(Carolina
e a primeira edição de seu livro)
Não digam que fui rebotalho,
que vivi à margem da vida.
Digam que eu procurava trabalho,
mas fui sempre preterida.
Digam ao povo brasileiro
que meu sonho era ser escritora,
mas eu não tinha dinheiro
para pagar uma editora.
Em
1958, o repórter Audálio Dantas estava na favela do Canindé, em São Paulo,
preparando uma reportagem sobre um parque infantil para o extinto jornal Folha
da Noite, quando se deparou com uma mulher negra de 43 anos que gritava: “Onde já se viu uma coisa dessas, uns homens
grandes tomando brinquedo de criança! Deixe estar que eu vou botar vocês todos
no meu livro!” Curioso, como todo
bom jornalista, Audálio foi atrás dela e descobriu uma escritora: Carolina
Maria de Jesus, que ficaria conhecida mundialmente por Quarto de Despejo, um
clássico de nossa literatura, traduzido em 13 idiomas.
Lançado
em 1960, o livro venderia mais de 80 mil exemplares no Brasil, um best seller
até para os padrões de leitura de hoje em dia. Nele, Carolina fazia um diário
de sua vida desde que deixara Sacramento, em Minas, aos 17 anos, para ir morar
em São Paulo, onde trabalhou como empregada doméstica e, quando Audálio a
encontrou, como catadora de papel. O título veio de uma frase de Carolina: “A favela é o quarto de despejo da cidade”.
A escritora favelada é, de certa forma, precursora de nomes recentes de nossa
literatura que vieram da periferia das grandes cidades, como Paulo Lins (Cidade
de Deus) e Ferréz (Capão Pecado).
“Carolina é uma escritora fundamental para
entender a literatura brasileira, que é feita, em sua grande maioria, de
autores brancos de classe média que dominavam a língua formal. Ela mostra a
outra face dessa história, que passa a ser vista do ponto de vista dela, de
baixo”, diz a professora da Universidade de Brasília Germana Henriques
Pereira, autora de O Estranho Diário de Uma Escritora Vira-Lata, um dos poucos
trabalhos que analisam a obra de Carolina do ponto de vista da crítica
literária. Depois do estrondoso sucesso, Carolina morreria pobre e praticamente
esquecida, isolada num sítio, em fevereiro de 1977.
A
literatura de Carolina Maria de Jesus só foi redescoberta na década de 1990,
graças ao empenho do pesquisador brasileiro José Carlos Sebe Bom Meihy e do
norte-americano Robert Levine, que juntos publicariam o livro Cinderela
negra: a saga de Carolina Maria de Jesus (editora UFRJ, atualmente
esgotado), e editariam duas coletâneas de inéditos da escritora. No exterior,
porém, ela nunca deixou de ser lida e estudada, sobretudo nos EUA, onde Quarto
de Despejo, traduzido como Child of the Dark, é utilizado nas escolas –ao
contrário do que ocorre em sua terra natal.
Audálio
Dantas, descobridor de Carolina Maria de Jesus, deu uma pequena entrevista ao
blog sobre a escritora.
Socialista
Morena – Por que Carolina, mesmo sendo reconhecida no exterior, ficou tanto
tempo esquecida no Brasil?
Audálio
Dantas – É que, como sempre, a moda passou rapidinho. A maioria “consumiu”
Carolina como uma novidade, uma fruta estranha. Carolina, como objeto de
consumo, passou, mas a importância de seu livro, um documento sobre os
marginalizados, permanece.
SM
– Neste meio tempo, não apareceram tantas mulheres faveladas ou empregadas
domésticas escritoras. Por quê?
Audálio
– Xi, foram dezenas ou centenas, Só eu recebi mais de vinte originais, Nenhum
tinha a força do texto de Carolina.
SM
– Ainda hoje existem catadores de papel… A vida nas favelas mudou pouco em
relação à época da Carolina?
Audálio
– Existem até mais, com a necessidade de reciclagem. A maioria, hoje, faz esse
trabalho com carroças (aquelas sempre acompanhadas por um cachorro…). As
favelas também mudaram. Não que seja bom e bonito viver nelas, mas em muitas já
se observam os sinais da movimentação social dos últimos anos, quando milhões
de brasileiros ascenderam à chamada nova classe C. Muitos desses brasileiros
vivem nelas, com TV, internet, celular e outros objetos das novas tecnologias.
SM
– Você acompanhou Carolina até o fim?
Audálio
– Não. Carolina era uma pessoa de personalidade muito forte. Isso pode ser
constatado no livro. Desentendeu-se comigo, me distanciei. Ela sempre buscou a
glória, e quando esta se foi, se ressentiu. Morreu amarga.
Desiludida
com o insucesso de suas obras posteriores, Carolina rompeu com o jornalista e
chegou a criticá-lo no livro Casa de Alvenaria. “Eu queria ir para o rádio,
cantar. Fiquei furiosa com a autoridade do Audálio, reprovando tudo. Dá
impressão de que sou sua escrava”. Em 1961, chegou a gravar um disco, com
canções compostas por ela mesma (uma raridade, ouça aqui). Mais tarde, perto do
final da vida, a escritora mudou de opinião sobre seu descobridor. “O Audálio
foi muito bom, muito correto comigo, eu sempre acreditei nele”, disse Carolina
à Folha de S.Paulo em sua última entrevista, em 1976.
Na
mesma reportagem, Audálio Dantas conta sua versão do rompimento. “Ela recebia
convites de um Matarazzo, recebia convites para falar em faculdades, para visitar
o Chile, para frequentar a sociedade e dezenas de propostas de casamento. Mas
eu achava que ela não devia entrar neste esquema, porque não era uma coisa
natural. Porque as pessoas a procuravam como uma pessoa de sucesso e a viam
como um animal curioso”, disse o jornalista.
No
enterro de Carolina, Audálio era uma das duas “autoridades” presentes além dos
familiares – o outro era o prefeito de Embu-Guaçu. Um orador que não conhecera
a escritora em vida improvisou o discurso de despedida. “Somente compareceram
para lhe dar o último adeus as pessoas humildes, as pessoas que sempre a
acompanharam em toda a sua vida”. E fez, ali, o epitáfio de Carolina: “Morreu
como viveu: pobre”.
Frases
de Carolina Maria de Jesus:
“O
assassinato de Kennedy é descendente de Herodes e neto de Caim. Kennedy era o
sol dos Estados Unidos. O sol que se apagou. Um homem que era digno de viver
séculos e séculos.”
“Antigamente
o que oprimia o homem era a palavra calvário; hoje é salário.”
“O
maior espetáculo do pobre da atualidade é comer.”
“As
crianças ricas brincam nos jardins com seus brinquedos prediletos. E as
crianças pobres acompanham as mães a pedirem esmolas pelas ruas. Que
desigualdades tragicas e que brincadeira do destino.”
“A
amizade do analfabeto é sincera. E o ódio também.”
“Eu
sou negra, a fome é amarela e dói muito.”
“A
favela é o deposito dos incultos que não sabem contar nem o dinheiro da
esmola.”
“Quem
inventou a fome são os que comem.”
“Quem
não tem amigo mas tem um livro tem uma estrada.”
Publicado
Originalmente no Blog Socialista Morena
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