‘Que Horas Ela Volta?': Surge para investir na emotividade e a evitar o confronto



O que somos nos envelhece. A teima em separar os elevadores, como se o serviço não pertencesse ao social, a mania de entender diferenciada a gente, quando a gente, diante da lei e de nós mesmos, não seria outra senão igual.

A escravidão que tardou a cessar aqui em relação a quase todas as outras nações do mundo, o impedimento à industrialização da colônia, os nossos modos acumulativos à custa do que é de todos, as ruas por onde as bicicletas ou o metrô não podem passar, a água, quando existente, selecionada aos preponderantes.

Farsa e privilégio, jeitinho e submissão, tudo nos contamina. E quando nos atrevemos a mudar o que somos, a equiparar os poderes e assim estancar a morte lenta, a elite nos empurra para trás.

Este é o Brasil, mas não é novo. Apenas aquele País da cordialidade com o qual cansamos de lidar. A raiz dos nossos problemas está no coração, que reage emotivamente, com carinho ou violência, às tentativas de obstrução da nossa dignidade social.

Mal começamos a lutar munidos de razão por esferas institucionais enfraquecidas e já enfrentamos dificuldades, as esperadas em função dessa inexperiência de uso. Mas temos sabido usar a arte para comunicar o que sentimos. E uma arte boa tocará neste ponto. Saberá gritar, se formos fortes.

O cinema, como a música ou as artes plásticas, pode decidir pelo confronto. Será uma arte dramática transformadora, poética, se tocar nos sentimentos escondidos.

Contudo, por vezes, a sensação é a de que desistimos do cinema, talvez porque, no Brasil, ele ceda espaço a uma construção muito mais poderosa e comunicadora, a tevê. A telenovela ainda constitui nosso meio maciço de envolvimento, representante de um jeito emotivo de questionar. E o cinema se deixou envolver por ela.

Que horas ela volta? parece ser a mais recente e bem-sucedida novela brasileira em grande formato.

Que horas ela volta? parece ser, assim, a mais recente e bem-sucedida novela brasileira em grande formato. Encanta o público quase na medida de A Escrava Isaura de outrora, inspirada na literatura romântica, não exemplarmente a melhor, sobre um estado de exceção.

O filme de Anna Muylaert é o grito coletivo, o sonho que se deixou analisar no divã do mundo, embora não se baseie em um texto estimulante. Inexistem as grandes frases a recordar dele, os diálogos apenas buscam a resolução da cena, os estranhamentos são solucionados com bate-boca, balbucios, ligeireza.

O ritmo é o dos paralelismos previsíveis, dos planos e contraplanos concisos da tevê, das perguntas com rápidas respostas, do humor improvisado, imagina-se, pela figura célebre, brutalmente espontânea, de Regina Casé.

Desde que a TV Pirata revelou nossa risível pequenez, Casé concentra essa energia de contraposição. No filme, a atriz característica, com a cara da brasileira, é uma empregada doméstica às antigas, que dorme no emprego e precisa acolher na casa da patroa a filha vestibulanda há muito distante, uma garota convencida de sua inteligência e de seu poder.

Enquanto Casé é mais uma vez Casé no filme, seu sotaque nordestino global pretende esquentar nossas emotividades transformadoras. Mas Que horas ela volta?, curiosamente, hesita em fazer isso, evita os confrontos, quase à espera de um próximo capítulo.

Este filme não parece desejar rompimentos excessivos, coleciona gritos expulsos e subterfúgios. Talvez porque, como disse Anna Muylaert em entrevista concedida a Orlando Margarido a CartaCapital, trate-se de uma ficção sobre os afetos, embora mais e mais, ao divulgar incansavelmente a obra, a diretora pareça assumir o tom elevado da intenção política e transformadora.

Seu filme agora é para o Oscar, mas também para mudar o Brasil, tarefas concomitantemente difíceis.

Regina Casé, a Val, revela-se muito mais a mãe do filho da patroa do que de sua filha, Jéssica, interpretada por Camila Márdila, que ela há dez anos não vê. Seu “filho” vacila e dá pena, vivido por Michel Joelsas, um ator que não pôde exibir o potencial que parece ter.

Uma das sequências mais intensas do filme foi pouco explorada pela diretora, aquela em que a mãe de Fabinho, Bárbara, interpretada por Karine Teles, uma superficial figura da elite paulistana, sem profissão definida pelo filme, o rejeita enquanto ele chora depois da pífia performance no vestibular.

Se o insucesso na luta pelo diploma, este velho instrumento de distinção burguesa, fez Fabinho perder a relevância, a dignidade, o direito a ser visível aos olhos de uma classe média deletéria e violenta, por que o filme sobre os afetos explora tão mal sua figura, o verdadeiro abandonado desta ficção?

Jéssica não foi abandonada. Ela é poderosa e sabe se expressar, da mesma forma que sua mãe, Val, lutará pelo que entender justo. A jovem teve uma educação melhor que a do menino, frequentou escolas atentas, diz-se, e precisamos acreditar nisso para prosseguir.

Contudo, ao se ver diante de uma janela do edifício Copan, Jéssica apenas constata que há prédios atrás de prédios, sem construir uma relação entre eles, exatamente como faria uma camponesa desavisada ao encarar a metrópole pela primeira vez.

Na casa dos patrões de sua mãe, Jéssica detecta modernidade, tudo o que é bom é moderno, uma constatação-clichê relacionada à FAU que se põe a visitar (e o projeto de Villanova Artigas oferece muitas possibilidades fotogênicas).

A filha de Val é estudiosa, porém não sabemos direito o que estuda. Pede um livro emprestado, mas ignoramos o que lê. Ela domina um grande mistério intelectual, e no filme atua com seu voluntarismo, não com seu saber. No entanto, é capaz de fazer com o que o dono da casa, o deprimido Carlos de Lourenço Mutarelli, ajoelhe-se de amor diante dela depois de breve tempo, sem nunca questioná-la a fundo fisicamente. (Tal respeito seria resultado de sua condição de artista ou constituiria um decoro de classe?)

Não é um filme de briga. Ele hesita em ser retumbante por meio de imagens, alusões, evocações, complexidade. Nem de longe pode se comparar a feitos cinematográficos brasileiros a evocar o preconceito e a ignorância social, a exemplo daquele inesquecível São Bernardo de Leon Hirszman, que destrinchou a brutalidade em pequenos gestos e pensamentos de um coronel.

Os fios estão soltos no filme de Muylaert, a ausência da grande cena, aquela que, talvez esperássemos, se desse na piscina, a arena ficcional. Para efeito cênico, ela não é esvaziada por completo, rumo à encenação da liberação da protagonista. Esta é a sequência magistral?

Que horas ela volta? exerce poderosamente a caricatura e não vê problema nisso. De obra pessoal, a evocar em parte a relação da diretora com sua babá Dagmar, toca na ferida da separação abissal de classes no Brasil e por esta razão, os olhos abertos na sala de jantar, já nos tornemos contentes.


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