Samuel Almeida: Desabafo de um recém-formado



Confesso, fui enganado. Talvez pela inocência ou imaturidade, embora acredite que muita gente boa e velha de guerra tenha caído na mesma armadilha que caí.


Ingressei no curso de Direito em 2011 quando a AP470 ainda era uma recém-nascida e Joaquim Barbosa não havia sido alçado à condição de Presidente do Supremo. À época fiquei deslumbrado com as disciplinas iniciais do curso e com as possibilidades de efetivação de evolução social através do Judiciário. Encantavam-me as aulas de Teoria da Constituição ministradas por um senhor já octogenário, que falava das Constituições passadas com experiência própria. Testemunha viva dos anos de chumbo, explicava minuciosamente incisos do artigo 5º, dando as razões de ser e os fundamentos de cada um deles. Dizia o Professor Gaspar: “A Constituição é um conjunto de garantias contra o Estado.” Como me impressionavam tais palavras! Posteriormente, vim a saber através de renomados doutrinadores que a nossa CF é considerada a mais democrática do mundo. Tudo parecia estar andando nos trilhos.

Na prática o cenário também era favorável. Programas sociais a pleno vapor, redução drástica da pobreza, diminuição das desigualdades, país saindo do mapa da fome, tudo de acordo com as previsões do art. 3º da CF.

Com a evolução no curso, o deslumbre e o encantamento foram se esvaindo. É natural paixão que a paixão diminua com o passar do tempo, mas o cenário atípico pós-2013 colaborou com a desilusão. Conheci o chamado ativismo judicial e percebi que o Judiciário que deveria ser o último dique de contenção dos 3 poderes, conforme previsão do art. 2º da CF, assumia posição protagonista tentado a tomar os lemes das decisões políticas do país.

Vi que através de chicanes hermenêuticas o STF fazia paulatinamente as vezes de Legislativo e Executivo. E o pior, tudo com o aval da população, influenciados pela mídia, e dos demais membro do Judiciário que aplaudiam de pé interpretações bizarras como a dada ao domínio do fato na AP470, refutada pelo próprio autor da teoria quando do Seminário IBCCrim em 2014.

O STF que durante o início década de 70 era o bastião que resguardava liberdades individuais e recebiam e deferiam pleitos de Dalmo Dallari, Sobral Pinto e Técio Lins e Silva, passou a desconsiderar princípio da insignificância, chancelar condenação de pequenos traficantes, culminando no deferimento do início de cumprimento de pena em 2ª instância, contradizendo totalmente o texto constitucional. Por sua vez, o Ministério Público que por lei deveria assumir o papel de fiscal da Ordem Jurídica passou a atuar como parte que busca a condenação a todo e qualquer preço. 300 mil, 500 mil, 700 mil presos! O céu é o limite para a sanha punitivista.

Sob a hipócrita promessa de desfazer o jargão popular de que ‘no Brasil só pobres vão presos’, apareceu, por fim, um juiz salvador da pátria. Mesmo em primeira instância porta-se como um arauto da ordem com a missão de moralizar o país erradicando toda e qualquer corrupção a partir da 13ª Vara Federal de Curitiba.

Obtendo o diploma no fim de 2015, me vi – como o Desembargador Carreira Alvim na sua obra Hurricane – no olho do furacão, no meio do momento político mais conturbado dos últimos anos. Era tarde demais para voltar atrás e já me encontrava dentro de uma instituição que optou por buscar objetivos diametralmente opostos aos anunciados na Constituição Federal.  Penso como deve ter sido angustiante a vida e a carreira de militares que não partilhavam dos interesses das forças armadas durante os anos 60 e 70. Perseguições internas, ostracismo, advertências e punições aos mais liberais. Exatamente como está ocorrendo com a ditadura do Judiciário atualmente. O caso da juíza Kenarik Boujikian é prova recente disso. Mais de 20 anos de TJSP e punida unicamente por fazer cumprir a lei.

E o estado d’arte do Judiciário não surgiu do dia para a noite. Esse monstro da ditadura do ativismo do ativismo judicial foi alimentado diuturnamente pelos meios de comunicação formadores de opinião, habilidosos em convencer as massas. Todavia, o problema de se alimentar um monstro é que as coisas podem fugir do controle e ele acabar te engolindo. Os frutos mais podres dessa semeadura estão começando a aparecer, tendo sido recentemente a Folha de SP censurada dentro de um suposto Estado Democrático de Direito com uma Constituição Federal pós-ADPF 130. Talvez esteja na hora da Velhinha de Taubaté voltar a estampar os editoriais.

As possibilidades de atuação profissional dentro da área de formação vão se afunilando. Os Magistrados que não quiserem ser punidos devem obedecer as diretrizes conservadoras dos Tribunais. O Ministério Público é repleto de membros dotados de filosofia punitivista, como denunciou Roberto Tardelli em corajosa e recente entrevista. 

Advogados são humilhados dia após dia nos balcões por serventuários e em gabinetes por Magistrados que fingem desconhecer o EOAB. E a Defensoria Pública que num mundo doce e colorido deveria ser composta de membros com ideais libertários tem hoje mais de 60% de seus defensores desejando porte de armas e cerca de 3% defendendo a pena de morte.  O Judiciário vai mal. E não vislumbro caminho de volta.

Restava até semana passada a possibilidade de fuga da instituição ingressando na docência, porém diante das acusações de plágio e divulgação em veículo oficial de titulação inexistente dentro da mais antiga e tradicional instituição de ensino de Direito do país, essa possibilidade mostrou-se também como mero sonho pueril. Sabe-se lá quais as improbidades praticadas nos critérios de seleção e admissão nos programas de pós-graduação. Seria uma boa pauta para investigação pelo MP, se não estivessem tão ocupados denunciando microtraficantes.

O cenário é desolador e não vislumbro por ora qualquer saída. Se há um consolo, é saber que não sou o primeiro e nem estou sozinho nessa. Divido minhas náuseas Sartreanas com cartas de Salo de Carvalho e Roberto Tardelli. Partilhar angústias com tais nomes dá ao menos o alento da impressão de se estar trilhando o caminho certo.

Foto: STF/ Justificando.

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