Políticas de comunicação e racismo 18 anos após Declaração de Durban


Marcha da Consciência Negra em São Paulo (SP)/ Mídia Ninja/ Reprodução/ Brasil de Fato.


O ano de 2019 marca a maioridade da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Realizada na África do Sul, país que havia colocado, há menos de uma década, fim a um regime de segregação racial que durou quase meio século, o apartheid, a Conferência de Durban, como ficou conhecida, reuniu representantes de governos, movimentos sociais, organizações não-governamentais, universidades, empresas, grupos de mídia e centros de pesquisa de 163 países, entre 31 de agosto e 8 de setembro de 2001.


Abandonada pelos governos dos Estados Unidos e Israel, que não aceitaram assumir medidas reparatórias pelos regimes escravocratas e colonialistas ao longo da história, a Conferência de Durban foi precedida de encontros regionais e temáticos em diversas partes do mundo. O evento aprovou uma Declaração e um Plano de Ação com um conjunto amplo de apontamentos e propostas de políticas públicas para a superação do racismo e a garantia da diversidade étnico-racial.

A Declaração de Durban é, ainda hoje, o mais abrangente instrumento multilateral nas questões relativas ao racismo e à discriminação racial. Ela já conferia – há 18 anos – um papel central aos meios de comunicação no que diz respeito às questões étnico-raciais.

Uma das preocupações da Declaração foi a representação midiática estigmatizada de povos historicamente oprimidos. Conforme trecho, “algumas mídias ao promoverem imagens falsas e estereótipos negativos dos indivíduos e grupos vulneráveis, particularmente de migrantes e refugiados, têm contribuído para difundir os sentimentos racistas e xenófobos entre o público e, em alguns casos, têm incentivado a violência através de indivíduos e grupos racistas”.

De igual maneira, a Declaração expressou uma leitura crítica sobre a difusão de conteúdos racistas nos meios digitais, ao manifestar “profunda preocupação com relação à utilização de novas tecnologias de informação, tais como a Internet, para propósitos contrários ao respeito aos valores humanos, à igualdade, à não-discriminação, ao respeito pelos outros e à tolerância, em particular para a propagação do racismo, ódio racial, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, e que, sobretudo, as crianças e os jovens que têm acesso a este material se vejam negativamente influenciados por ele”.

Entre as medidas para reversão deste cenário e para a garantia de meios de comunicação comprometidos com a diversidade étnico-racial, a Declaração ressaltou a “necessidade de se promover o uso de novas tecnologias de informação e comunicação, incluindo a Internet, para contribuir na luta contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata” e que todos os Estados “devem reconhecer a importância da mídia comunitária que dá voz às vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata”.

Propondo também medidas concretas para a relação entre mídia e etnia-raça, o Plano de Ação de Durban apontou para os Estados a responsabilidade de, dentre outras coisas:

Implementar sanções legais contra o incitamento ao ódio racial através de novas informações e tecnologias de comunicação, incluindo a internet;  
Incentivar os meios de comunicação a evitar os estereótipos baseados em racismo, discriminação racial, xenofobia e a intolerância correlata;  
Adotar e aplicar legislação adequada para se ajuizar os responsáveis pelo incitamento ao ódio racial ou à violência através das novas formas de informação e tecnologias de comunicação;   
Denunciar e ativamente desencorajar a transmissão de mensagens racistas e xenófobas através de todas os meios de comunicação;  
Examinar a contribuição de novas formas de informação e tecnologias de comunicação para a reprodução de boas práticas no combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e a intolerância correlata;   
Incentivar a representação da diversidade da sociedade entre as organizações de mídia, através da promoção adequada da representação de diferentes segmentos em todos os níveis de sua estrutura organizacional;

Quase duas décadas depois, ao analisarmos o caso brasileiro, os apontamentos de Durban parecem ter sido feitos para a realidade atual dos meios de comunicação em nosso país.

A representação estereotipada de grupos vulnerabilizados – uma das críticas presentes na Declaração – segue como uma constante. São exemplos, o reforço a uma visão criminalizadora de jovens negros em telenovelas ou na hipersexualização dos corpos de mulheres negras em propagandas.

Na televisão e no rádio, programas policialescos promovem cotidianamente discursos de ódio e violam direitos humanos, especialmente da juventude negra das periferias. Uma pesquisa realizada em 2015 pela ANDI - Comunicação e Direitos, em parceria com outras organizações, identificou que 60% das pessoas que tiveram direitos violados por 28 programas policialescos, sejam como suspeitas ou vítimas de atos violentos, eram negras.

Não diferente, a internet tem sido um palco privilegiado de manifestações de ódio contra segmentos em situação de vulnerabilidade, sendo as mulheres negras o alvo prioritário. Como confirmação, pode-se citar a pesquisa de doutorado de Luiz Valério Trindade, desenvolvida na Universidade de Southampton, na Inglaterra. Analisando 109 páginas e 16 mil perfis de usuários no Facebook, além de 224 artigos jornalísticos entre 2012 e 2016, Trindade verificou que aproximadamente 80% dos discursos com conteúdo de ódio tinham como objetivo atingir mulheres negras.

Inúmeras pesquisas também têm demonstrado como inteligência artificial, projetos de reconhecimento facial, aplicativos, mecanismos de busca, ferramentas de processamento de linguagem natural, sistemas de visão computacional e outras tecnologias de informação e comunicação reforçam lógicas racistas.

De modo geral, os apontamentos da Declaração de Durban e do seu Plano de Ação  seguem como questões fundamentais em nossos dias: a necessidade de políticas democráticas de comunicação, que representem o pluralismo e a diversidade étnico-racial das sociedades.

Para que essas políticas tenham um caráter efetivamente democrático e contribuam para o enfrentamento ao racismo nos sistemas de comunicação, devem se estruturar em quatro eixos complementares: a representação, no que diz respeito à visibilidade da diversidade étnico-racial nos conteúdos veiculados pelos meios de comunicação; a produção, com presença da diversidade étnico-racial no quadro de trabalhadores dos meios de comunicação;  a propriedade, tanto de modo a garantir que a concessão de emissoras de comunicação tenha como princípio e objetivo o respeito à diversidade de etnia/raça, quanto com previsão de reserva de frequência para os diferentes grupos étnico-raciais; e o controle social, possibilitando que a diversidade étnico-racial esteja contemplada nos mecanismos e órgãos de fiscalização e monitoramento do setor.

Apenas assim será possível afirmar, em algum momento da nossa história, que o Brasil levou a sério e implementou aquilo que foi aprovado há 18 anos – e ratificado por centenas de países – na Conferência de Durban.
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Por Paulo Victor Melo, no Brasil de Fato.

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