No Brasil, desemprego e escravidão ainda têm cor


Fiscalização do Ministério do Trabalho resgata
trabalhadores em situação análoga à de escravo no Pará.
(FOTO/Leonardo Sakamoto).
Após 400 anos de escravidão e da ausência de políticas reparatórias em larga escala, as práticas escravagistas ainda moldam nossas relações sociais e o racismo é uma constante. Não poderia ser diferente no mundo do trabalho, no qual brancos e negros ocupam posições díspares. O IBGE aponta que a taxa de desocupação da população negra é maior que a da população branca em toda a série histórica, alcançando sua maior diferença percentual em 2017.

Os dados informam ainda que os trabalhadores negros são maioria entre os subocupados e em atividades de menores rendimentos médios (construção civil, agropecuária e serviços domésticos), ocupações em que predomina o trabalho informal e com grande incidência de trabalho escravo contemporâneo.

Em meio às tratativas para a aprovação da lei da Reforma Trabalhista no Congresso Nacional, muitos especialistas, antevendo o desastre que viria, classificaram as mudanças na CLT como uma revogação da Lei Áurea, com a volta da escravidão a reger as relações de trabalho. Essa afirmação leva a uma pergunta fundamental: o que significou, em termos concretos, a abolição da escravatura para as relações de trabalho no Brasil?.

Pelo menos desde a década de 1980, historiadores vêm ressaltando a necessidade de repensarmos a história social do trabalho no Brasil, no sentido de compreendermos melhor o que ficou conhecido como transição da escravidão para o mercado de trabalho livre. Por volta desse mesmo período, e mesmo antes disso, intelectuais negros como Clóvis Moura, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez e Abdias do Nascimento destacavam o caráter meramente formal da abolição da escravatura e a inserção da população negra no que este denominou como "escravidão em liberdade".

É perceptível que trabalhadores negros estão mais suscetíveis ao aliciamento para trabalhar em condições análogas às de escravo, informação confirmada nos dados divulgados pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pelo Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil, ferramenta online desenvolvida pelo Ministério Público do Trabalho e pela Organização Internacional do Trabalho. Apesar da dificuldade na obtenção desses dados, tendo em vista a persistência da denominada democracia racial no Brasil, na qual tanto se é negado conhecer a própria negritude quanto pode ser constrangedor alheia.

Em um país com um projeto de nação embranquecido, em que pessoas negras foram tratadas, às vésperas da abolição, como um problema a ser resolvido, ser negro significa ocupar um lugar de servidão no imaginário social.

Episódio exemplar dessa dinâmica foi a CPI do Trabalho Escravo, realizada pela Câmara dos Deputados, em 2012, e dominada por membros e simpatizantes da bancada ruralista – que queriam evitar a aprovação da PEC do Trabalho Escravo, que acabou aprovada dois anos depois, prevendo o confisco de propriedades flagradas por esse crime e sua destinação à reforma agrária e a programas habitacionais.

A todo momento, havia a tentativa de distanciar as práticas dos empresários como submissão ao trabalho análogo ao de escravo e a defesa do direito de propriedade acima de qualquer outro. Se as condições de trabalho não são melhores, é porque esses trabalhadores, animalizados, não seriam capazes de se adaptar ao uso do banheiro ou a dormir em camas e prefeririam viver de Bolsa Família a trabalhar. Os empresários, por sua vez, teriam seus nomes jogados na lama por uma "lista suja" (cadastro de empregadores flagrados por esse crime) que os difama e por uma PEC que desejaria privar pais e suas famílias de seu patrimônio arduamente conquistado.

Negritude e servidão ainda estão intimamente relacionadas na realidade brasileira, graças à dificuldade da nossa sociedade em lidar com a própria história e à luta pela defesa dos interesses de quem é beneficiado por isso. (Por Raissa Roussenq, especial para o Blog do Sakamoto).

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