A cultura cala o racismo


A coreógrafa Edileusa Santos busca novas possibilidades de diálogo por meio do corpo e divide a experiência com o público em oficinas. Foto: Edileusa Santos.

O racismo explícito de um blackface no programa Mais Você, da TV Globo, vai na contramão de uma produção artística negra em ebulição. Na segunda-feira 12, um convidado branco no quadro da apresentadora Ana Maria Braga usou uma fantasia de “nega maluca” e pintou o rosto de preto.
Por Eduardo Nunomura, na Carta Capital

A agressão em rede nacional remete a episódio de maio de 2015, quando atores brancos da peça Os Fofos Encenam adotariam a maquiagem do blackface. O espetáculo não aconteceu e o Itaú Cultural, em resposta aos protestos virtuais, iniciou uma bem-vinda revolução.

Um comitê interno de questões raciais foi criado. Debates e palestras para o público externo foram promovidos para discutir o racismo estrutural. E o óbvio logo se revelou: as instituições culturais fecham as portas para os artistas negros.

Na tentativa de virar esse jogo, a mostra Diálogos Ausentes, no Itaú Cultural, reúne obras de 15 artistas negros das artes visuais, do teatro e do cinema de vários estados. É divisora de águas pelo recado que transmite.

A curadoria é um dos elementos institucionalizadores a serviço desse projeto colonial”, afirma a curadora da mostra, Diane Lima. “Quais são os critérios de exclusão?”, questiona a jovem baiana de 30 anos, mestranda em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), que vê um longo processo de discriminação e criminalização sobre a arte afro-brasileira.


Ao lado dela está Rosana Paulino, historiadora e artista visual, doutora em poéticas visuais pela Escola de Comunicações e Artes da USP. É igualmente provocadora: “Acompanho essa cena há 20 anos. Estamos no início de um reconhecimento. A última Bienal só tinha um negro, o Dalton Paula, que também está aqui conosco. Na penúltima Bienal, nenhum”.

Dalton Paula, com Unguento (2015).
Dalton Paula, artista visual do Distrito Federal, trabalha com a temática do corpo negro, muitas vezes silenciado pelo medo e pela insegurança. Em A Cura, ele pinta em óleo imagens de benzedeiras sobre capas de enciclopédias Barsa, uma forma de mostrar como o conhecimento tradicional expõe o epistemicídio (exclusão de outras formas de conhecimento).

O paulistano Sidney Amaral, formado pela Faap, é outro nome na mostra. Na aquarela Gargalheira, um autorretrato, ele subverte a coleira usada na escravidão e contesta o conceito de que o negro nos dias atuais ou é invisível ou superexposto.

Quando falo ‘quem falará por nós’ e boto os microfones, digo que eu falo por mim, não estou num lugar de invisibilidade”, explica. Uma de suas obras, Incômodo, uma aquarela de 1,90 por 3,15 metros em que faz contraponto à Libertação dos Escravos, pintura de Pedro Américo (1889), foi adquirida no ano passado pela Pinacoteca do Estado. A instituição abrigou até fevereiro a exposição Territórios: Artistas afrodescendentes, com 106 trabalhos de criadores negros.

No teatro, encontra-se uma das áreas artísticas mais intelectualmente organizadas do movimento negro. Cada espetáculo acaba por desenvolver um trabalho de pesquisa e produção, que revira desde as tradições afro-brasileiras até as raízes do preconceito racial e da discriminação.

O coletivo Quizumba, de São Paulo, nasceu em 2008 com a proposta de estudar a formação cultural do Brasil, e nessa investigação se deparou com a história de Zumbi dos Palmares. A inquietude virou uma contação de histórias para crianças e adolescentes que rompe com a colonização cultural eurocêntrica, de Brancas de Neve e Belas Adormecidas.

Composto de jovens diretores, dramaturgos e atores da Escola Livre de Teatro e da Escola de Arte Dramática, da USP, o Coletivo Negro está na estrada há oito anos. Flávio Rodrigues, 38 anos, e Raphael Garcia e Jé Oliveira, ambos com 33, graduaram-se sem que tivessem tido uma disciplina que passasse por Abdias do Nascimento, o criador do Teatro Experimental do Negro, tema de uma ocupação no Itaú Cultural.

A ideia do coletivo foi pesquisar racialidade e poética, sem abrir brecha para críticas de que só há atores negros. “A lógica é tão perversa porque essas mesmas pessoas não questionam que a maioria dos elencos das peças, dos filmes e das novelas é formada majoritariamente por brancos”, afirma Garcia.

Em suas obras, Eneida Sanches trata de questões raciais. Foto: Tracey Collins.
As peças do Coletivo Negro tratam das inquietações e das conquistas, dos afetos e dos conflitos familiares, da vida violenta nas periferias. “Se as pessoas não estiverem sensibilizadas, isso não vai acontecer. Também se não houver ninguém na mídia ou na curadoria. Poucos críticos vêm ver nossos trabalhos, talvez porque acham que não vão encontrar arte”, alfineta Rodrigues. Em março, o grupo conseguiu acessar o cobiçado circuito Sesc, muito em parte à proximidade que o coletivo tem com KL Jay, dos Racionais MC’s.

No Sesc Belenzinho, em São Paulo, a mostra Motumbá - Memórias e Existências Negras é outra que revela a pujança das produções negras e periféricas. Com curadoria de João Nascimento, mescla música, dança, performance, teatro, literatura, cinema e artes visuais. A baiana Edileusa Santos, pesquisadora, professora, bailarina e coreógrafa, ministra uma oficina para mostrar como o som do tambor estimula a construção do movimento.

Reunidos há nove anos no Encontro de Cinema Negro Brasil, África, América Latina e Caribe Zózimo Bulbul, em homenagem ao pai do cinema negro brasileiro, profissionais do audiovisual viram quando uma arte cara se tornou possível. O acesso à primeira câmera e o ingresso dos negros nas universidades abriram espaço para a formação de novos cineastas.

Mas foi só o primeiro degrau. “Os festivais não selecionam, não querem ver. Os canais de tevê não estão interessados. Começamos a receber esse ‘não’ velado, com a desculpa de que não há público”, critica Viviane Ferreira, cineasta e advogada, presidente da Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (Apan).

Já estão presentes na Apan iniciativas do Coletivo Tela Preta e a plataforma na internet Afroflix, de Yasmin Thayná, voltada para as produções audiovisuais assinadas por profissionais negros. Dez realizadores acabaram de participar do Lab Cinegritude. Mais do que outras narrativas, a maioria da população quer se ver representada pela cultura.

A real diversidade

Espetáculos na capital paulista revelam a força das representações artísticas das culturas negras

Foto: Raul Zito.
Treme-Terra

Espetáculo de dança contemporânea, Pele Negra, Máscaras Brancas tem apresentação única em São Paulo. O trabalho da companhia Treme-Terra é inspirado no livro homônimo do martinicano Frantz Fanon, uma referência para os movimentos anticolonialistas e negros na França. Dia 17 de dezembro, às 21 horas, no Sesc Vila Mariana.

Ocupação Abdias do Nascimento

Ativista, artista, intelectual e político, Abdias do Nascimento é tema de mais uma ocupação do Itaú Cultural. Maior líder negro do século XX, Abdias fundou o Teatro Experimental do Negro, que expunha a falta da representatividade racial nas artes cênicas dos anos 1940 aos 1960. Até 15 de janeiro.

Diálogos Ausentes

Quinze artistas selecionados revelam o vigor da presença de negras e negros nas artes visuais, no teatro e no cinema. É ainda uma resposta aos protestos sobre o uso do blackface (pintura com carvão de cortiça) por uma companhia de teatro, em maio de 2015. Até 29 de janeiro, no Itaú Cultural.

Motumbá

Até março, no Sesc Belenzinho, a mostra apresenta peças teatrais, contação de histórias, oficinas de dança, exibição de filmes, debates e shows de música, como o de Bongar (17 de dezembro, às 21h30), um grupo de seis integrantes do terreiro Xambá, do Quilombo do Portão do Gelo, em Olinda, que mantém a tradição da Festa do Coco.

Quizumba

A peça para o público infantojuvenil mistura história e ficção e conta a história do menino Francisco, o Zumbi dos Palmares, que serve de lição para que o também menino Pastinha se torne valente. O espetáculo partiu de uma pesquisa sobre o teatro narrativo do Coletivo Quizumba. Dias 17 e 18 de dezembro, no Sesc Pinheiros.

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