Negro e nordestino, Luiz Gonzaga contrariou todas as estatísticas

 

Professor Nicolau Neto em visita ao Museu do Gonzagão, em Exu (PE), com a turma do curso de Pedagogia de Araripe (CE). (FOTO/ Turma do curso de Pedagogia).

Homem preto, nordestino, integrante de uma família de trabalhadores rurais, Luiz Gonzaga contrariou todas as estatísticas antes de ser consagrado como um dos mais relevantes cantores da música brasileira e, porque não? mundial. Se vivo, o artista, que é motivo de orgulho para a cidade de Exu, interior de Pernambuco, completaria 108 anos hoje, uma data que entrou para o calendário como o Dia Nacional do Forró. A trajetória de sucesso do criador e Rei do Baião, como ficou iconicamente conhecido, também esbarrou em preconceitos regionalistas, que só não foram maiores do que o seu talento e persistência.

Segundo dos nove filhos paridos por Ana Batista com Januário José, Gonzaga morreu aos 76 anos de idade em agosto de 1989 na capital pernambucana. A vida simples no interior do estado serviu de fonte primária de inspiração. Seu Januário trabalhava na roça, mas, nas horas vagas, tocava acordeão e consertava instrumentos musicais. Foi com ele que Luiz teve os primeiros contatos com a música, que o levaria mais longe do que qualquer outro familiar ou conterrâneo seu já chegou. O banditismo e o coronelismo ainda eram marcas fortes no Nordeste de então, o que tornava a vida mais castigada para a população da região a mercê dos desmandos dos poderosos.

Pobre e preto, saiu da casa dos pais no final dos anos 20 depois de um relacionamento com a filha branca de um “rico coroné”, que o ameaçou de morte. A confusão aliada aos problemas familiares, motivou sua fuga da casa dos pais, para onde só voltaria 16 anos depois. Sem emprego e formação, Gonzaga decidiu entrar para o Exército, às vésperas da Revolução de 30. Naquela época, o alistamento era uma forma de garantir comida, moradia e dinheiro.

Foi no ano de 1939 que o cantor pediu baixa do quartel onde serviu em Minas Gerais e resolveu se mudar para o Rio de Janeiro cumprindo uma trajetória comum aos nordestinos de sua época, que migragram para o Sul e Sudeste do país em busca de melhores condições de vida. Nesta época, o Nordeste apresentava a menor expectativa de longevidade do país com uma média de 37 anos de expecativa enquanto que o Sul chevaga aos 49 e, 43,5, no Sudeste, segundo dados do portal Determinantes sociais da Saúde. As diferenças regionais, desde as décadas de 1930-40, já demostravam uma concentração de investimentos nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, que se beneficiaram de iniciativas nos sistemas de saúde pública, previdência social, infraestrutura urbana e regulamentação do trabalho. Todos esses fatores concorreram para o controle e redução das doenças infectocontagiosas, o que não ocorria no Nordeste do país.

Professor Nicolau Neto em visita
ao Museu do Gonzagão.
 

Na cidade carioca, Gozaga começou a trabalhar como artista de rua. Assim, deu início a um projeto musical que começaria a dar frutos quando tirou nota máxima no programa do exigente Ary Barroso, da Rádio Tupi, onde apresentou “Vira e mexe”, canção de sua autoria. Nessa época, o traje exigido nas apresentação era o smoking. Certo dia, em 1940, influenciado pelo contemporâneo sanfoneiro Pedro Raimundo, gaúcho que tocava com bombacha típica dos pampas, Gonzaga decidiu assumir a identidade nordestina nos trajes, que já o acompanhava nos shows públicos, e apareceu na Rádio Nacional, grande emissora de então, vestido de vaqueiro. Foi impedido de atuar pelo então diretor artístico da emissora, Floriano Faissal. “Marginal, não. Roupa de cangaceiro, aqui, não”, teria esbravejado Faissal.

Existia, de fato, naquela época, na cultura urbana do Rio, uma valorização do bolero, do foxtrote, das músicas que faziam a trilha sonora dos filmes americanos e, por conta disto, um certo preconceito com relação à música nordestina. E isto se estendia à vestimenta”, relatou, anos mais tarde, o apresentador da emissora, Gerdal dos Santos. Nos anos de 1940, o traje típico do sertanejo nordestino ainda era associado ao bando de Lampião, que foi morto pela polícia dois anos antes, em 1938. Apesar do preconceito, Gonzaga não se intimidou. Foi aperfeiçoando o traje, que já usava em suas apresentações fora da rádio, até conseguir impor sua imagem e o figurino na emissora. A partir daí, o chapéu de couro e as peças de sua indumentária foram virando uma das marcas registradas do cantor.

Uma voz que representa todo um pedaço esquecido do Brasil”. Foi assim que Gonzaguinha, filho de Luiz Gonzaga, apresentou o cantor no Festival da Canção, em 1980, uma das últimas turnês do velho Lua. A devoção do Rei do Baião pela terra natal o acompanhou por toda a sua trajetória e era algo negritado até no sotaque que fazia questão de adotar em entrevistas e nas construções de canções que compôs sozinho ou em parceria com nomes como Miguel Lima, Humberto Teixeira e Zé Dantas. A escolha se justifica pelo preconceito linguístico que a região Nordeste sofria e que ainda é uma realidade nos dias atuais.

Gonzaga manteve-se fiel às suas origens mesmo seguindo carreira musical no sudeste do Brasil e fez questão de exaltar os traços linguísticos de sua região. Suas letras falavam da vida simples e, muitas vezes, sofrida do seu povo, mas com uma poética original e caracterizada por elementos da musicalidade popular negra como o xote, o xaxado e o forró pé de serra, tendo como base a sonoridade da sua inseparável sanfona. Não era só de dor que ele falava em suas canções, mas dos causos e as alegrias dos sertanejos, que ganharam um “porta-voz”. Ao assumir o sotaque regional, ajudou na valorização da cultura nordestina, além de aproximar imigrantes no sul do país a suas origens.

A obra de Luiz Gonzaga ensinou muito sobre o Sertão e sua gente e, até hoje, é fonte para pesquisas acadêmicas como a dissertação “A oralidade e imagética em Luiz Gonzaga: uma análise de conteúdo da obra musical do Rei do Baião”, do mestre pela Universidade Federal de Pernambuco, José Mário Austregésilo da Silva. O trabalho se dedicou a analisar a oralidade na sua produção que revelou narrativas do Sertão “importantes para a compreensão das representações do cotidiano nordestino”.

É incontestável a influência de Gonzaga para a construção da identidade cultural do Brasil e até os clichês são "perdoados" porque eles eram perpassados por muito respeito e reverência. “Gonzaga desfaz equívocos quanto à identidade do homem e da região, provocando uma nova visão da cultura brasileira”, discorre José Mário em sua dissertação. A pesquisa aborda ainda aspectos como as relações do compositor com a indústria cultural, sua produção discográfica, o rádio como mídia mais importante da sua época, elementos fundamentais para a compreensão da construção do país.

As recordações que guardou das terras por onde passou ao longo dos quase 50 anos de carreira estão impressas nas mais de 500 canções distribuídas em 56 álbuns que lançou ao longo de sua trajetória. A dedicação à música tinha raízes fincadas num profundo senso de responsabilidade e compromisso com o luar do sertão que fazia questão de exaltar por onde passava. Luiz Gonzaga era um homem do povo que respeitou não só os oito baixos do pai Januário, mas toda a diversidade cultural do chão que nunca deixou de pisar. “Baião é música pra gente que trabalha, pra gente de bem. É para ser tocado nas fábricas, nos quartéis, escolas, ruas e praças. Baião é raça, é lágrima, é suor”, dizia o grande Lua, que segue vivo na memória afroafetiva da música popular preta e brasileira.

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Com informações do Alma Preta.

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