Abolição no Ceará e a ideologia de dominação, por Karla Alves

Karla Alves. Colunista do Blog Negro Nicolau. (FOTO/ Reprodução/ Facebook).


Em 25 de março comemora-se o dia da abolição da escravidão no Ceará como o feito de maior orgulho na história deste estado, já que decretou o fim do trabalho escravo quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea de 1888.

O prestígio desse pioneirismo é expresso em monumentos e outros símbolos da identidade social, como no hino do Estado do Ceará, conferindo ao estado o título de “Terra da Luz”. Terra esta que pouquíssimos anos antes de decretar a abolição era a província que mais fornecia mão de obra escravizada para Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo no tráfico interprovincial de seres humanos tornados escravos, após a proibição do tráfico transatlântico.

Observando a letra do hino estadual, bem como os monumentos em municípios como Redenção, por se tratar da primeira cidade que aboliu a escravidão no Ceará, percebemos com facilidade que a memória glorificada é a da abolição, mas não a da Liberdade.

Por buscar perpetuar os símbolos da escravidão e os feitos da elite cearense engajada na luta pela abolição através das sociedades libertadoras.

Esse tipo de discurso reforça o imaginário de dependência tão comum ao pensamento colonial destinando à população negra. Uma identidade coletiva fundamentada na suposta necessidade de tutoria onde, mesmo elegendo um herói negro como o célebre Dragão do Mar, narra sua história sustentada na iniciativa “altruísta” da elite branca cearense que elege a si mesma como protagonista da história, mascarando, contudo, os interesses econômicos que moviam seu engajamento sob o disfarce da ação humanitária.

Era um tipo de exploração sendo substituído por outro, de modo a manter a elite como elite e os escravizados como explorados, mal assalariados e sustentadores dos privilégios da elite. A abolição deveria, portanto, se efetivar de maneira a manter a estrutura social herdada do sistema escravocrata. E, para isso, nada melhor que preparar o campo ideológico, ou seja, o pensamento social, criando uma “ consciência” coletiva polarizada entre opressor e oprimido, onde o oprimido necessita da tutoria, da ajuda “humanitária” do opressor (arrependido?) para se livrar das correntes da dominação.

Para ilustrar com fatos históricos, relembro o protagonismo da Preta Tia Simoa na greve dos Jangadeiros realizada em janeiro de 1881, na capital da província, onde essa liderança religiosa se articula e mobiliza parte da população cearense para apoiar a greve daqueles que eram responsáveis por transportar em suas jangadas os escravizados da praia até as embarcações ancoradas no mar. Vale registrar que, naquele momento, o chefe da capatazia de Jangadeiros era o esposo de Simoa, José Luiz Napoleão, escravizado liberto que comprou sua própria alforria (e também a de outros companheiros de cativeiro) e que se negava a transportar os negros para as embarcações que os levariam para serem escravizados em outras províncias. Vale registrar também que esta greve foi o episódio que impulsionou os acontecimentos para a efetivação da abolição que seria decretada três anos mais tarde.

Após a greve dos Jangadeiros, que durou quatro dias, o companheiro de Simoa seria procurado por membros da Sociedade Cearense Libertadora para que ele se tornasse membro e viesse a liderar a campanha abolicionista na zona praieira. Mas José Luiz Napoleão se nega e apresenta Chico da Matilde (o Dragão do Mar) como homem mais adequado para os interesses dos abolicionistas da Libertadora. Mais tarde, José Napoleão funda junto aos seus companheiros de luta o Club dos Libertos e continua na luta por liberdade, mesmo após a abolição. Contudo, é curioso notar que as notícias sobre a greve publicadas nos jornais da época não fazem qualquer menção à Preta Tia Simoa ou ao seu esposo, José Luiz Napoleão. Mesmo o jornal abolicionista de maior prestígio, o jornal “Libertador”, pertencente à Sociedade Cearense Libertadora, não registra o protagonismo ou mesmo qualquer participação de Simoa ou do seu companheiro na greve.

Esta ausência de registro histórico demarca uma diferença crucial entre abolição e liberdade: o processo abolicionista no Ceará ou no restante do país não buscava a liberdade para a população negra, mas a transição ordenada de um modelo de exploração para outro, de maneira a assegurar os interesses econômicos da elite. Por outro lado, o protagonismo de Simoa ao lado dos seus companheiros e companheiras ocultas na historiografia oficial são exemplos de luta pela liberdade que, sabiam eles, não estava assegurada com a abolição.

Não estou querendo minimizar a importância da efetivação de uma lei que determina o fim do trabalho escravo no Ceará, no Brasil ou no mundo. O que pretendo aqui é provocar uma reflexão sobre o uso do discurso como ferramenta de dominação ideológica.

O povo negro tem sua história inscrita na luta pela vida desde que os primeiros negros puseram forçadamente os pés nas terras brasileiras.

Essa luta começa através da recordação, já que, sem livros, sem fotografias, sem qualquer registro de sua história que não fosse seu próprio corpo, pretos e pretas registraram suas lembranças através da luta por sobrevivência recriando aqui modelos de organização social que trouxeram em sua memória, a exemplo dos Terreiros de religiosidade negra, onde Simoa era liderança, como indica os prefixos “Preta” e “Tia” associados ao seu nome. Ela é uma referência da história de Liberdade na qual o povo negro cearense ainda luta. Que sua memória seja uma semente a frutificar ações de autonomia e mobilização negra nessa Terra.
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Karla Alves é graduada com licenciatura em História pela Universidade Regional do Cariri (URCA), integrante do Grupo de Mulheres Negras do Cariri Pretas Simoa e colunista do Blog Negro Nicolau.

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