Visita de Judith Butler ensina: ideologia de gênero e bruxas não existem


Temos que buscar espaços sem censura e medo (…) A maior parte das pessoas que convivem comigo passa por um momento de angústia política. Temos dores na cabeça e no estômago. Isso acontece quando passamos a perder esperanças e começamos a viver a injustiça”, afirmou a filósofa norte-americana Judith Butler nesta terça-feira (7). Uma das principais pensadoras na atualidade em questões como gênero e ética, ela está em São Paulo, onde ministrou palestras ontem (6) e hoje.

Sua presença despertou a ira de setores conservadores e de fundamentalistas cristãos brasileiros, que chegaram a promover uma petição para tentar censurar a palestrante. Não tiveram sucesso. Na noite de ontem, Judith falou no auditório da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), na Vila Mariana, zona sul da capital. Hoje, foi a vez do bairro da Pompeia, na zona oeste, receber no período da manhã a filósofa, na unidade local do Sesc.

Como esperado, os grupos que defendiam a censura compareceram à porta do Sesc. O resultado da perseguição foi o oposto. Coletivos em defesa da democracia também marcaram presença para garantir o debate, e compareceram em maior número. Enfim, o debate não só aconteceu como o previsto, como ganhou maior visibilidade. Auditórios lotados, milhares de espectadores via internet e centenas de pessoas escutaram Judith na calçada da rua Clélia, em frente à sede do Sesc Pompeia.

De um lado, antes da fala da filósofa, os presentes debateram, com um microfone aberto, os perigos da radicalização e do fundamentalismo. “Estamos vendo uma questão delicada, vivendo um período de censuras. Isso nos faz enxergar como a democracia está em risco. Esse movimento tem um objetivo político e fala sobre ‘ideologia de gênero’, o que não existe”, disse a antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira.

Esse movimento aproveitou a visita de Judith Butler para tentar impor sua agenda política, que vem sendo construída nos últimos tempos, como se viu na questão dos museus. Vivemos um conjunto de eventos que foi preparando para esse cenário trágico”, completou. A tragédia em questão ganhou fortes símbolos em meio aos conservadores. Eles carregavam crucifixos e bíblias, e queimaram uma boneca de bruxa com o rosto de Judith. “Queima no inferno, bruxa! Jesus tem poder”, diziam.

A voz de Judith

Em sua palestra, a filósofa afirmou que o “ódio vem do medo da diferença”. A pensadora possui uma carreira diversificada dentro das ciências sociais, e ganhou notoriedade por seus estudos sobre questões de gênero e feminismo, o que despertou o ódio que tentou censurá-la. Entretanto, o que esses movimentos talvez não soubessem é que o tema de suas palestras no Brasil nada tinha a ver com essas questões.

A pensadora veio ao Brasil para falar sobre sua mais nova obra: Caminhos Divergentes (2017), da editora Boitempo. No livro, Judith reúne conceitos judaicos e textos de pensadores palestinos para tentar encontrar formas de encerrar o conflito histórico na região. “O Estado de Israel não exemplifica o que as pessoas encontram no judaísmo, ao mesmo tempo, pode-se ler escritores palestinos para pensar com eles a dor do conflito e os futuros de uma coabitação”, disse.

O ponto central no livro é a proposição de uma coexistência pacífica entre os dois povos dentro do mesmo território. Um “Estado binacional”, como explicou. Isso para reverter injustiças promovidas pelo Estado israelense contra os palestinos. “Pode parecer estranho que escrevi um livro sobre o tema Israel e Palestina se você me conhece como pesquisadora de questões de gênero. Caminhos Divergentes é um livro que considero o que pode ser possível dentro da tradição judaica para estabelecer uma crítica ao Estado de Israel pela despossessão e subjugo do povo palestino desde sua fundação, em 1948”, disse.

Desde a formação do Estado israelense, mais de 5 milhões de palestinos foram expulsos de suas casas ou confinados em guetos modernos como Gaza. Judith, que é judia, argumenta que a crítica à política israelense nada tem de antissemita. “Alguns críticos suspeitam imediatamente: será que não é antissemita criticar o estado de Israel, pois ele representa o povo judeu? Talvez seja mais importante saber que muitos judeus que afirmam sua judaicidade não dão apoio ao Estado de Israel e não consideram que ele os represente. O motivo da crítica é que o Estado de Israel deveria ser democrático, tratando todos os cidadãos igualmente, independentemente de sua religião”, afirmou.

Os discursos da filósofa foram os mesmos ontem e hoje. Na Unifesp, ele foi acompanhado de uma apresentação da reitora da universidade, Soraya Smaili, também integrante do Instituto de Cultura Árabe, que trouxe Judith ao Brasil juntamente com a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade da Califórnia em Berkeley, o Sesc, e a revista CartaCapital. “Judith é conhecida por ser uma voz crítica e muito bem fundamentada em seus escritos. Como genuína pensadora, trata questões do contemporâneo com engajamento, diálogo, dentro e fora da academia, com uma boa dose de afeto e humanidade”, afirmou Soraya.

Tornou-se extremamente conhecida por seus estudos de gênero, feminismo e teoria queer. Porém, é também uma voz ativa e engajada nas questões da violência e da injustiça social relativa às guerras, à transfobia, à tortura, à violência policial, ao antissemitismo e à discriminação racial de todos os tipos. Tem diversos livros publicados no Brasil, onde é particularmente querida e amada. Aqui, teremos a honra de ouvi-la falar sobre uma questão complexa do mundo contemporâneo, além de muito importante para a humanidade: a necessidade de uma convivência democrática radical entre israelenses e palestinos. Butler afirma que a judaicidade, em sua essência, está vinculada à justiça social e não à violência de Estado”, completou a reitora.

De fato, a filósofa usa como argumento, por exemplo, a Lei do Retorno de Israel, que permite aos judeus de todo o mundo cidadania no Estado israelense. Ela lembra que o país foi criado como um “santuário” para os refugiados judeus dos horrores do Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial para que o povo pudesse ter o direito à cidadania. Direito que, de acordo com a pensadora, é suprimido dos refugiados contemporâneos e dos palestinos. “Acreditamos que os refugiados precisam de um lar, um lugar de pertencimento, algo que Israel foi para os judeus. Agora, se aceitamos o argumento para um grupo, temos que aceitar para o outro. Nenhum grupo pode ser destituído de pertencimento e cidadania. Falamos isso sobre o povo judeu e também dos palestinos, sírios, e do grande número de pessoas despossuídas”, disse.

Todo judeu pode pedir cidadania em Israel, sob a chamada Lei do Retorno. Mas a demanda palestina pelo retorno é negada por Israel. Então, um grupo de refugiados tem o direito de formar um Estado em terras palestinas e tirá-los de suas casas, enquanto outros não têm o direito de formar um Estado ou de ficar em suas terras. O conflito nasce desta contradição. Também significa que precisamos de uma política de refugiados consistente na região. Isso está na coabitação, em nos vermos como iguais, na dissolução do poder colonial e na abertura de cidadania dupla”, concluiu. (Com informações da RBA).

Intolerância conservadora não conseguiu censurar palestra da filósofa norte-americana. (Foto: Reprodução/Facebook).



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