No
último domingo, 08 de julho, vimos acontecer um evento que simboliza com
perfeição a crise brasileira contemporânea.
Tratou-se
de um evento síntese.
Relembrando
pra quem não está tão atento à crônica política cotidiana, se é que alguém
nesse país conseguiu ficar indiferente ao domingo de crise.
Ainda
não era nem meio dia quando explodiu na imprensa a notícia de que Rogério
Favreto, Desembargador do Tribunal da 4° Região, havia aceitado o Habeas Corpus
apresentado por Deputados Petistas em favor do Presidente Lula.
As
manchetes eram bombásticas: “Lula será solto ainda hoje”.
Os
militantes se agitaram nos dois lados do conflito que divide a sociedade brasileira.
Os
antilulistas babaram de ódio, xingaram o Desembargador Favreto, acusando-o de
ser um petista infiltrado no tribunal da 4° região, que até aqui vem sendo
território de suplício para o Presidente Lula.
Por
sua vez, os lulistas vibraram, como se um Habeas Corpus emitido por um
Desembargador, em regime de plantão, já fosse a própria vitória nas eleições
que, ao que tudo indica, acontecerão em outubro.
Meu
esforço neste ensaio é tentar pensar o domingo de crise fora de qualquer
histeria, explorando o seu “sentido profundo”.
Chamo
de “sentido profundo” a relação do evento com algo maior que ele, com o
processo no qual está inserido. Todos os principais aspectos que caracterizam a
crise brasileira contemporânea podem ser percebidos neste evento síntese.
1-
O completo colapso do Sistema de Justiça.
Temos
certa tendência de fetichizar o Sistema de Justiça, como se as leis fossem
produzidas e operadas num espaço de austeridade, tendo como critério apenas o
“interesse público”.
É
claro que não é assim. Desde sempre, existe uma relação íntima entre os
interesses políticos e a criação e a interpretação das leis.
Não
é lei quem condiciona o poder. É o poder quem condiciona a lei. Até aqui
nenhuma novidade. Sempre foi assim. Sempre será assim, em qualquer lugar do
mundo onde existam seres humanos vivendo em sociedade.
Porém,
a crise brasileira está levando à politização do Sistema de Justiça para além
dos limites tolerados pelo marco civilizatório, pelo Estado de direito.
Primeiro,
o caso do Triplex do Guarujá (localizado em São Paulo), sem nenhum vínculo
direto com as investigações da Operação Lava Jato, foi capturado por Sérgio
Moro, cuja jurisdição se restringe a Curitiba.
Sérgio
Moro não seria o juiz natural do caso. A escolha não foi nada aleatória.
Que
Sérgio Moro tem vínculos claros com o PSDB é algo óbvio para qualquer
observador minimamente honesto. É óbvio porque jamais houve interesse das duas
partes em esconder esses vínculos.
Basta
uma simples consulta no Google que o leitor e a leitora tropeçam com inúmeras
fotografias que mostram Sérgio Moro confraternizando com lideranças tucanas, em
um comportamento inadequado para um juiz.
Políticos
confraternizam entre si, negociam, se deixam fotografar juntos. Um juiz não
pode fazer isso, pois o juiz não é político, não pode ser político.
Alexandre
de Moraes foi filiado ao PSDB, foi Ministro de Temer e hoje tem cadeira na
Suprema Corte. Nunca é demais lembrar que Moraes assumiu o cargo depois da
morte de Teori Zavascki, uma morte que jamais foi plenamente esclarecida e que
parece ter sido esquecida.
Para
não dizerem que estou sendo exageradamente parcial, também podemos lembrar de
Dias Toffoli, que tem sua trajetória vinculada ao Partido dos Trabalhadores.
Toda a esperança petista de que o caso do Presidente Lula tenha alguma solução
legal está baseada na ascensão de Toffoli à Presidência do STF, o que
acontecerá em setembro.
A
ação de Rogério Favreto em acatar o Habeas Corpus faz parte desse jogo. É óbvio
que o Desembargador estava em contato com as lideranças petistas e que a
cronologia das ações foi cuidadosamente calculada: domingo, recesso do
judiciário, férias de Sérgio Moro.
Mas
como as instituições estão derretidas, Moro, de férias, talvez vestindo cueca
samba canção e usando chinelos de dedo, assinou um documento oficial dizendo
que não cumpriria a ordem de soltura. Não cabia a ele cumprir o ou não, já que
uma vez promulgada a sentença, o juiz de primeira instância perde qualquer
controle sobre o processo.
Além
disso, num Estado de direito com instituições minimamente saudáveis, não existe
a possibilidade de descumprimento de ordem judicial.
Se
o Desembargador era incompetente pra matéria, se a decisão foi equivocada, o
Habeas Corpus deveria ser questionado em sessão colegiada, seja no próprio TRF4
ou nas instâncias superiores. Decisão da justiça pode ser questionada e depois
anulada. Jamais pode ser desobedecida.
E
a Polícia Federal como fica? Deve obedecer a quem? Ao Desembargador ou ao Juiz
de primeira instância?
E
se um grupo de policiais, por questões ideológicas, quiser obedecer ao juiz de
primeira instância e outro grupo, pelos mesmos motivos, escolher o
Desembargador?
Entendem,
leitor e leitora, onde isso pode chegar?
2-
A disputa pelo Estado
Em
muitos aspectos, a crise brasileira é a crise mundial. Talvez o Brasil seja o
laboratório dessa crise, o principal palco de sua manifestação. Mas crise, de
forma alguma, é uma jabuticaba. Não é privilégio nosso. Não mesmo.
Guardadas
as devidas particularidades que variam de país para país, a crise internacional
pode ser explicada pelo acirramento das disputas pelo Estado. A conciliação que
viabilizou o experimento do Estado de Bem-Estar Social não se sustenta mais e a
consequência lógica do fim da conciliação é a radicalização dos conflitos.
Os
que falam em “Estado mínimo” querem se apropriar do Estado, fazer com que o
Estado atenda aos seus próprios interesses. Não existe “Estado mínimo” em
sociedades complexas. O que existe é a disputa pelo Estado. Cada grupo sempre
quer Estado máximo pra si e, como o cobertor é curto, isso significa impor
Estado mínimo aos outros.
Por
outro lado, os grupos sociais que conquistaram direitos no experimento do
Estado de Bem-Estar Social, naturalmente querem manter essas conquistas,
protegê-las da ofensiva neoliberal em curso, repito, no Brasil e no mundo.
No
Brasil, com todos os seus defeitos, o Partido dos Trabalhadores, sob a
liderança de Lula, representa aquilo que de mais próximo tivemos de uma
experiência de Bem-Estar Social. Por isso, Lula não foi solto. Por isso, uma
decisão judicial foi descumprida.
Há
muito tempo, Lula deixou de ser um homem e se tornou uma instituição, um
símbolo que representa a função social e provedora do Estado. É natural que
Lula tenha se transformado no principal alvo do golpe neoliberal em curso no
Brasil. Sem a destruição de Lula, o projeto do golpe não se consolida.
3-
A derrota nas instituições X vitória no imaginário popular
No
final do dia aconteceu o que já era previsto por todos, até mesmo pelos
parlamentares que tentaram o Habeas Corpus: as autoridades que antes tinham
bancado a prisão de Lula (Cármen Lúcia, Raquel Dodge, Thompson Flores)
sufocaram a rebelião de Favreto e mantiveram a decisão inicial.
Uma
derrota para o PT?
Depende
da perspectiva.
A
crise institucional é tão grave, abriu-se um fosso tão grande entre as
instituições e a opinião pública, que as derrotas institucionais, geralmente,
significam vitórias no imaginário popular.
Dilma
foi deposta por um golpe parlamentar. Temer assumiu a Presidência da República.
A população rejeita Michel Temer como nunca antes rejeitou um Presidente na
história desse país. Todas as lideranças que se aproximaram de Temer viram seu
capital eleitoral desidratar.
Rodrigo
Maia, Henrique Meirelles, Geraldo Alckmin. Pelo que sugerem as pesquisas, todos
teriam um desempenho vergonhoso se as eleições fossem hoje. Nada no horizonte
sugere que esse cenário irá mudar em três meses.
E
Lula?
Lula
lidera com folga e o PT continua sendo o partido político mais popular entre os
eleitores.
Os
golpistas venceram na disputa institucional, sem dúvida: tomaram o poder de
assalto e reorientaram os fundamentos conceituais do Estado brasileiro com a
Emenda Constitucional 95 (decretada pela famigerada “PEC dos Gastos”), que
entregou a agenda desenvolvimentista do poder público ao controle do mercado.
Nem os militares, nem os governos tucanos, ousaram ir tão longe.
Mas
na opinião pública, no imaginário popular, os golpistas perdem, e perdem de
goleada.
Foi
exatamente essa percepção que orientou a ação dos parlamentares petistas que
apresentaram o pedido de Habeas Corpus no plantão do desembargador Favreto.
Na
real, como comentei há pouco, todos eles sabiam que o golpe não deixaria Lula
ser solto. O próprio Lula sabia disso. Ele nem deve ter feito as malas.
Mas
mesmo assim, a ação foi importante. Talvez tenha sido o lance mais astuto do
Partido dos Trabalhadores nessa conjuntura de crise.
Moro,
colocando os pés pelas mãos, mordeu a isca lançada pelas lideranças petistas.
Ao assinar documento oficial, em férias, interferindo em um processo que não
mais lhe dizia respeito, Moro escancarou o que já era óbvio: Lula não é um
preso comum. É um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.
O
Sistema de Justiça foi exposto nas suas entranhas corrompidas: um juiz petista
mandou soltar e um juiz tucano mandou deixar preso.
A
militância petista, quase acostumada com a prisão de Lula, foi reanimada. Lula
passou o dia sob os holofotes da mídia, encenando publicamente um episódio de
martírio.
Foi
um ato de guerrilha, rápido, pequeno, com saldo positivo para as trincheiras
petistas.
Isso
tudo em um domingo. Não era segunda-feira, não era quinta-feira. Era um
domingo, um domingo de ressaca, de luto por mais uma eliminação em Copa do
Mundo. Tinha tudo pra ser um domingo, preguiçoso, lento, como costumam ser os
domingos.
Não
foi. Foi um domingo de crise. (Com informações da Revista Fórum).
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