Em
simpósio internacional realizado na USP, estudiosos do regime autoritário
criticam a imposição da idéia de conciliação com os militares e alertam para os
riscos de morte lenta da democracia neste contexto. Para eles, os limites
colocados pela não responsabilização dos torturadores e o legado estrutural da
ditadura ferem o Estado de Direito.
São Paulo
- Para alguns autores, se a própria democracia é incerta quanto aos resultados
do jogo político, os períodos de transição são ainda mais ameaçadores em termos
do controle dos resultados. Dentro desta lógica, muitos responsáveis por
transições de Estados pós-regimes autoritários em todo o mundo optaram pela
reconciliação. Adotaram assim um paradigma de análise centrado no que as elites
políticas eram capazes de pactuar nesses momentos com a elite moderada das
oposições. A idéia era a que, com esses atores negociando, seria possível
devolver o poder a um conjunto de regras claras, que definiram a democracia a
ser retomada.
O
que tais pensadores não previram - ou negligenciaram - foi que a conciliação
poderia impactar de tal forma o processo de transição a ponto de provocar uma
morte lenta da própria democracia. Na última semana, em simpósio internacional
realizado na Universidade de São Paulo, estudiosos da ditadura militar
brasileira e defensores de direitos humanos alertaram para os limites colocados
pela conciliação no país, que ferem o Estado Democrático de Direito.
"A
compreensão era a de que não bastava retirar os autores políticos autoritários
para redemocratizar estrutura do Estado e da sociedade civil. Uma ameaça de
regressão autoritária estaria no horizonte, com o risco efetivo de os militares
darem um novo golpe, e daí a preocupação com um pacto político", explicou
Renan Quinalha, pesquisador da Faculda de Direito da USP, membro do grupo que
organiza uma campanha pela criação de uma Comissão da Verdade na USP.
"Para
que não houvesse risco de uma morte rápida da democracia, certos interesses do
antigo bloco no poder não poderiam ser tocados. As demandas por Justiça dos
familiares eram consideradas desestabilizadoras e indesejáveis - não à toa
foram silenciadas por muito tempo. Mas não atentaram para a dimensão lenta da
morte da democracia, comprometida na sua realização efetiva", acrescentou.
Na
avaliação de Quinalha, uma parte a esquerda brasileira em grande parte pactuou
com essa interdição do passado. Para muitos, discutir memória, verdade e
justiça não era possível. Seria necessário estabilizar a nova ordem democrática,
numa preferência clara de secundarizar a demanda por justiça e analisar a
transição numa ótica utilitarista. "Não interessava uma discussão por uma
transição justa, com uma dimensão ética da nova democracia. Interessava somente
estabelecer novas regras do jogo", afirmou.
Na
transição conservadora, o acordo entre militares, Tancredo Neves e outros
líderes devolveu o poder aos civis, mas garantiu a impunidade dos agentes de
Estado responsáveis por graves violações de direitos humanos. O suposto pacto
foi então cristalizado na Lei de Anistia de 1979 através do dispositivo dos
“crimes conexos aos crimes políticos”.
Para
o jornalista Pedro Estevam da Rocha Pomar, membro do Comitê Paulista pela a
Memória, a Verdade e a Justiça, e autor do livro "Massacre na Lapa",
que conta como o Exército liquidou o Comitê Central do PCdoB em 1976, a Lei de
Anistia tem sido, até agora, a fonte inesgotável da suposta legitimidade e da
condição de intocáveis dos militares, tudo sob o discurso da conciliação
nacional.
"Com
o apoio indispensável das oligarquias, as Forças Armadas brasileiras
conseguiram interditar por longos anos o debate legal e institucional sobre
memória, verdade e justiça", disse. "E mantiveram e ainda mantêm sob
controle direto alguns segmentos do Estado: a Justiça Militar como ramo
específico do Poder Judiciário, o controle do tráfego da aviação civil, as
Capitanias de Portos", destacou.
Pomar
lembra que familiares, ex-presos políticos e grupos de direitos humanos
mantiveram acesa a chama da luta por reparações simbólicas e pela punição dos
responsáveis pelas atrocidades e por toda sorte de violações de direitos
humanos na Ditadura Militar. Mas, ao exigir a punição dos criminosos, sempre
esbarraram nesta muralha, reiterada pela decisão do Supremo Tribunal Federal de
considerar anistiados os torturadores que agiram a serviço da ditadura, o que
"reiterou a cumplicidade de expressiva parcela oligárquica, representada
no Poder Judiciário, com aqueles que praticaram o terrorismo de Estado".
Justiça de transição
A
partir dos anos 90, a partir de reflexões teóricas e documentos da ONU, do
Tribunal Europeu de Direitos Humanos e da Comissão Internamericana de Direitos
Humanos da OEA, emerge o conceito de justiça de transição. A partir de casos
levados a estes órgãos, os mesmos passaram a reconhecer os direitos das vítimas
a terem uma reparação econômica simbólica e a acessarem o direito à verdade, a
medidas de memória – com homenagens aos que resistiram aos regimes autoritários
e desqualificação daqueles que se valeram da estrutura do Estado para implantar
a repressão -, e à justiça, com a identificação e processamento penal dos
violadores. A justiça de transição passa ainda pela reforma das instituições,
considerando que o terrorismo de Estado atravessou várias delas.
"Assim
é necessário haver depuração e uma nova cultura política na sociedade para
internalizar valores democráticos. O conceito, então, é retrospectivo - olha
para o passado para trazer à tona essa história -, mas também prospectivo,
porque isso diz respeito ao presente e ao futuro, para garantir que as
violações não mais ocorram", relata Renan Quinalha. "É neste contexto
que o tema da justiça de transição começa a ser apropriado no Brasil, sobretudo
a partir de 2008, de maneira sistematizada e organizada no debate político e
nas instituições acadêmicas", acrescenta.
Vem
desta perspectiva de justiça a expectativa de punição dos torturadores da
ditadura militar no Brasil, reavivada com a criação da Comissão Nacional da
Verdade, que esta em seu quarto mês de funcionamento. O horizonte da
reconciliação nacional, no entanto, permanece, visto que este é um dos objetivo
da própria Comissão, previso em lei.
"Há
um pacto em vigor entre governo e militares. Não é o velho pacto de 1984,
porque os protagonistas mudaram e porque não há como evitar determinadas
concessões aos familiares e aos ex-presos, mas sua essência não mudou: trata-se
de garantir a impunidade de quem, em nome do Estado castrense, torturou,
humilhou, trucidou e tirou a vida de centenas de “subversivos”", avalia
Pedro Pomar.
Para
o jornalista, a materialização da idéia de reconciliação nacional foi a
cerimônia de posse dos integrantes da Comissão da Verdade, com a participação
de dois ex-presidentesdos, Sarney e Collor, que tiveram participação direta na
ditadura e foram seus beneficiários.
"A
presidenta Dilma discursou, enfatizando que não se trata de revanchismo, nem de
“reescrever a história de forma diferente do que aconteceu”. Afinal, devemos ou
não reescrever a história?", questionou. "Que a burguesia reivindique
a autoria e a legitimidade da ditadura militar, e que parte da oligarquia ainda
hoje a defenda, não surpreende. Que a liderança de esquerda, tendo chegado ao
poder político pela força de 50 milhões de votos, se submeta ao pacto forjado
pela transição conservadora vinte anos antes, trinta anos antes, e o renove,
isso sim ainda surpreende", criticou.
Para
os presentes, um dos maiores riscos da renovação desse pacto é a perpetuação de
situações de violação de direitos humanos que ocorrem no dia de hoje como
reflexos institucionais desse período. Da criação das polícias militares à
tortura que continua a ser praticada em delegacias, quartéis e presídios,
passando pelas condições da população carcerária e pelas execuções sumárias
quase sempre de pobres, negros e moradores das periferias, até a situação de
populações inteiras colocadas sob ocupação militar.
"Encontramos
neste ponto uma relação muito forte entre a atrofia da democracia atual e o
terrorismo de Estado que vivemos no passado, por obra da ditadura militar
instaurada em 1964", acredita Pomar. "Se agentes do próprio Estado
torturam e matam, regularmente e impunemente, não se pode falar em “Estado de
Direito”, mas em terrorismo de Estado, ainda que não seja o Estado central, a
União, o protagonista de tais ações", conclui Pedro Pomar.
Com informações do Carta Maior
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!