Racismo reverso e impossibilidade jurídica, por Laura Astrolabio*


É certo que muitos não sabem, mas Direito não se resume à letra da lei . Ou seja, Direito não se resume à citação de legislação e seus respectivos artigos.
 Lei é uma das fontes do Direito.

Além da legislação, temos como fontes do Direito:  a analogia, a jurisprudência,  a doutrina, o costume e os princípios gerais de Direito.


Então, por favor, tendo conhecimento dessa informação, antes de suscitar tão somente a lei e tão somente o princípio da legalidade e da igualdade, entendam que é imprescindível analisar caso a caso e observar as demais fontes do Direito.

Além disso, a lei deve ser observada de acordo com o objetivo para o qual foi criada.

Sendo assim, observar o espírito da lei que está sendo clamada é, no mínimo, sensato, principalmente quando a manifestação partir de operadores do Direito.

O crime de racismo está previsto na Constituição Federal de 1988, no inciso XLII do artigo 5, vejamos:

a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;”

A lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, define os crimes resultantes de raça ou de cor e a lei 8.081, de 21 de setembro de 1990, estabelece os crimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência, praticados pelos meios de comunicação ou por publicação de qualquer natureza.

Leiam as disposições contidas na lei 7.716/1989 e depois façam as seguintes  perguntas:

Uma lei criada pouco tempo após o término da ditadura militar, num país com histórico escravocrata, contendo tais disposições, tinha/tem o objetivo de proteger quem de quem?

Quantas pessoas brancas precisaram ser protegidas pelas disposições contidas nessa lei?

Desde sempre e, até hoje, quantas pessoas brancas foram alvo de discriminação e impedidas de terem acesso a estabelecimentos comerciais ou foram impedidas de receberem atendimento em restaurantes, bares, confeitarias?

Quantas vezes virou notícia o fato de uma criança branca ser impedida de entrar num estabelecimento por ser confundida com pedinte?

Importante que tais perguntas sejam feitas e que as respostas sejam honestas e não utilizem uma falsa simetria, principalmente se considerado os dados confirmados em pesquisas sobre o tema.

E a jurisprudência? Quantos casos de racismo contra brancos foram julgados pelo judiciário?

E o costume? É costume, no Brasil, presenciar brancos sofrendo racismo?

E a doutrina? Em que momentos  e quantos  juristas afirmam que pessoas brancas são alvo de racismo no Brasil e, por esse motivo, devem recorrer ao termo "racismo reverso" para se colocarem no lugar de vítimas?

Quem é excluído pela sociedade por causa da cor da pele, pela textura dos cabelos, pelo fenótipo? As pessoas com a pele Branca ou os negros?

Quem não se vê representado nos cargos de poder, na mídia, nas revistas? O branco ou o negro?

O padrão de beleza imposto pela sociedade não é o eurocêntrico?

O preconceito está ligado à cultura e à história!! Desconsiderar esse fato para suscitar racismo reverso é desonestidade intelectual que tem como único fim levar pessoas a interpretações equivocadas com relação  a toda legislação que dispõe sobre racismo no Brasil.

No histórico do Brasil, os brancos sempre se sentiram superiores com relação aos negros e esse sentimento que foi enraizado ainda é dominante no atual cenário, em pleno século XXI, quando contamos com 400 anos de escravidão e apenas 100 anos de abolição mal feita e sem inclusão social dos negros alforriados.

Sobre a época da escravidão, que podemos afirmar que acabou faz bem pouco tempo em termos históricos, motivo pelo qual os negros no Brasil ainda sofrem com as heranças malditas desse holocausto, vejamos:

Eram examinados como animais: apalpados, dedos enfiando-se pelas bocas, procurando os dentes para adivinhar a idade ou conferir se o vendedor não mentia”. (CHIAVENATO, 1980, p.127)​

Diante disso, a legislação que trata de racismo no Brasil foi criada para proteger brancos de negros ou o contrário?

Quem foi inferiorizado no Brasil Colônia e é até hoje ? O branco ou o negro?

Foi a lei Afonso Arinos (lei 1390/51) a primeira a tratar da questão do preconceito e da discriminação racial e nessa época eram os negros os opressores ou os brancos?

Todas as legislações citadas foram criadas após constatação muito atrasada das autoridades de que a escravidão no Brasil foi um grande erro, um holocausto. Não existiu no Brasil um holocausto Branco, e brancos aqui nunca foram considerados não humanos, nem moeda de troca, nem objetos.

Suscitar o princípio da igualdade para alegar racismo reverso também não pode ser aceito. Motivo? O princípio da igualdade é aplicado entre os iguais. Quando negros e brancos foram tratados com igualdade nesse país para que os brancos, em flagrante situação de privilégio, possam invocar o princípio da igualdade sem relativizar quando alegam racismo reverso?

O princípio da igualdade tem o objetivo de garantir o tratamento igual entre os iguais e desigual entre os desiguais. Caso contrário, poderíamos suscitar o direito de receber remuneração igual a de um juiz de Direito. Certo?

Importantes e renomados juristas já se manifestaram na doutrina jurídica, contribuindo de forma grandiosa para que fique explícita a impossibilidade de alegar crime de racismo contra brancos:

Com o termo Racismo se entende, não a descrição da diversidade das raças ou dos grupos étnicos humanos, realizada pela antropologia física ou pela biologia, mas a referência do comportamento do indivíduo à raça a que pertence e principalmente, o uso político de alguns resultados aparentemente científicos, para levar a crença da superioridade de uma raça sobre as demais. Este uso visa a justificar e consentir atitudes de discriminação e perseguição contra as raças que se consideram inferiores”. (Dicionário de Política de Noberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino – 2004, p.1059)

Além disso, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o tema no julgamento do  “Caso Ellwanger” (Habeas Corpus n. 82.424-2/RS).

Portanto, pessoa branca alegar que sofreu preconceito pela cor ou raça é impossível,  pois que a análise não considera apenas a questão biológica e antropológica, mas a questão cultural e social, e na questão cultural e social é o povo negro que é oprimido desde sempre, motivo pelo qual é o principal alvo das políticas públicas de inclusão social, como as ações afirmativas, as cotas raciais.
Se considerada a questão cultural e social, quem é o oprimido e quem é o opressor num país com histórico escravocrata como o Brasil? O negro ou o branco?

Por fim, será de bom tom que pessoas que ocupam local de privilégio por serem brancas, numa sociedade que segrega os negros, apenas parem de suscitar o "crime" racismo reverso, visto que o mesmo é juridicamente impossível.

* Advogada sindicaria desde 2005, especialista em direito público. Mulher negra e militante do feminismo negro interseccional. 

2 comentários:

  1. Texto instigante. Parabens. A propósito da interseccionalidade sugerimos:
    http://saudepublicada.sul21.com.br/2015/10/12/e-possivel-o-dialogo-entre-discriminado-e-discriminador/

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  2. Artigo contraditório, já que o próprio “Caso Ellwanger" aborda uma situação de racismo contra judeu, que é branco.
    A lei é para todos cara autora!

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