A
Ciência não é neutra. Nada, aliás, o é. Mas a Ciência, de todas as formas de
aquisição de conhecimento, é a mais objetiva e a que tem tido os melhores
resultados práticos. Desde 1620, quando foi publicado o livro Novum Organum de
Francis Bacon, a estruturação de uma metodologia científica tem propiciado um
intenso desenvolvimento da humanidade. A aquisição de conhecimento e sua
validação atingiram também a própria Ciência que se critica e reconstrói a todo
o momento.
Por
Fernando Horta, no GGN - É claro que vivemos um momento de
anti-intelectualismo, em que o conhecimento consolidado precisa lutar por
legitimidade com vídeos ou notícias apócrifas na rede mundial de computadores.
E esta luta é inglória, pois o juiz frequentemente carece de ferramental
cognitivo para fazer a função de julgar. Fica tudo na opinião pessoal, como se
nada dali em diante pudesse ser verificado.
Pensando
nisto, resolvi trazer alguns trabalhos muito bons que tive a oportunidade de
acompanhar tanto na última ANPUH (Associação Nacional de Historiadores) como na
SBS (Sociedade Brasileira de Sociologia). Ambos os eventos se deram em Brasília
na semana que passou. E, junto com a Ciência Política e a Antropologia estão
entre as disciplinas que mais tem a dizer no momento atual. E as mais
negligenciadas.
Há
muito que se fala na tática de consolidação do poder através de laços
familiares. No plano geral, a obra de Perry Anderson, “Linhagens do Estado
Absolutista”, demonstra a “política de casamentos” como forma de unificação dos
Estados Nacionais europeus. No Brasil, o livro de Raymundo Faoro, “Os donos do
poder”, em que pese hoje criticado, estabelece uma ligação entre o exercício do
poder e as relações interpessoais para se chegar aos postos deste exercício.
Faoro argumenta pelo sentido estrutural, mas existem pesquisas que vão nas
micro relações.
Ricardo
Costa de Oliveira, José Marciano Monteiro, Mônica Helena Goulart e Ana
Christina Vanali (todos professores doutores) apresentaram um estudo das
relações familiares dos integrantes da Lava a Jato e do ministério de Temer na
SBS. Um pequeno fragmento dos seus trabalhos doutorais de mais fôlego. Todos
estudam estas relações espúrias, daquelas famílias de “homens bons”, todos
ligados ao poder. Há quem pense que é fruto de uma genética privilegiada,
afinal todos da família são meritocraticamente destacados. A realidade é que a
teia de poderes familiares no Brasil, vai de norte a sul sem muita diferença.
Os
pesquisadores mostram, com desprendimento científico, o que advogados sabem (e
sofrem), o que os membros honestos dos poderes estão cansados de saber (e
calar) e o que a mídia solenemente ignora (porque frequentemente é favorecida)
deixando o povo na mais completa ignorância. O poder no Brasil é uma coisa
familiar. E não é por acaso que a maior crise institucional no Brasil se dá
quando o congresso é composto pela maior quantidade de “herdeiros” e o
judiciário, da mesma forma.
Primeiro,
é preciso ressaltar que TODOS os integrantes da “Força Tarefa da Lava a Jato”,
que tem na figura do Juiz Moro o principal agente acusador, estão entre o 1%
mais rico da população brasileira. Mais da metade está entre o 0,1% mais rico,
devido aos seus ganhos estatais. Isto apenas para recolocar a questão “antiquada”
da luta de classes em seu devido lugar. Em cem anos dirão – com certeza –
através de dados e pesquisas, que a Lava a Jato foi o instrumento das elites
políticas e econômicas contra os projetos de diminuição da desigualdade no
Brasil. Como um “cala a boca e fica no seu canto” dado pelas elites urbanas,
com títulos acadêmicos (embora parco conhecimento), brancas, conservadoras e
enriquecidas aos “desagradáveis”, aos “insuportáveis” e aos “desnecessários” na
visão delas mesmas.
Depois,
o trabalho envereda para mostrar que todo o grupo da Lava a Jato (com exceções
nada honrosas) são “advindos de famílias em que pais e familiares atuaram e/ou
atuam no sistema de justiça, muitos no período da última ditadura militar”
(citado do original). O ministério de Temer é ainda pior.
Um
ponto interessante, levantado pelos pesquisadores, é o fato de que não apenas
Moro e Yousseff estiveram presentes no processo do Banestado (2003-2004), em
que as lideranças do PSDB, PP e do PFL (atual DEM) estavam envolvidos em crimes
de corrupção e financeiros. Os procuradores Carlos Fernando dos Santos Lima,
Januário Paludo e Orlando Martello Junior, que fazem parte da Lava a Jato
também estavam naquele processo. E, pasmem, os policiais federais Marcio
Anselmo e Érika Mialik também. Yousseff talvez tenha como regra para cada dez
anos de ilicitude, uma delação premiada. Algo como “férias merecidas” e o
apagamento de seus crimes. Mas o número elevado de membros presentes nas duas
operações levanta a tese do esquema organizado. Uma espécie de “gatilho
político” que as elites teriam caso o “andar de baixo” resolvesse realmente
entender o que é democracia. Uma bomba institucional que ficaria ali latente
até poder ser usada politicamente contra quem valesse a pena, por quem tivesse
força para usar.
O
caso do procurador Carlos Fernando dos Santos Lima é ainda mais constrangedor.
Carlos é filho do deputado estadual da ARENA, Osvaldo Santos. Deputado,
promotor e presidente da assembleia em 73, apoiador da ditadura militar.
Segundo os pesquisadores, Carlos foi casado com Vera Márcia que é
“ex-funcionária” do Banco Banestado. E que atuava no banco, nas mesmas agências
investigadas pela ação do Banestado, nas mesmas funções investigadas durante
todo o período que seu esposo fazia as investigações. Depois, Vera Márcia,
ainda casada com o procurador foi transferida para a Agência da Ponte da
Amizade, em Foz do Iguaçu, apenas a agência com maior suspeita de fraudes e
ilicitudes.
Sobre
Moro, os pesquisadores levantam a já conhecida e estanha formação acadêmica “à
Jato”, mas se detém em sua esposa. Rosângela Wolff de Quadros “fez parte do
escritório de advocacia Zucolotto Associados, em Maringá (...) que defende
várias empresas petrolíferas estrangeiras” (cito do original). Afora todas as
relações da genealogia de Rosângela com a elite estatal paranaense, os
pesquisadores levantam que Rosângela Moro é prima do prefeito Rafael Greca de
Macedo e – agora vem a pérola de ironia histórica – “ambos descendem do Capitão
Manoel Ribeiro de Macedo, preso pelo primeiro Presidente da Província do Paraná
por acusações de corrupção e desvio de bens públicos em instalações estatais”.
Para os que não lembram, Greca é o prefeito que tem nojo do cheiro de pobre.
Tanto Moro quanto Rosângela Wolff tem parentes desembargadores no Paraná afora
as relações com Flávio Arns e Marlus Arns que atuaram como advogados de réus da
Lava a Jato. Os pesquisadores falam da “lucrativa indústria advocatícia da Lava
a Jato” em que Moro prende, e conhecidos dele e de sua esposa são contratados
para tentar soltar os réus. A preços módicos, claro.
Só
para não ficar sem falar do vice-presidente, dos trinta e um ministros de
Temer, dezessete “apresentaram significativos capitais sociais e políticos
familiares nas suas trajetórias” mostrando que “a característica familiar do
sistema judicial e do governo do Brasil” está presente em todas as regiões.
É
de se entender o motivo de Temer atacar a Ciência no Brasil e em especial as
humanidades. Em regimes autoritários, os primeiros ataques são aos historiadores,
sociólogos e cientistas políticos. Se dirigem àqueles que têm ferramental para
demonstrar a violência, criticar e abrir os processos de poder. Felizmente,
ainda temos quem faça pesquisa e Ciência no Brasil. Felizmente não poderão
dizer, daqui a cem anos, que a sociedade brasileira não foi avisada do caos a
que está sendo levada e de como eram as relações de poder de quem a levou. Não
nos furtamos, enquanto cientistas, de demonstrar que a “neutralidade” é uma
mentira tão grande quanto a “meritocracia”. É a velha luta de classes em seu
viés mais abominável. Travestido de institucionalidade técnica.
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