Por Lincoln Secco*
O
Brasil mudou. Excetuadas as passeatas festivas ou marchas evangélicas, desde a
Campanha pelo impeachment em 1992 não havia manifestações de rua com tantas
pessoas simultaneamente em várias cidades do país. É verdade que as atuais não
se comparam em número, finalidade e abrangência com as Diretas Já, que ainda
continuam sendo o maior movimento de massas da história do Brasil (embora ainda
não saibamos a amplitude que os protestos atuais poderão tomar). Mas elas são o
quarto movimento de politização em massa dos últimos trinta anos.
No
primeiro deles, as greves do ABC em 1978-1980 permitiram a criação do novo
sindicalismo, do MST, do PT e da CUT. O PT questionou a estrutura tradicional
dos partidos comunistas e foi em seus primeiros anos uma verdadeira federação
de núcleos e movimentos com grande autonomia em seu interior. As greves foram
derrotadas, mas o PT sobreviveu e cresceu.
O
segundo momento foi uma Revolução Democrática que pôs fim ao Governo Militar. O
processo começou pela campanha das diretas, mas foi filtrado pela lógica
eleitoral que deu ao PMDB um papel proeminente na vida política. A última
tentativa de se opor àquela reação conservadora do PMDB foi a campanha da
Frente Brasil Popular em 1989. O saldo organizativo foi a constituição do PT
como alternativa eleitoral radical de poder.
O
terceiro momento (o Impeachment) devolveu à UNE seu papel de liderança dos
movimentos estudantis, mas as lideranças se contentaram com a simples troca do
presidente Collor pelo seu vice Itamar Franco, o que acabaria permitindo ao seu
Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso se tornar depois presidente.
Vimos
que nos três momentos houve saldos de organização, mas logo encapsulados pelas
forças conservadoras. Durante a década neoliberal dos anos noventa houve um
esvaziamento das ruas e o declínio da militância partidária, como se pode
constatar pela História do PT. Ainda assim, aquele partido manteve o controle
das principais organizações sindicais e movimentos sociais surgidos nos anos
1980.
Quando
o PT foi jogado no canto do ringue durante os escândalos de 2005 a Direita
midiática esperava manifestações populares que nunca aconteceram. Lula governou
oito anos sem enfrentar uma situação como a atual.
Mas
agora a política mudou. Fatores internacionais (crise de 2008, Primavera Árabe,
movimento dos indignados), aliados a transformações tecnológicas que permitem a
ação em rede e a comunicação em tempo real por telefones móveis também
respondem pelas mudanças. Mas nada disso aconteceria se o PT houvesse mantido
sua hegemonia nos protestos de rua como acontecia antes.
Burocratizado,
governista, ele não demonstrou capacidade de se inovar e voltar às ruas. Mantém
uma estrutura invejável, um líder carismático e o sólido controle de sindicatos
e movimentos sociais, mas não são estes que convocam as manifestações. E por mais
que tentem, seus concorrentes de extrema esquerda também não controlam nada.
Na
Cidade de São Paulo a tomada espontânea das ruas em diferentes pontos da cidade
não se compara a nada antes ocorrido. As pessoas simplesmente se apropriaram do
que deveria ser delas: o leito carroçável, o direito de se manifestar e de
andar à noite com os amigos em segurança. Afinal, não há melhor segurança do
que multidões nos espaços púbicos. O que elas fizeram ainda não tem caráter de
permanência, mas decerto a tarifa zero permitiria um pouco de trabalho,
diversão e arte todos os dias. A forma fez-me lembrar a virada cultural
paulistana. Só que agora se trata de uma virada política.
A
história nos ensina que cada movimento destes politiza de uma só vez milhares
de pessoas. Elas não aprendem com teorias, mas com ações. Só que depois as
teorizações, o aprendizado em coletivos permanentes é que consolida o
movimento. Daí a pergunta essencial que não se põe agora, mas se colocará num
futuro próximo: qual o saldo organizativo destas manifestações?
Se
elas terão influência eleitoral futura é o que menos importa. A Direita
Midiática já começou vasta operação para se apossar do movimento de massas. Mas
ela não terá sucesso porque nada tem a oferecer. As pessoas sabem que ela não
apóia nenhuma das reivindicações do Movimento Passe Livre. Mas a vigilância do
MPL deve ser redobrada e ele não pode permitir que a massificação dos atos seja
submergida na oposição oficial partidária.
O
PT também se vê pela primeira vez em sua história confrontado por um movimento
de massas. Por mais que militantes petistas e até políticos estabelecidos
apóiem, ainda que tarde, as manifestações, é inegável que em São Paulo o
aumento de tarifas de transporte determinado por administração do partido foi o
estopim do movimento. O PT não é mais o dono das ruas, mas ninguém é.
Os
partidos de ultra-esquerda cometeram o erro de nascer cedo demais como rachas
internos e sem o batismo que só agora as ruas poderiam ter-lhe oferecido. O
perigo é uma manifestação como a atual ter sua voz (como já acontece) ser
canalizada pela mídia conservadora que rapidamente percebeu que podia virar o
jogo para não perder mercado.
Que
os partidos continuam importantes na rotina eleitoral e que haja diferenças
entre PT e PSDB pode não ser a crença de vários partidos de esquerda, mas é a
de milhões de beneficiários das políticas sociais, do aumento do emprego e do
salário mínimo que o PT implantou no Brasil.
O
PT é melhor do que o PSDB evidentemente. Só que este partido não pode contar mais
com apoio militante que não seja profissionalizado. Suas políticas sociais já
dormem sob um cobertor curto que ao se puxar para cobrir a cabeça, os pés ficam
de fora. É que quando as pessoas conquistam direitos, elas querem mais. Se a
ousadia (ou mesmo o cálculo eleitoral que, afinal de contas, tem sido a única
coisa de interesse para seus dirigentes) fizesse o PT defender a tarifa zero,
ele criaria o seu segundo bolsa família no Brasil.
Mas
o futuro dessa geração nova que vai às ruas diz respeito a outra coisa. Se os
partidos saberão interpretar o seu desejo é problema deles. O que o Movimento
do Passe Livre apontou é uma questão maior: poderá a autonomia das ruas se
expressar em novas formas de organização ou será enjaulada no discurso dos
donos da Grande Imprensa?