É tempo de resistência e solidariedade. Porque a fome dói

 

(FOTO/ Pixabay).

Caminhando pelas ruas da cidade, deparei com uma pessoa segurando um pedaço de papelão escrito: a fome dói. Um recente estudo intitulado Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil apontou que 59,3% dos brasileiros ou 125,6 milhões de pessoas apresentaram algum grau de insegurança alimentar entre os meses de agosto e dezembro de 2020. O que significa dizer que essas pessoas não se alimentaram em quantidade e qualidade ideais, com base em perguntas direcionadas para maiores de idade da Ebia (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar) (1). Tratei deste tema em nota técnica da 17ª Carta de Conjuntura do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (Conjuscs).

A pesquisa, coordenada pelo Grupo Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, com sede na Universidade Livre de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Brasília (UnB), constatou ainda que 32 milhões de pessoas passaram fome no período pesquisado.

Vale ressaltar que esse período, entre agosto e dezembro de 2020, em que houve corte de 50% no valor do auxílio emergencial (recurso que demandou a pressão de muitos agentes sociais, como centrais sindicais, sindicatos, movimentos sociais entre outras organizações para que fosse implementado), não refletiu a suspensão do benefício, em janeiro deste ano, o que tornou a realidade ainda mais dura e com mais fome.

Terceirização e precarização do trabalho

Desde a ruptura institucional de 2016, sabíamos que o que se avizinhava era o interesse em precarizar o trabalho e retirar direitos da classe trabalhadora. Não por acaso, o impeachment recebeu apoio, inclusive financeiro em campanhas publicitárias, de entidades patronais conservadoras, que incentivaram a aprovação de uma nova Lei da Terceirização (PL 4330/04, que na prática aumentou a doença do mercado de trabalho, com a informalidade) e a Reforma Trabalhista.

Quando a reforma trabalhista chegou ao Congresso Nacional, o movimento sindical já denunciava o retrocesso que ocorreria nas relações de trabalho e, portanto, perdas significativas aos trabalhadores e trabalhadoras bem como o empobrecimento sistemático da sociedade.

Evidentemente, tínhamos a dimensão que a tal reforma não criaria empregos e nem ao menos impulsionaria o mercado de trabalho, ao contrário, as mudanças na lei, além de prejudicar e precarizar o trabalhador, ainda fragilizaram de forma contundente suas instituições organizativas.

Porém, mesmo com o cenário pessimista que vislumbramos na ocasião, nada se equipara à deterioração do ambiente social, que teve início em 2017 e que a pandemia tratou de agravar.

Retrocesso social

Para se ter uma ideia de como a sociedade brasileira retrocedeu, a partir dessa ruptura com o caminho do bem-estar social, dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares, do IBGE, mostram que em 2004 a segurança alimentar era de 65% da população e foi para 70% em 2009 e atingiu 77% em 2013, mas teve queda significativa nos anos de 2017-2018, com 63% da população com segurança alimentar, voltando a patamares inferiores ao observado em 2004.

É importante lembrar que o enfrentamento da fome no Brasil passa pelo reconhecimento de sua existência e tem ênfase na política pública que criou o Programa Fome Zero, em janeiro de 2003, como a primeira ação efetiva do governo recém empossado, além de recriar o Consea, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

Dentro do Programa, o Bolsa Família, considerado o maior programa de transferência de renda, atingiu 14 milhões de famílias beneficiadas, em 2014, com reconhecimento internacional, principalmente por conta da exigência de manter as crianças na escola, com mínimo de frequência e a atualização obrigatória na vacinação e acompanhamento de saúde dessas crianças.

Mais um indicador na mudança das prioridades políticas que vinham sendo implementadas até 2015, para as que estão vigorando atualmente, é a extinção do Consea, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, no dia 1º de janeiro de 2019, como primeiro ato político do atual governo federal.

Doença e fome x solidariedade e esperança

Além da supressão de um direito humano básico, essa condição deteriorada na alimentação dos brasileiros é um complicador para o enfrentamento da pandemia do coronavírus, com impacto direto sobre a saúde e o sistema imunológico, o que torna o indivíduo mais suscetível ao agravamento da covid-19, aumentando o risco de, em caso de contaminação, vir a óbito.

Outro fator que causa indignação é verificarmos a população abandonada e faminta ao mesmo tempo em que o Brasil se mantém como um dos maiores produtores de proteína animal do mundo e as safras agrícolas batem recordes de produção todos os anos. Mas o que chegou na mesa foi o pouco ou o nada que deu para comprar com os valores abusivos dos alimentos no ano passado.

Apesar de os índices inflacionários serem baixos, oficialmente de 4,5% em 2020, por conta da estagnação econômica, não refletem as constantes altas nos preços dos alimentos da cesta básica, como a do óleo de soja com 103,79% e do arroz com 76,01%. Outros itens importantes na cesta das famílias também subiram expressivamente, entre eles, o leite longa-vida (26,93%), frutas (25,40%), carnes (17,97%),  batata-inglesa (67,27%) e tomate (52,76%).

Diante dessa tragédia brasileira, de fome em meio à pandemia, que tem interrompido a vida de milhares de pessoas todos os dias, centenas de iniciativas foram criadas, pelo segundo ano consecutivo, para arrecadar alimentos e distribuir à população que está abandonada e faminta. Organizações sociais e políticas e até mesmo governamentais promovem campanhas de solidariedade para levar comida aos que mais precisam e ajudá-los à resistir a esse período tão cruel da nossa história. Essas ações nos tiram da paralisia diante da morte e provam que ainda há esperança. 

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Por Rafael Marques, na RBA.


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