Pouca
gente no planeta observa a geopolítica mundial com a lucidez de Boaventura de
Sousa Santos. Catedrático aposentado da Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra, Portugal, e professor emérito da Faculdade de Direito da
Universidade de Wisconsin, Estados Unidos, Boaventura é também profundo
conhecedor da realidade do Brasil, onde passou a ser mais conhecido no início
deste século, ao organizar e participar de edições do Fórum Social Mundial, e
onde esteve recentemente para lançar seu novo livro, A Difícil Democracia
(Editora Boitempo).
Da RBA
Ao
analisar o complexo cenário político e econômico global, o professor considera
incompatível a coexistência entre a democracia e as modernas sociedades
capitalistas. Para ele, a democracia, limitada ao nível do sistema político,
sempre sucumbe, na prática, aos três modos de dominação de classes:
capitalismo, colonialismo e patriarcado. O resultado, com alguma variação de
tons aqui e ali, é a prevalência de um fascismo social. Tome-se o caso
brasileiro no qual, segundo Boaventura, a democracia tinha mais intensidade
antes do “golpe
parlamentar-midiático-judicial” do que tem agora. Agora, a simples
composição do governo mostra como a democracia está mais capitalista,
colonialista e patriarcal. E o que tem o fascismo social a ver com isso?
Sua
definição das situações em que o fenômeno ocorre soará familiar: quando uma
família tem comida para dar aos filhos hoje mas não sabe se a terá amanhã;
quando um trabalhador desempregado se vê obrigado a aceitar as condições
ilegais que o patrão impõe; quando uma mulher é violada a caminho de casa ou é
assassinada em casa pelo companheiro; quando povos indígenas são expulsos de
suas terras ou assassinados impunemente por capangas a serviço de
latifundiários; quando jovens negros são vítimas de racismo e de brutalidade policial
nas periferias das cidades.
“Em todos estes casos, as vítimas são
formalmente cidadãos, mas não têm realisticamente qualquer possibilidade de
invocar eficazmente direitos de cidadania a seu favor”, define o professor.
As vítimas de fascismo social, portanto, não são consideradas plenamente
humanas, como ele resume. Boaventura vê ainda nos planos do atual governo um
potencial devastador, de definhamento da democracia e de um aumento brutal do
fascismo social. Confira entrevista para a Revista do Brasil, disponível apenas
no site.
É possível funcionar uma democracia
plena em um sistema capitalista globalizado, neoliberal e com mídia
oligopolizada?
Nas
sociedades capitalistas em que vivemos e que, aliás, além de serem
capitalistas, são colonialistas e patriarcais, não é possível democracia plena
porque ela só opera (e mesmo assim com muitos limites) ao nível do sistema
político, enquanto as relações sociais diretamente decorrentes dos três modos
de dominação (capitalismo, colonialismo e patriarcado. Ou seja, as relações
patrão/trabalhador, branco/negro ou indígena, homem/mulher) só muito
marginalmente podem ser democratizadas a partir do atual sistema político.
Aliás, torna-se virtualmente impossível quando o sistema político é, ele
próprio, dominado por patrões, por homens e por brancos. Ao deixar um vasto
campo de relações sociais por democratizar, a democracia é sempre de baixa
intensidade. Mas obviamente há graus de intensidade e os graus contam muito na
vida das pessoas. A democracia brasileira tinha mais intensidade antes do golpe
parlamentar-midiático-judicial do que tem agora. A simples composição do
governo mostra como a democracia é agora mais capitalista, colonialista e
patriarcal.
O que seria a democracia do futuro?
Em que ela precisa romper com a democracia que temos hoje?
A
democracia que temos não tem futuro, porque as forças sociais e econômicas que
atualmente a dominam e a manipulam estão possuídas de uma tal voracidade de
poder que as impede de aceitar os resultados incertos do jogo democrático
sempre que estes não lhes convêm. A manipulação midiática e a fraude eleitoral
(constitutiva no caso dos Estados Unidos) vão acabar por retirar qualquer
vestígio de credibilidade à democracia. Nessas condições, a luta pelo ideal
democrático vai implicar no futuro próximo uma ruptura do mesmo calibre das
revoluções da primeira metade do século 20. Esperemos que menos violenta. Será
uma democracia de tipo novo que procurará garantir o máximo de autonomia do
sistema político em relação aos três modos de dominação acima referidos – para
o que será necessária uma Assembleia Constituinte originária – para a partir
desse sistema político: a) pressionar até o limite a dominação capitalista em
nome da igualdade socioeconômica por via da redistribuição da riqueza, dos
direitos laborais, do acesso à terra, da tributação progressiva, do
reconhecimento de outras formas de propriedade para além da privada; e b)
pressionar até ao limite a dominação colonialista e patriarcal em nome do
reconhecimento da igual dignidade das diferenças raciais, etnoculturais e de
gênero. Ao contrário do que aconteceu até agora, as duas pressões são
igualmente importantes e têm de ser simultâneas. Na medida em que tiverem
êxito, as duas pressões irão deixando emergir uma outra matriz social e
política que muitos chamarão socialismo, se por socialismo entendermos
democracia sem fim.
E como isso seria possível?
O
sistema político terá de combinar democracia representativa e participativa, o
pluralismo econômico será o outro lado do pluralismo político, a ecologia será
a medida do crescimento econômico e não o contrário, como acontece agora, e a
educação será a prioridade das prioridades, orientada para democratizar,
desmercantilizar, descolonizar e despatriarcalizar as relações sociais. As condições
para ruptura são imprevisíveis e podem implicar muito sofrimento humano
injusto. O importante é ter ideias para as pôr em prática quando o momento
chegar e convicções para distinguir rupturas dos novos disfarces da
continuidade. Até agora, as ideias de ruptura estão a vir da direita e não da
esquerda, como bem ilustra a eleição de Donald Trump e o crescimento da
extrema-direita na Europa. O sistema disfarça-se de antissistema para
aprofundar o seu domínio e a sua capacidade de exclusão.
No livro A Difícil Democracia, o
senhor observa que temos uma democracia de baixa intensidade e que “vivemos em
sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas”. Que impactos
isso causa no funcionamento da sociedade e por que chegamos nesse ponto?
As
situações de fascismo social ocorrem sempre que pessoas ou grupos sociais estão
à mercê das decisões unilaterais daqueles que têm poder sobre eles. Exemplos de
fascismo social: quando uma família tem comida para dar aos filhos hoje, mas
não sabe se a terá amanhã; quando um trabalhador desempregado se vê na
contingência de ter de aceitar as condições ilegais que o patrão lhe impõe para
poder sustentar a família; quando uma mulher é violada a caminho de casa ou é
assassinada em casa pelo companheiro; quando os povos indígenas são expulsos
das suas terras ou assassinados impunemente por capangas ao serviço dos
agronegociantes e latifundiários; quando os jovens negros são vítimas de
racismo e de brutalidade policial nas periferias das cidades. Em todos estes casos,
estou a referir situações em que as vítimas são formalmente cidadãos mas não
têm realisticamente qualquer possibilidade de invocar eficazmente direitos de
cidadania a seu favor. A situação agrava-se quando se trata de imigrantes,
refugiados etc. Por exemplo, a situação de trabalho escravo de milhares de
imigrantes bolivianos nas fábricas de São Paulo. As vítimas de fascismo social
não são consideradas plenamente humanas por quem impunemente as pode agredir ou
explorar.
Mas
o fascismo não tem apenas a face violenta. Tem também a face benevolente da
filantropia. Na filantropia quem dá não tem dever de dar e quem recebe não tem
direito de receber. Em tempos recentes, a classe alta e média alta do Brasil
ressentiu muito que as empregadas domésticas ou os motoristas já não precisavam
dos favores dos patrões para comprar um computador aos filhos ou fazer um
curso. Ressentiam o fato de os seus subordinados se terem libertado do fascismo
social. Quanto mais vasto é o número dos que vivem em fascismo social, menor é
a intensidade da democracia.
O senhor classifica como esquerda um
conjunto de teorias e práticas que resistiram ao capitalismo e à crença em um
futuro pós-capitalista, mais justo, centrado na satisfação das necessidades dos
indivíduos e da liberdade. O quanto a esquerda de hoje se aproxima desse
conceito?
Desde
a queda do Muro de Berlim a esquerda mundial perdeu a memória e a aspiração de
uma sociedade pós-capitalista. Na América Latina, os movimentos indígenas
vieram trazer para a agenda política, sobretudo na primeira década do século
21, uma alternativa vibrante ao socialismo, o buen vivir (sumak kawsay em
quíchua, “bom viver”) dos povos andinos como matriz de desenvolvimento não
capitalista. Essa nova matriz foi consagrada nas Constituições do Equador de
2008 e da Bolívia de 2009. Infelizmente, a prática política tem vindo a
contradizer a Constituição. No fundo, a esquerda latino-americana foi sempre
muito eurocêntrica e, por vezes, racista, sobretudo em relação aos povos
indígenas e quilombolas. O problema da esquerda neste momento é não ter uma
resposta progressista para crise do neoliberalismo que se avizinha. A eleição
de Donald Trump e o crescimento da extrema-direita na Europa mostram que as
forças de direita estão mais bem posicionadas para impor uma resposta
reacionária.
Por que o senhor afirma em seu livro
que Cuba se transformou em um problema para a esquerda?
Quando,
na primeira década do novo milênio, se começou a discutir no continente o
socialismo do século 21, algo inédito em nível mundial, muitas vozes (a minha
incluída) advertiram que tal discussão só faria sentido se primeiro
discutíssemos os erros do socialismo do século 20. Acontece que Cuba era um dos
socialismos do século 20 e haveria de incluí-lo na crítica. Muitos companheiros
acharam que tal crítica acabaria por vulnerabilizar ainda mais a corajosa luta
do povo cubano ante a agressão do imperialismo norte-americano e o infame
embargo. O capítulo do livro a que se refere foi escrito a partir de uma
perspectiva socialista e solidária para com a luta do povo cubano. O texto foi
muito bem recebido em Cuba por intelectuais que muito respeitamos, mas a
publicação foi embargada por ordens superiores. Como vai a esquerda reagir se
Cuba caminhar para uma solução de capitalismo de Estado à la chinesa ou à la
vietnamita? Mas mais problemático ainda é como a esquerda reagirá a algo que
tem vindo a querer desconhecer: como reagir ao fato de em vários países da
Europa Oriental as sondagens de opinião revelarem repetidamente que a maioria
da população destes países considera que vivia melhor no tempo do socialismo de
Estado?
O Brasil da era Lula é citado como
nova potência “benévola e inclusiva”. Quais foram os limites desse modelo? Como
o Brasil pode ser classificado agora?
O
Brasil de Lula foi o produto de uma conjuntura que dificilmente se repetirá nos
próximos tempos. Tratou-se da alta dos preços dos recursos naturais e agrícolas
impulsionada pelo desenvolvimento da China (e também por especulação). Permitiu
que se realizasse uma notável diminuição da pobreza sem que os ricos deixassem
de enriquecer, sem que o sistema político e a prática política fossem
democratizados, sem que se fizesse reforma tributária, do sistema financeiro e
dos meios de comunicação. E sem que se pusesse em causa, e antes se
aprofundasse, um modelo de crescimento assentado na desindustrialização, na
destruição do equilíbrio ecológico do país e na imposição de sofrimento injusto
e ilegal (à luz do direito interno e internacional) aos povos indígenas, aos
camponeses e às populações ribeirinhas. Todas estas omissões foram os limites
do modelo do período Lula, um modelo tão brilhante nos êxitos do curto prazo,
como leviano no descuidar das suas condições de sustentabilidade. O Brasil de
agora é politicamente uma sociedade mais capitalista, mais colonialista e mais
patriarcal do que era antes do golpe, e por isso menos democrática e com mais
fascismo social.
Se o futuro da esquerda não será uma
continuação linear do seu passado, como será esse futuro?
Estamos
num período de bifurcação política, uma conjuntura altamente instável que pode
caminhar em uma de duas direções opostas: ou o fascismo social se expande e se
transforma em fascismo político; ou as forças democráticas prevalecem
antecipando-se às forças de direita que se posicionam para “resolver” a crise
do neoliberalismo que se avizinha – uma crise que elas próprias criaram com a
colaboração ativa de alguma esquerda rendida à “evidência” do pensamento único.
A esquerda só tem futuro no segundo caso, e para isso tem de se refundar numa
dupla crença: os grandes empresários, os banqueiros e a mídia corporativa a
serviço dele nunca aceitarão a “paz e amor” com as forças de esquerda. Quem
governa à direita tem não só o controle do governo, como também o do poder
social, econômico e político no seu sentido mais amplo. Quem governa à esquerda
só tem o controle do governo e o tem de usar para neutralizar os outros poderes
fáticos. Perante essa assimetria, governar à esquerda é sempre governar contra
a corrente, com tolerância zero com a corrupção e dando prioridade à reforma do
sistema político de modo a autonomizá-lo o mais possível em relação aos poderes
que reproduzem a dominação capitalista, colonialista e patriarcal. Os lideres
adequados a essa esquerda terão de ser muito diferentes dos atuais, centrados
em ampliar e manter autônomas e ativas as organizações de cidadãos e cidadãs
segundo mecanismos de democracia participativa. O poder político das forças de
esquerda será tanto maior quanto mais amplamente for partilhado por quem não se
considera “político”.
Há também um refluxo do
neoliberalismo em toda a América Latina. Como a esquerda reagirá a esse
contexto?
A
esquerda latino-americana perdeu uma grande oportunidade histórica. Na primeira
década do novo milênio o neoliberalismo estava na defensiva no continente
devido à guerra no Iraque. Os governos de esquerda fizeram sonoras declarações
contra o neoliberalismo e o imperialismo, mas não se envolveram com entusiasmo
(sobretudo os países maiores como o Brasil) na implementação de políticas
regionais que blindassem o continente depois da exaltante vitória da luta
continental contra a Alca e tornassem a solidariedade regional numa prática
consistente. Organizações como a Alba, Unasur, Banco do Sul foram sendo
negligenciadas, tal como o próprio Mercosul.
Os erros da esquerda explicam a
retomada neoliberal?
Hoje,
o neoliberalismo na América Latina tem dois nomes: o imperialismo
norte-americano e o imperialismo da União Europeia. A esquerda latino-americana
está despreparada para combater eficazmente esse perigo para as forças
progressistas. Desde que a Teologia da Libertação foi praticamente banida por
papas reacionários, a esquerda deixou de saber onde moram os desgraçados,
condenados, excluídos, silenciados, ressentidos do continente. E se soubesse
onde moram, não saberia como falar com eles. Parafraseando um grande marxista
deste continente, José Carlos Mariátegui (pensador peruano), o pecado capital
da esquerda latino-americana é ter-se esquecido dos desgraçados e desgraçadas
do continente, levada pela miragem da conquista de supostas classes médias que
no continente sempre estiveram ao lado das oligarquias.
Quais podem ser os impactos de uma
medida que limita gastos públicos por 20 anos para a democracia brasileira e
para a sociedade?
Devastador.
Anuncia um brutal aumento do fascismo social e o consequente definhamento da
democracia. Trata-se de uma medida provocatória destinada a mostrar às classes
populares que não poderão mais acreditar nas promessas da esquerda e que o
pouco que poderão esperar do Estado é o que lhes for dado pela direita. Espero
que os brasileiros e as brasileiras tornem o país ingovernável aos poderes que
os querem governar com tais medidas.
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