Com desafios tamanhos, a
inteligência europeia decidiu-se por importar elementos para o trabalho
escravo, para isso contratando mercenários a soldo e acenando com a
possibilidade de carradas de ouro.
A
descoberta do “Mundo Novo” além-mares alvoroçou o continente europeu, que se
inflou de entusiasmo ante a perspectiva de ampliação dos domínios territoriais
e dos patrimônios financeiros. Desde então incursões foram promovidas visando
se apossar das terras selvagens e tudo o que nelas constasse.
Por
José Periandro Marques, no O Povo
Assenhorear-se
da e povoar a imensidão que se descortinava, tarefa hercúlea a exigir soluções
adequadas. Promover o progresso nos moldes tradicionais representaria agir com
rigor, audácia, insistência e persistência em um meio desconhecido e sujeito a
toda sorte de intempéries, além dos indígenas, os verdadeiros donos das terras.
Os
aventureiros ansiosos pela cobiça e a nobreza acostumada a ser regiamente
servida não formavam braços suficientes para modificar a paisagem e a captura
dos índios para os labores necessários, tentativa inócua, posto que nômades e
livres, não se adaptaram a trabalhos rudes e sedentários.
Com
desafios tamanhos, a inteligência europeia decidiu-se por importar elementos
para o trabalho escravo, para isso contratando mercenários a soldo e acenando
com a possibilidade de carradas de ouro. Para concretização do intento, nada
mais prático que adquiri-los em terras africanas, entre tribos desprovidas de
conhecimento e capacidade bélicos para enfrentar o armamentismo branco. A
ambição, servidão, dominação, extermínio e invasão constituíram um dos
capítulos mais vergonhosos da história humana. E entre homens livres, que
subitamente foram contidos, reis, rainhas, príncipes e princesas, chefes
festejados e toda a sorte de gentes com emoções e sentimentos idênticos aos dos
dominadores.
Ao
pisarem as naus escravocratas os prisioneiros perdiam suas identidades, viravam
coisas, não possuíam almas, não dispunham de vontades. As viagens ao
desconhecido eram realizadas sem mínimas condições higiênicas; amontoados em
porões, executando tarefas desgastantes, sem acompanhamento médico e produtos
curativos, muitos sucumbiam sem descobrir “o florão da América”.
Ao
promover a Revolução Industrial, a Inglaterra compreendeu a necessidade do
trabalho assalariado como meio de proporcionar o escoamento da produção, porque
necessária a ampliação da massa consumidora. A força de trabalho não remunerado
constituía-se entrave às pretensões daquela potência naval. Tal o dilema
daqueles tempos e que produziu fatos impactantes: a utilização de mão-de-obra
sem remuneração, controlada pela violência e subjugada pela vontade do senhor;
e em outro plano, a exploração do operário em períodos escorchantes, com ínfima
compensação financeira, sem leis sociais que abrandassem o injusto proceder
patronal.
Rainha
dos Mares, a Inglaterra, conforme exposto, passou a empreender ferrenha
perseguição ao comércio escravagista. Qualquer embarcação suspeita era
perseguida e dominada até que tudo se esclarecesse e ficasse resolvido. Para
não serem flagrados em delito, os contrabandistas lançavam às águas profundas
todos os cativos, em um brutal e ominoso extermínio.
Já
em chão firme, os negros se tornavam vulneráveis aos humores e procedimentos de
seus amos, que em mor porção os tratavam como trastes usáveis e descartáveis.
Neste
ponto são demonstradas algumas situações vivenciadas pelos africanos:
a.
Meninas serviam de pasto aos senhores e a quem mais eles indicassem, sujeitas a
toda sorte de sevícias e vícios. Algumas eram negociadas para prostíbulos; mas
não só de fêmeas se saciavam os patrões: alguns deles se encantavam com garotos
e homens formados, que lhes saciavam sexualmente.
b.
Para aumentar a população escrava, determinados amos elegiam um ou mais cativo
para ser reprodutor, mas sem oficializar sua paternidade, isto visando
incrementar o comércio da compra e venda da dignidade humana.
c.
Um que outro proprietário infértil, homossexual ou indecoroso obrigava sua
própria mulher a manter relações com escravo em sua presença. Como o charme
feminino não lhe proporcionasse qualquer incentivo, essa atitude torpe
estimulava-lhe a libido e ele se satisfazia usufruindo daquele que fora
destinado a saciar sua desonrada esposa. Por trás de tamanha felonia,
intencionava aquele homem acolher futuro rebento, se de pele clara, como se
fora seu. Se escuro, e inapelavelmente a criancinha seria sacrificada.
d.
Se os instintos carnais aflorassem impetuosamente e a senhora ou a sinhazinha
se entregassem a um negro, e mais, se ficasse prenha, o autor da façanha seria
emasculado e sofreria morte lenta e insidiosa para servir de exemplo. Se o
preto não aceitasse proposta indecorosa, a mulher rejeitada reverteria o fato e
tudo faria para que seu pai ou o seu marido exterminasse o ser desprezível.
e.
Simples nódoa em roupa, palavra ou silêncio em momento errado, motivos
suficientes para gerar ira incontida da Casa Grande, manifestada através de
açoite, amarração no tronco, sob quaisquer condições climáticas, tratamento à
base de sal grosso e frio assassinato, se de repente a paciência do senhor
faltasse.
Ao
imiscuir-se o explorador com pretos e índios e do consórcio destes com os
negros surgiu o povo brasileiro com suas diversidades de cores, temperamentos e
culturas, crescendo no dia-a-dia em conhecimento e impondo-se como nação
altaneira, cultivando seus próprios mecanismos de sobrevivência e defesa.
Conforme
já mencionado, pavorosos foram os incidentes que tingiram de sangue a alma
nacional durante a escravatura, cobrindo-a de vergonha e ignomínia. Revoltante
o negro ter sido consumido como sumo e como bagaço ter sido descartado.
No
interregno entre o final do sistema escravagista e a libertação, os escravos
deveriam ter sido orientados e treinados para o exercício de uma profissão. A
nação deveria ter se empenhado para que não lhes faltasse um teto para morar ou
um chão para plantar. Nos moldes estabelecidos, abrindo-se as porteiras para
que eles vagassem a esmo, quantos enveredaram pela senda do crime, tonando-se
párias sociais, e de vítimas, facínoras ferozes?
Ainda
que se acreditasse na existência de cordialidade racial, em nossos dias
compreende-se que os alvos desprezavam os de pele escura, e que as condições
financeiras e sociais destes últimos reforçaram a desconfiança e o preconceito
quanto à conveniência da libertação. O negror e a pobreza intrinsicamente
ligados tornaram se economicamente sinônimos, apartando-se timidamente no
decorrer dos tempos.
A
negritude influiu sobremaneira na dança, na música, na culinária, na
religiosidade e nos esportes, elevando nosso país além-fronteiras.
O
que de sinistro passou figura nos anais da história e não possível modifica-la;
pode-se, contudo, pavimentar o futuro com a força e a coragem dos bravos, o
estoicismo e a resistência dos mártires, a sabedoria pacificadora dos santos e
o empreendedorismo dos líderes; que os homens, mesmo sendo práticos, também
sejam sensíveis às dores da alma, e artistas, que embelezam de tons, de sons,
de versos e paisagens essas “terras garridas onde canta o sabiá” e a natureza
se faz encanto e luz.
Neste
século onde se empreende um repensar social, todos devem ser inclusos na
sociedade de consumo, devendo ser abolidas as discriminações e revanchismos,
buscando-se o equilíbrio, a fraternidade e a harmonia, com a humanidade
saturada de compreensão, solidariedade e amor, porque nosso destino é a
felicidade.
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