ainda se dão pela hierarquização de pessoas conforme seu pertencimento racial, ou seja, pelo sistema de opressão que é o racismo. O modelo atual de contratação de empresas de segurança privada precisa ser revisto, assim como diversas outras práticas nesta seara. Se não for assim, continuaremos a contabilizar os corpos que hoje são mortos não só por agentes de segurança, mas pelas próprias empresas que os contratam como catalisadores das tragédias cotidianas do racismo institucional.

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Por Daniel Bento Teixeira, no Nexo.

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