O
termo “inclusão” no Brasil costuma ser associado às chamadas políticas
compensatórias, de discriminação positiva ou também ditas de ação afirmativa,
formas imperfeitas adotadas com o propósito de reduzir situações de
desigualdade real provocadas por diversos fenômenos históricos, culturais,
políticos e econômicos que, combinados entre si, produzem as mais relevantes
disparidades sociais. Nos Estados Unidos, onde surgiram nos anos 60, tais
políticas nasceram com metas claras de combate à segregação racial, passando
por diversas modificações e adaptações ao longo do tempo e com resultados
polêmicos.
Na
última década, para além das políticas específicas de cotas (raciais, étnicas,
de gênero e outras), o governo brasileiro passou a desenvolver ações de
inclusão destinadas a reduzir a desigualdade estrutural social – que contém em
si as demais formas de discriminação – a partir da elaboração de programas e
metas de combate à pobreza e de transferência de renda que, por sua vez,
alcançaram resultados históricos inéditos valorizados interna e
internacionalmente. Essa nova forma de conceber a inclusão, menos
compartimentalizada, mais sistêmica e generalizada, tem sido identificada como
uma nova etapa da estruturação do capitalismo brasileiro tendente à
transformação do modelo de distribuição de riqueza neste início do século XXI.
A
sociedade brasileira nunca aceitou com facilidade trabalhar temas e ações de
combate à discriminação e há diversos estudos que procuram explicar sociológica
e antropologicamente a reação de negação ao reconhecimento da estrutura racial
e social excludente, e que afeta de modo particular às mulheres. Sendo o último
país das Américas a abolir a escravidão, desenvolveu, ao longo de mais de
quinhentos anos, um sistema econômico e educacional predominantemente
monocultural e eurocêntrico, produtor das chamadas overlapping opressions, nomenclatura
usada pelas feministas norte-americanas para descrever situações de
discriminação superpostas.
A
resistência de parte da sociedade brasileira em reconhecer processos
discriminatórios, em grande medida sobrepostos, faz com que a adoção de políticas
e programas de compensação e ajustes seja sempre belicosa, tanto no campo
teórico como no político, provocadora do reacionarismo elitista com diferentes
nuances. Mesmo com a gama diversificada e exitosa de ações desse tipo na última
década – graças à orientação política do governo e ao apoio popular recebido
nas urnas – e, em especial, mesmo com o êxito dos programas de combate à
pobreza e de transferência de renda, os dados de institutos de pesquisa indicam
que a desigualdade e a discriminação persistem, e que a pobreza no Brasil,
conforme afirmou a Presidenta Dilma Rousseff, tem face negra e feminina,
referindo-se especificamente a discriminação racial e de gênero.
E
aqui entra a polêmica a respeito do Brasil do século XXI, o Brasil dos BRICS e
o projeto de superpotência. O fenômeno da ascensão econômica do Brasil permite
muitas leituras e os dados proporcionados por institutos de pesquisa como IBGE,
MTE/Rais, bem como os estudos do IPEA/PNAD, ou de outros institutos como FGV e
tantos outros, permitem muitas interpretações – em disputa – a respeito das
causas e consequências da ascensão econômica do país e do crescimento da renda
dos brasileiros.
Indiscutível
constatar a elevação da renda per capita, dos rendimentos advindos do trabalho,
os quais possibilitaram uma melhora geral na condição de vida e de consumo dos
trabalhadores e trabalhadoras, refletindo na queda do desemprego, na aumento
dos índices de formalização do trabalho e na redução da pobreza absoluta. Essa
é a constatação fr Marcio Pochmann, ex-presidente do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), na obra Nova classe média? (Boitempo Editorial,
2012). No entanto, o autor alerta ser um equívoco identificar o adicional de
ocupados na base da pirâmide social brasileira como “uma nova classe média”,
bem como considera não ser um mero equívoco conceitual, mas expressão da
disputa que se instala em torno da concepção e condução das políticas públicas
atuais, com forte apelo para reorientá-las a uma concepção predominantemente
mercantil.
O
livro de Pochmann polemiza com outras obras e estudos que festejam o suposto
aparecimento de uma nova classe C, nova classe média que, como conceitua
Marcelo Neri, realizou e continua a realizar o sonho brasileiro de subir na
vida, que busca construir seu futuro em bases sólidas que sustentam o novo
padrão econômico adquirido: “Ser nova classe média também é consumir serviços
públicos de melhor qualidade no setor privado, aí incluindo o colégio privado,
plano de saúde e o produto prêmio, que é a previdência complementar. Todos
podem ser vistos como ativos meio públicos, meio privados, que conferem maior,
ou menor, sustentabilidade ao sonho brasileiro de subir na vida”. (Marcelo Neri
é considerado o inventor da expressão “nova classe média”, autor de livro com
mesmo nome publicado pela editora Saraiva em 2011 – trecho retirado do capítulo
de abertura).
Analisando
os números da base da pirâmide social renovada e as razões da renovação,
Pochmann conclui que o Brasil tem conseguido combinar, no período recente, a
maior ampliação de renda per capital com a redução do grau de desigualdade na
distribuição pessoal da renda do trabalho. No período entre 2004 e 2010, a
renda per capita dos brasileiros cresceu a uma média anual de 3,3%, ao passo
que o índice da situação geral do trabalho cresceu em média 5,5% ao ano. A
participação do trabalho na renda nacional aumentou 14,8% no período e o grau
de desigualdade na distribuição pessoal da renda do trabalho reduziu em 10,7%.
É
inegável, portanto, o fenômeno da ascensão social a partir do resgate da
condição de pobreza. Pochmann identifica que, diante da combinação da
recuperação do valor real do salário mínimo nacional com a ampliação das
políticas de transferência sociais, faz-se notar que a recente expansão das
vagas de salário de base tem permitido absorver enormes parcelas de
trabalhadores na base da pirâmide social, o que traz como consequência o
favorecimento da redução sensível da taxa de pobreza em todo o país.
Por
outro lado, ressalva que esse avanço da classe trabalhadora ocorre de modo
despolitizado e desconectado ao projeto dinâmico e de profundas transformações
sociais: “o segmento das classes populares em emergência apresenta-se
despolitizado, individualista e aparentemente racional à medida que busca
estabelecer a sociabilidade capitalista. A ausência percebida de movimentos
sociais em geral, identificados por instituições tradicionais como associações
de moradores ou de bairro, partidos políticos, entidades estudantis e
sindicais, reforça o caráter predominantemente mercadológico que tanto os
intelectuais engajados como a mídia comprometida com o pensamento neoliberal
fazem crer.”
Esse
déficit político, déficit de consciência a respeito do potencial transformador
das políticas públicas e da própria valorização da classe trabalhadora, poderia
comprometer um projeto de desenvolvimento consistente e inclusivo,
compromissado com acesso a bens de natureza fundamental, para além dos
meramente mercantis e privatizantes que tentam se legitimar por meio de
medidores de satisfação de consumo e índices comportamentais de felicidade.
Está
em disputa, portanto, um projeto de Brasil que, a depender não apenas do
Estado, mas fundamentalmente da mobilização dos movimentos sociais e políticos,
dos sindicatos, dos operadores públicos e da iniciativa privada com efetivo
compromisso e responsabilidade social, poderá permitir o adensamento dos
processos democráticos a partir da valorização da classe que vive do trabalho
(na expressão cunhada por Ricardo Antunes) em sua nova conformação, projeto que
conta com o apoio de plataformas governamentais de inclusão construídas a
partir de metas sociais claras e comprometidas com uma concepção transversal e
integradora dos direitos humanos, superando a visão compartimentalizada e
vertical de concebê-los.
Com informações do Carta Maior
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