Feche
os olhos e imagine uma rainha, um anjo, uma boneca e uma babá. Quais dessas
personagens são negras? A babá, na maioria das vezes, toma o imaginário das
pessoas que participam dessa dinâmica em minhas palestras pelo Brasil. Por que
será?
Uma
literatura genuinamente brasileira escrita por Monteiro Lobato eternizou a
imagem da mulher negra na cozinha, que ama servir e cuidar dos filhos dos
outros, enquanto é insultada pela única criança que poderia ser seu filho, o
Saci. Que, aliás, também é um menino negro mutilado.
Seria
apropriação cultural Dona Benta registrar todos os livros de história e
receitas em seu nome? Dona Benta cozinhava?
Devemos
observar que as esculturas, músicas, pinturas, literatura, cinema e publicidade
colaboraram para construção do nosso imaginário.
Certa
vez, no aeroporto, uma mulher branca, do sul do País, conversava comigo sobre
sua "mãe preta". Ela me dizia, emocionada, que sua "mãe
preta", que na verdade era sua babá e apenas três anos mais velha que ela,
nunca tinha sido tocada por um homem e que era virgem.
Na
sua conclusão de "filha branca", a mãe preta tinha nascido para
cuidar dela e dos irmãos. E que o sexo e casamento não lhe interessavam. Me
disse tudo isso com a mão no peito e emocionada. Tia Nastácia não saía da minha
cabeça. Parei para pensar, durante o voo indo a Salvador, por que aquela mulher
não conseguia ver mulheres negras como humanas. Sim, humanas!
Sempre
achei a arte fundamental para a educação e a formação de um povo e percebi que
quase toda arte que o Brasil produziu foi racista e machista na maioria das
vezes. E cheguei a essa conclusão depois de uma aula sobre Grécia Antiga na
faculdade... A arte é, por si, educação.
Certa
vez, um renomado carnavalesco tentou colocar em seu desfile esculturas que
reproduziam a imagem de cadáveres de judeus assassinadas, vítimas do nazismo, e
aquilo foi um choque. As pessoas ficaram indignadas, a comunidade judaica (com
toda a razão) achou aquilo inadmissível e a alegoria foi proibida e censurada.
Na
época, eu me perguntei por que as alegorias de negros escravizados não chocavam
da mesma forma. Afinal, estamos falando de um dos maiores crimes contra
humanidade: a escravidão.
Posso,
num mesmo dia, ver um desfile com esculturas de escravos e pessoas se
divertindo sem parar para pensar que a escravidão foi uma das maiores crises de
humanidade, enquanto nas ruas toca a marchinha "o seu cabelo não nega
mulata...". E Claudia, arrastada pelas ruas do subúrbio do Rio de Janeiro,
é esquecida.
As
pessoas se chocam quando digo que o racismo aqui deu certo.
Ora,
aqui quase 80% dos jovens que morrem na idade mais produtiva são negros! A
morte desses homens condena as mulheres negras para o resto da vida. Eles são
nossos filhos, pais, irmãos e maridos.
A
violência contra a mulher aumenta. Onde os direitos humanos e o Estado não
entram.
Glamurizar
a favela é muito conveniente. Não existe charme nenhum em acordar às quatro da
manhã, deixar seus filhos com outras pessoas, atravessar a cidade para um
trabalho e cuidar de outras crianças que serão ensinadas a odiar negros, na
maioria das vezes.
Sim,
o racismo se aprende. Ninguém nasce odiando ninguém. O racismo no Brasil é um
comportamento. Portanto, eu estou sendo ácida sim.
Não
quero falar de amor. Não agora. Agora, quero falar de justiça e direitos
humanos. (Por Kenia Maria, no HuffPostBrasil).
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