Um
governo com alta taxa de rejeição cria uma guerra contra um inimigo a fim de
reunir apoio popular e distrair a sociedade de outros problemas internos.
Não
dá para dizer que Michel Temer foi criativo com a intervenção federal sobre a
área de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro em meio ao iminente
naufrágio da Reforma da Previdência, uma vez que essa tática tem sido sistematicamente
usada por grupos no poder em várias partes do mundo. Para se ter uma ideia do
tamanho do clichê, filmes que reproduzem esse roteiro nem são mais indicados ao
Oscar, tamanha falta de originalidade.
O
governo dos Estados Unidos, por exemplo, seja ele republicano ou democrata,
adora despejar bombas, invadir territórios e demonizar outros povos quando
precisa dar um gás na popularidade interna visando uma (re)eleição ou reforçar uma
mentira sobre o porquê de suas tropas estarem matando e morrendo a milhares de
quilômetros de distância de casa.
A
situação da segurança pública é muito grave no Brasil. Há um genocídio de
jovens negros e pobres nas periferias das grandes cidades e trabalhadores
rurais, indígenas e populações tradicionais sendo chacinados no interior do
país. Entre as razões da violência urbana, encontra-se uma política fracassada
de guerra às drogas que transforma comunidades em territórios a serem
disputados para comércio e armazenamento de entorpecentes. Morrem moradores,
policiais, traficantes, muitos deles pobres e negros.
Se
os poderes político e econômico se preocupassem com isso, teriam abandonado a
política de criminalização das drogas há tempos e criado alternativas para que
os mais jovens tivessem um futuro. Mas não é o caso. Preferiram encher os
bolsos de dinheiro, saqueando o Rio e estruturando a maior organização
criminosa atuante no Estado. Ou alguém acha que um reles dono de morro faz frente
a um presidente de Assembleia Legislativa ou um governador?
Quando países inflam o inimigo a fim de gerar identidade reativa e unir o povo ao seu redor, quase sempre ele é o ''estrangeiro'', o ''de fora'', o ''diferente'', não é o seu cidadão. O demônio, que merece morrer, é sempre o outro.
Mas,
no Brasil, a intervenção das Forças Armadas determinada pelo governo Temer,
pode levar mais guerra ao próprio povo. Quem morrerá nas batalhas não serão os
''estrangeiros'', mas os brasileiros de comunidades pobres. E o histórico das
ações das Forças Armadas em outros momentos de ocupação mostra que eles devem
se preocupar.
Como
já disse no meu post anterior sobre a intervenção, Forças Armadas são treinadas
para matar. Seus membros não têm liberdade para tomar decisões que levem em
conta a situação do local em que estão em um determinado momento. Mais do que
seguir ordens de um comando militar que vê a necessidade de vencer uma batalha,
o objetivo de um policial deveria ser proteger a vida e a dignidade humanas
acima de qualquer outra coisa. Pois a polícia não está em guerra com seu
próprio povo. Ou, pelo menos, não deveria estar. E considerando que a
legislação foi alterada no ano passado e a Justiça Militar e não a Justiça
Comum passou a ser a responsável por julgar crimes cometidos por membros das
Forças Armadas no exercício de suas atividades, há um potencial não mensurado
de impunidade nessa história.
Um
colega jornalista me ponderou, contudo, que se isso acontecer, as Forças
Armadas estarão sim matando os inimigos, os estrangeiros, os de fora, na visão
de uma parte da sociedade. Porque esses substituíveis, pobres moradores das periferias
– onde as batalhas são sempre travadas – nunca foram considerados como cidadãos
tanto por aqueles que lucram com o medo quanto por aqueles que temem mais o
discurso da violência do que a vivenciam em si.
E
talvez resida aí a razão de todo esse circo estar acontecendo.
A
intervenção federal é a prova de que falhamos. Profundamente, amargamente. Não
apenas ao manter governantes incompetentes, corruptos e insensíveis, que
perseguem soluções simplistas e fogem de ações estruturais, mas também ao permitir
que a cidadania não seja universalizada (desde 13 de maio de 1888) e que a vida
desses não-cidadãos valesse menos do que um instrumento descartável de
trabalho.
O
governo sabe muito bem a estrada que pegou. Mas não tem ideia para onde ela vai
levar.
Pois
só um país que se perdeu tem coragem (ou a estupidez) de declarar guerra ao próprio
povo. (Por Leonardo Sakamoto, em seu Blog).
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