Três anos de processo. Primeira lotação do cinema Odeon desde sua reinauguração em maio. Uma plateia predominantemente negra. O filme Kbela, que estreou no último sábado, dia 12, já pode ser considerado um marco para o cinema brasileiro. O Rio de Janeiro vivenciou enfim, #UmDiaNegroParaOCinema.
Idealizado por Yasmin
Thayná, Kbela nasceu a partir de um conto que ela escreveu sobre descobrir-se
negra e “assumir” os fios crespos. O processo enfrentado pela maioria das
meninas negras ao longo da vida, de rejeição ao próprio cabelo, submissão à
dolorosos processos químicos para alisar e recusa à cor da pele são os temas
centrais do conto. O texto foi parar na publicação da Flupp (Feira Literária
das Periferias) e, em seguida, foi encenado em algumas casas durante o Festival
Home Theatre.
Com a repercussão das
duas mostras, a ideia de “fazer alguma coisa com aquilo” começou a crescer. “A
gente queria fazer alguma coisa, mas não sabíamos direito o quê. Primeiro
pensamos em gravar um vídeo com alguém lendo ou narrando o conto”, explica
Yasmin, que hoje cursa jornalismo na PUC.
Foi então que ela se
reuniu com um coletivo de amigos e fez uma chamada pública através das redes
sociais convidando meninas negras a contarem suas histórias. A história
viralizou e em menos de uma semana o grupo recebeu mais de 100 e-mails do
Brasil inteiro. O teste de elenco contou com cerca de 40 meninas do Rio de
Janeiro e aconteceu em um estúdio improvisado na casa de integrantes do
coletivo. Este primeiro encontro foi um catalisador para a realização de um
projeto maior, já que todas as histórias compartilhadas naquele dia diziam a
mesma coisa: ser mulher e negra ainda é tarefa árdua no Brasil.
“Um amigo compartilhou a postagem comigo e disse que era a minha cara.
Estou no processo desde o início, desde o primeiro teste de elenco. O Kbela me
ajudou muito a me descobrir em diversos aspectos. Só tenho a agradecer à Yasmin
que pôs pra fora em forma de conto tudo que nós mulheres negras já passamos e
depois transformou o conto nesse curta fantástico. Não tenho palavras pra
descrever, apenas a agradecer”, disse, emocionada, Dandara Raimundo, que
atua em uma das cenas mais emblemáticas do filme.
Com as gravações já
quase concluídas, Yasmin foi assaltada e todo o material filmado na primeira
etapa foi perdido. Mais uma vez a internet entrou como principal aliada e um
crowdfounding (financiamento coletivo) foi lançado para ajudar a reiniciar todo
o processo.
Representatividade importa
Após a perda do
material e a necessidade de recomeçar tudo praticamente do zero, o projeto foi
ganhando novos contornos, entre eles a necessidade de se estruturar melhor e
profissionalizar o trabalho. A produção contou com videomakers, figurinistas,
maquiadoras, produtoras, musicistas, preparadoras de elenco, programadoras,
etc. Todas profissionais – a maioria mulheres negras. Com apenas R$5 mil para a
realização do filme, todas as pessoas envolvidas trabalharam sem receber
dinheiro.
A estudante transexual
Maria Clara Araújo veio do Recife especialmente para atuar no curta. “A Yasmin
me chamou no Facebook e me convidou para participar das gravações. Eu topei na
hora, porque as mulheres trans não estão representadas em lugar nenhum. Até
quando é para nos representar em filmes, homens cis fazem. Então esse filme é
importante por isso, por representar não só as mulheres negras, mas também as
mulheres trans”, garantiu.
A palavra
“representatividade”, aliás, foi uma das mais faladas da noite. O fato de lotar
os 550 lugares de um cinema tradicional como o Odeon com uma plateia
essencialmente negra, que mora, circula e realiza suas ações além do eixo
Centro-Zonal Sul, é bastante significativo.
A importância do filme também está
na forma como ele foi realizado. Além de mostrar que é possível criar produtos
de qualidade em um sistema distante do modelo tradicional, ele ainda traz um
viés político, que é um retrato da juventude de periferias que vem criando e
ocupando cada vez mais todos os espaços, tanto virtuais quanto físicos.
Problematizar o racismo
através de um filme de arte foi apenas um dos caminhos encontrados. Mas há
muito mais a ser feito – e esta foi a primeira garantia de que “estará tendo” mais filme, mais mulheres
pretas e muito mais representatividade.
“O racismo cria muitos abismos, mas acho que a melhor maneira de a gente
responder a isso é sendo rainhas e dando bafão no Odeon”, brincou Yasmin.
Haverá ainda mais três sessões, nos dias 18, 19 e 20 de setembro, às 17h40. Todos pagam meia entrada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!