Saímos
de uma semana triste e especialmente desoladora para a medicina, quando alguns
médicos sujaram profissão tão nobre tripudiando da doença de Dona Marisa
chegando até a sugerir a sua morte. Mas hoje voltamos a festejar o futuro:
"A casa-grande surta quando a senzala vira médica". Esta é a frase
que abre a conta do Facebook de Bruna Sena, primeira colocada em medicina na
USP de Ribeirão Preto, a vaga mais concorrida da Fuvest – 2017, o vestibular
mais concorrido do país.
Do Portal Fórum
Negra,
pobre, tímida, estudante de escola pública, Bruna será a primeira da família a
interromper o ciclo de ausência de formação superior em suas gerações. Fez em
grande estilo, passando em uma das melhores faculdades médicas do país.
O
apelo da mãe, entre a felicidade e o espanto, é ainda mais dramático: "Por
favor, coloque no jornal que tenho medo dos racistas. Ela vai ser o 1% negro e
pobre no meio dos brancos e ricos da faculdade". Abandonada pelo marido,
Dinália Sena, 50, sustenta a menina Bruna desde que ela tinha 9 anos, com um
salário de R$ 1.400 como operadora de caixa de supermercado.
Bruna
acredita que será bem recebida pelos colegas e tem na ponta da língua a defesa
de sua raça, de cotas sociais e da necessidade de mais oportunidades para os
negros no Brasil. "Claro que a ascensão social do negro incomoda, assim
como incomoda quando o filho da empregada melhora de vida, passa na Fuvest. Não
posso dizer que já sofri racismo, até porque não tinha maturidade e
conhecimento para reconhecer atitudes racistas", diz a caloura.
"Alguns
se esquecem do passado, que foram anos de escravidão e sofrimento para os
negros. Os programas de cota são paliativos, mas precisam existir. Não há como
concorrer de igual para igual quando não se tem oportunidades de vida
iguais."
GEORGE
ORWELL
Para
enfrentar a concorrência de 75,58 candidatos do vaga, Bruna fez o básico: se
preparou muito, ao longo de toda sua vida escolar. "Ela só tirava notas 9
ou 10. Uma vez, tirou um 7 e fui até a escola para saber o que tinha acontecido.
Não dava para acreditar. Falei com o diretor e ele descobriu que tinham trocado
a nota dela com um menino chamado Bruno", orgulha-se a mãe.
George
Orwell, autor do clássico "A Revolução dos Bichos", fábula que conta
a insurreição dos animais de uma granja contra seus donos, está entre os
favoritos da garota, que também gosta de romance e comédia e é fã da série
americana "Grey's Anatomy", um drama médico.
No
último ano do ensino médio, que cursou pela manhã na escola estadual Santos
Dumont, conseguiu uma bolsa de estudos em um cursinho popular tocado por
estudantes da própria USP, para onde ia à noite. "Minha escola era boa,
mas, infelizmente, tinha todas as dificuldades da educação pública, que não
prepara o aluno para o vestibular. Falta conteúdo, preparo de alguns
professores. Sem o cursinho, não iria conseguir."
Segundo
Bruna, que mora em um conjunto habitacional na periferia de Ribeirão Preto,
vários de seus colegas de escolas nem "nem sabem que a USP é pública e que
existe vestibular para passar".
Com
ajuda financeira de amigos e parentes, Bruna fazia kumon de matemática, mas o
dinheiro não deu para seguir com o curso de inglês. "Tudo na nossa vida
foi com muita luta, desde que ela nasceu, prematura de sete meses, e teve de
ficar internada por 28 dias. Não tenho nenhum luxo, não faço minhas unhas, não
arrumo meu cabelo. Tudo é para a educação dela", declara a mãe.
Ainda
segundo Dinália, "alguns conhecidos ajudaram. Uma amiga minha sempre dava
livros para ela. Uma vez, essa amiga colocou R$ 10 dentro de um livro para
comprarmos comida e escreveu: 'Bruna, vence a vida, não deixe que ela te vença,
estude'".
FUTURO
A
opção pela medicina aconteceu há cerca de um ano, por influência de professores
do cursinho popular que frequentou o CPM, ligado à própria Faculdade de
Medicina da USP-Ribeirão. "Claro que não sei ainda qual especialidade
pretendo seguir, mas sei que quero atender pessoas de baixa renda, que precisam
de ajuda, que precisam de alguém para dar a mão e de saúde de qualidade",
declara.
Engajada
na defesa de causas sociais como o feminismo, o movimento negro e a liberdade
de gênero, a adolescente orgulha-se do cabelo crespo e de sua origem, mas é
restrita nas palavras sobre o pai, que não paga pensão e não a vê há anos.
"Minha mãe ralou muito para que eu tivesse esse resultado e preciso honrar
isso. Sou grata também a minha escola, ao cursinho. Do meu pai, nunca entendi o
desprezo, me incomoda um pouco, mas agora é hora de comemorar e ser
feliz."