A Ideologia do branqueamento: tudo que você precisa saber, por Luana Daltro


Luana Daltro. (FOTO/Reprodução/Facebook).

Toda vez que me proponho a falar sobre um tema denso da estrutural racial, fico pensando e repensando qual será a melhor estratégia para escrevê-lo. Neste momento tento me colocar no lugar de quem talvez nunca tenha pensado acerca da temática e, ao mesmo tempo, expressar todo o sentimento (dores e anseios) que eu sinto enquanto pessoa negra neste país. Meu lugar de fala é brasileiro, é negro, é periférico, e por mais marcadores sociais que possam existir neste corpo andante, há situações que eu não conseguirei alcançar, mas tento transmitir conhecimento para construção da nossa luta antirracista.

Falar de antirracismo é entender o branqueamento

Uma luta antirracista precisa ser pautada em mecanismos de combate ao racismo. Neste sentido, falar sobre embranquecimento é entender como a configuração desta ideologia nos atingiu e atinge enquanto população negra, e a partir disso, desconstruir estereótipos e arquétipos que possam modificar a estrutura racista.

Quando falamos que nossos corpos foram embranquecidos, contamos a história desse país. Nossas ações são pautadas por uma herança baseada em uma ideologia, que está enraizada na nossa sociedade, fortalecida pelo sistema racista. Por isso, para entender o branqueamento, precisamos voltar algumas casas. Vamos lá?

Alerta: Eu sei que vai ser estranho para algumas pessoas, mas vocês vão perceber que NADA do que aconteceu com a população negra foi por acaso no Brasil. Tudo foi muito bem pensado e articulado como forma de extermínio e eugênia de negros e negras. Ações que somente se reformularam à medida do tempo, pois ainda se fazem presentes.

Como o branqueamento nos atingiu

Tudo começou com a vinda de negros e negras escravizados da África. Nossos irmãos eram negros de pele retinta (tom de pele negra escura) que vieram como objetos de exploração, seja qual fosse a natureza dessa, até aqui nenhuma novidade. Mas, houve um ‘problema’ que os portugueses não pensaram né, a população brasileira estava enegrecendo. Então, no século XIX e meados do século XX, a elite brasileira estruturou a “ideologia do branqueamento” baseada na premissa de que era necessário embranquecer o país (tornar a população branca mesmo), uma vez que ser negro era considerado ruim — isso não parece familiar pra você?

Quais foram as ações para o branqueamento?

Nós nos sentimos muito orgulhosos em gritar aos quatros ventos que o Brasil é um país plural, pois somos miscigenados. Porém, o que nunca nos contaram é que a miscigenação foi um processo estruturado, planejado, instaurado e fortalecido para negros e índios (sim, eu sei que dói). Essa foi difundida como forma de alienação de suas identidades, os quais acreditavam que com essa medida, seus filhos seriam incluídos na sociedade, pois sabemos que eles não eram considerados como integrantes da população. Para André (2008), a miscigenação tornou-se eficaz, pois desenvolveu três formas de ação:

1. A violência sexual praticada pelos senhores de escravos em mulheres negras e indígenas. Pra enfatizar: Mulheres foram estupradas com o objetivo de clarear a população.
2. Casamentos fora do religioso.
3. À chegada dos imigrantes no país. Essa é bem legal também. Nossos governantes eram muitos bons, né, então, eles resolveram adotar uma política externa no regime colonial, que facilitava a vinda de imigrantes de todos os países do mundo para o Brasil, oferecendo a possibilidade de trabalho e moradia. Mas, a verdade é que, novamente, o objetivo era o clareamento.

Nota: Eu adoro que os povos africanos até hoje não são vistos como imigrantes quando chegam no Brasil.

No sul, é bem comum as pessoas encherem a boca pra falar que são descendentes de europeus e pipi, pois todas as formas que possam dissociar a origem brasileira é visto como cool. Ou seja, o processo de branqueamento foi um projeto muito bem construído, pois a apropriação deste discurso, por exemplo, na cultura sulista é passada de geração para geração.

Pensem e reflitam, pois todas as ações mencionadas foram políticas eugenistas que devem ser ditas e, ao mesmo tempo, refletidas como sinônimo de vergonha pela população brasileira, ao invés de nos vangloriamos.

O Mito da Democracia racial

A partir da concepção da miscigenação, reforçou-se a crença vigente de que o racismo não existe no país. Na década de trinta, houve a difusão da concepção de que no Brasil se vivia uma democracia racial, mas, é um mito. Por quê? Foi uma “invenção”de que como fomos colonizados por portugueses, que exerceram uma relação superior com os povos colonizados, pois eram “menos agressivos”, logo, eles não eram considerados racistas (mentira total), assim criou-se uma percepção de que a miscigenação e a pluralidade racial do país demonstram que não somos preconceituosos, mas, ao contrário, que somos o povo que exala diversidade.

Daí, eu te pergunto: Que democracia racial é essa, que escravizou negrxs e estuprou mulheres para embranquecer a população?

Como o branqueamento nos atinge hoje?

Pra mim, o embraquecimento ainda é vivo entre pessoas negras devido à desfragmentação identitária. Essa prática está alicerçada na estrutura do racismo — vale lembrar que o racismo é um sistema de poder, logo, suas ações estão associadas à uma configuração que o permita se fortalecer e manter seu poder. Por isso, quanto mais enfraquecidos e desarticulados estivermos, quem ganha é o racismo e a quem o convém.

Desde que tribos oriundas da África chegaram no Brasil como escravizados, um dos principais mecanismos de desarticulação de revoltas e fugas, foi a mistura dessas tribos, pois a cultura e a língua eram diferentes, desta forma, dificultava a comunicação, e por sua vez, a articulação.

Ou seja, toda a organização do período escravocrata no país ainda reflete a forma como nos enxergarmos. Não sabemos a origem dos nossos antepassados. Não é à toa que pessoas negras não conseguem estabelecer, nos primeiros anos da sua vida, uma identidade negra positiva. Por isso, temos uma construção diferente, que se estabelece ao longo da vida. Somos ensinados desde a nossa infância a negarmos os nossos traços corpóreos, alisando os nossos cabelos, desejando afinar lábios e narizes. Seguimos o que é padrão, e o padrão é eurocêntrico — loiro, dos olhos azuis e cabelo liso.

Pessoas negras são embranquecidas para se enquadrar

A libertação dos negros escravizados não aconteceu de forma bondosa e espontânea. Mas, existem diferentes articulações impostas pelo racismo para nos manterem presos. O branqueamento da população negra, por exemplo, é uma delas, ainda estamos algemados no que a branquitude nos impõe. Esse papel é silencioso e instaurado na cultura, logo, não percebemos suas reproduções, por isso, continuamos a segui-las.

Sejamos práticos: Se eu fui ensinada que os meus traços eram feios, ruins e os reneguei, a consequência é eu me aproximar do que é visto como bonito e positivo, correto? Neste caso, o positivo é o branco. Portanto, quando vocês verem pessoas negras alisando seus cabelos, negando seus traços, e não se identificando enquanto negros, não pensem que eles são os culpados. A culpa é do poder estrutural do racismo na sociedade.

O despertar?

Minha teoria é que ainda vivemos numa falsa liberdade social, pois não conseguimos fugir do que é padrão. Lutamos para preservar nossos traços e corpos diariamente. Vivemos um momento no Brasil, no qual pessoas negras estão fortalecendo suas identidades, deixando seus cabelos naturais, buscando o acolhimento entre os seus, se aproximando da cultura negra, articulando movimentos, e isto, incomoda. Ainda é motivo de repúdio porque, no fundo, a casa grande ainda vive no coração de muitas pessoas.

Por mais “afrontosos” que sejamos, acabamos nos enquadrando. Nos enquadramos porque precisamos. E como é difícil admitir, né? Eu sei que todos os passos trilhados até aqui são de resistência, porque devemos reivindicar o que é nosso por direito, e ainda é negado. Ocupamos, porque nossa presença, mesmo que silenciosa, é sentida. Acima de tudo, perseveramos porque lutamos por um mundo mais justo, onde as próximas gerações não precisem sentir o que sentimos.

O despertar? Ele ainda vai acontecer.
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Publicado originalmente no Geledés.

Referência:

ANDRÉ, Maria da Consolação. O ser negro: a construção da subjetividade em afrobrasileiros. Brasília: LGE, 2008.

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