Há
algo de instrutivo no ritual que o Congresso Nacional ofereceu ao país na
última quarta-feira, quando um ocupante do cargo da Presidência, gravado em
situação flagrante de prevaricação e corrupção passiva, formalmente denunciado
pela Procuradoria Geral da União, foi poupado.
É
difícil imaginar algum país no mundo que chegaria a um espetáculo tamanho de
degradação comandado por uma casta de políticos dignos de filmes de gângsteres
série B. Ao menos, depois dessa confissão de desprezo oligárquico pela opinião
pública, quem sabe agora parem de falar que estamos em uma “democracia”.
Enquanto
o país assiste a universidades públicas suspenderem as aulas por se encontrarem
em situação falimentar, serviços públicos entrarem em deterioração, agências de
pesquisa decretarem estado de calamidade e 3,6 milhões de pessoas saírem da
classe média baixa em direção à pobreza, o ocupante do trono da Presidência,
único presidente da história brasileira a ser denunciado pela Justiça no cargo,
gastava milhões de reais em suborno explícito de deputados, uso de cargos
públicos para aliciamento de votos e liberação de emendas escusas a fim de
garantir sua sobrevida.
Ou
seja, bem-vindos a uma cleptocracia que agora não faz nem sequer questão de
conservar as aparências. Há algo de terminal quando até mesmo as aparências já
não são mais conservadas. Tudo isso com o beneplácito daqueles que dizem que o
país precisa, afinal, de “estabilidade”.
Com
se vê, há algo de muito interessante no conceito de “estabilidade” que circula
atualmente. Uma estabilidade da pauperização, da precarização do emprego, do
desmonte dos serviços públicos e da redução final da república brasileira a uma
farsa macabra.
Contra
isso, há aqueles que falam que receberam uma “herança maldita” do governo
anterior. Alguém deveria explicar essa repetição compulsiva que nos acomete.
Vivemos em um país onde todo governo usa o expediente de culpar a herança
maldita do anterior para mascarar sua própria impotência. O cômico é que eles
sempre encontram alguém a continuar a vociferar a mesma estratégia surrada de
sempre.
Mas
o que pode realmente impressionar alguns é o silêncio com que este momento foi
recebido por setores da sociedade brasileira ou, antes, os expedientes que
vemos para justificar a passividade. Por que as ruas não queimam, perguntam?
Ao
menos três fatores deveriam ser levados em conta aqui.
Primeiro,
porque estamos falando de um governo que atira em manifestantes em toda
impunidade, como vimos na última manifestação de greve na Esplanada dos
Ministérios. Ele usa seu braço armado para cegar estudantes com bala de
borracha, atemorizar a população nas ruas com sua polícia gestora da desordem,
ameaçar com punições os que entram em greve e ridicularizar o fato de 35
milhões de pessoas pararem o país (como na última greve geral). Ou seja, boa
parte das pessoas não sai às ruas porque elas têm medo da violência do Estado,
já que elas tacitamente sabem que não têm mais garantias alguma de integridade.
Segundo,
porque há um setor da sociedade brasileira que nunca teve problemas com corrupção,
mesmo que tenham saído às ruas em 2015 falando o contrário. Eles sempre votaram
em corruptos notórios e continuarão fazendo isto. O único problema deles era
com o governo anterior. Derrubado o governo, todos eles voltaram para casa e
continuarão lá para todo o sempre.
Por
fim, não há ninguém nas ruas porque a esquerda brasileira entrou em colapso.
Presa entre a tentativa de ressuscitar o que morreu e a incapacidade de
encontrar outra forma de incorporação genérica de sua multiplicidade de
demandas em um ator político unificado, ela encontra-se paralisada e sem
capacidade de dizer claramente o que quer, qual seu horizonte.
Queremos
simplesmente retornar ao passado recente, conservar o que está sendo
desmontado, ou temos algo a mais a propor? Conseguiremos fazer a maioria da
população brasileira sonhar e acreditar em sua própria força de transformação e
luta ou empurraremos todos a um horizonte desinflacionado de mudanças, como se
isso fosse a expressão de um realismo duro, porém pretensamente necessário?
Sem
clareza acerca desses pontos, ninguém avançará um passo.
*Artigo
do filósofo e professor da USP Vladimir Safatle, originalmente publicado na
Folha de São Paulo e reproduzido no site da Luciana Genro.
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