Por que importa quem nos representa?



As eleições municipais estão se aproximando e chegam com uma série de novidades. A reforma eleitoral de 2015 promoveu mudanças que já impactam o pleito, como a redução do tempo de campanha, que agora tem apenas 45 dias, e a proibição do financiamento de campanhas por pessoas jurídicas.

Outra novidade que desponta nas redes sociais é a visibilidade grande de pessoas LGBT e mulheres feministas se candidatando.
Publicado originalmente no Ceert

A partir da constatação de que a configuração atual do Parlamento não reflete a realidade da população brasileira, essas candidaturas prometem que mudar isso, colocando mais representantes mulheres, LGBT, negros e negras, mudaria radicalmente a política.

Essas campanhas são recheadas de frases como "LGBT vota em LGBT", "representatividade importa", "para a juventude ocupar a política".

Mas por que importa quem seu/sua representante é? Ou seja, por que é importante que a pessoa que recebe seu voto seja mulher, LGBT, negro ou negra?

A resposta mais comum é dizer que não importa. A política seria um embate de ideias, então importaria o que a pessoa pensa e defende, não o que ela é e os partidos seriam meios institucionais de agregar pessoas com ideias similares. Assim, deveríamos eleger alguém que defenda ideias com as quais concordamos, independentemente de quem ela seja. Isso é, em parte, verdadeiro. Não há garantia alguma de que uma pessoa, por pertencer a determinado grupo, defenda os direitos desse grupo ou determinada ideia. Clodovil Hernandes é um exemplo; apesar de gay assumido, quando deputado federal, não foi um grande defensor dos direitos LGBT.

As pautas que alguém diz defender são importantes e não devem ser ignoradas, mas as ideias não são completamente desvinculadas das pessoas e seus pertencimentos.

Para além da pessoa, os partidos também têm um papel importante em nosso sistema político. Os partidos possuem pautas consideradas prioritárias e têm um certo grau de controle sobre como seus parlamentares votam nessas questões.

Se o partido não acolhe as demandas dos grupos oprimidos, pode ser que o parlamentar que representa um desses grupos tenha pouca liberdade para agir em favor desses interesses.

Mesmo que tenha liberdade, pode não ter apoio de seus companheiros de partido, dificultando a aprovação de suas propostas.

Além disso, o voto em um candidato é também o voto em um partido, podendo, dessa maneira, acabar por eleger uma pessoa com interesses opostos ao que você defende. Por isso, é muito importante prestar atenção ao partido de seu ou sua candidata e optar por partidos que efetivamente apoiem as pautas dos grupos oprimidos.

Apesar desses argumentos, a simples presença de pessoas de grupos oprimidos na política é importante e existem, pelo menos, quatro boas razões para você votar em alguém que pertence a um grupo oprimido. As razões são:

1) A demanda por representação de grupos oprimidos é uma demanda por outra forma de democracia;

2) A sub-representação de grupos oprimidos é injusta;

3) Os interesses dos grupos oprimidos ganham representantes;

4) A pessoa eleita se torna um modelo positivo.

#1 A demanda por representação de grupos oprimidos é uma demanda por outra forma de democracia

Grande parte da população não se sente representada pelos nossos políticos e pelos partidos. Sentem que já não existe mais uma aproximação entre as pessoas, os partidos e os políticos e que estes defendem apenas seus interesses.

Votar em alguém que pertence a um grupo oprimido é uma aposta na mudança.

As mulheres eleitas tendem a dialogar mais entre si, independentemente do partido, e também possuem mais contatos com os grupos de pessoas que as elegeram, promovendo reuniões e assembleias para aproximar sua base. O lobby do batom, como ficou conhecida a articulação de mulheres durante o processo de constituinte, é um desses claros exemplos de articulação suprapartidária. A atual bancada feminina continua a atuar dessa maneira.

Muitas das candidaturas de mulheres, LGBT e pessoas negras são fruto de articulações de base e trazem como pauta, além das defesas dos interesses do grupo, uma maior participação da população na política.

O voto de quatro em quatro anos é muito pouco; votar num candidato ou candidata mais próxima de você, que constrói coletivamente a campanha e o mandato, te dá mais condições de acompanhar as ações, de cobrar e questionar as posições dessa pessoa, ampliando as chances de que seus interesses sejam efetivamente representados. É diferente de um "político profissional", que não é próximo de você e que vê a política como um fim em si mesmo.

A política, para grande parte das candidaturas que se originam de grupos minoritários, é um meio para a conquista de direitos para o grupo ao qual pertencem.

#2 A sub-representação de grupos oprimidos é injusta

É injusto que os parlamentos brasileiros sejam dominados por homens brancos heterossexuais. Será que essas pessoas possuem alguma capacidade fantástica e superior que faz que elas sejam representantes melhores do que mulheres ou pessoas negras e as tornem, assim, as legítimas representantes da sociedade?

Não! Não há uma diferença de natureza que faça que homens brancos heterossexuais sejam mais adequados para entender os problemas da sociedade e propor leis.

Se não existissem obstáculos impedindo que determinados grupos se elejam, era de se esperar que a configuração dos parlamentos fosse mais próxima daquela da população geral. Uma pequena variação seria aceitável, mas as discrepâncias atuais são muito grandes para ser uma simples distribuição aleatória.

As mulheres são 50,62% da população brasileira, mas apenas 31% das candidaturas para a vereadores são femininas. Não possuímos dados estatísticos sobre a população LGBT no Brasil, mas é impressionante que haja apenas um deputado federal abertamente gay no Brasil.

Essa discrepância é reflexo de um sistema complexo de injustiças que opera estabelecendo uma ampla gama de barreiras.

A primeira é a barreira da ambição política. Diversas pessoas de grupos oprimidos não ambicionam se eleger por acreditar que não seriam capazes.

A segunda é a barreira do financiamento; pessoas de grupos oprimidos têm dificuldades de conseguir um bom financiamento de campanha ou até mesmo apoio do partido, tornando sua campanha precária.

Outra é a barreira da elegibilidade, ou seja, algumas pessoas efetivamente deixam de votar em uma candidata por ela ser lésbica, ser negra ou pertencer a outro grupo oprimido. Insinuar ou revelar que o candidato rival é homossexual é uma estratégia muito utilizada para reduzir os votos do inimigo.

Essas barreiras são injustas e não deveriam existir.

#3 Os interesses dos grupos oprimidos ganham representantes

Vivemos em uma sociedade plural em que as pessoas têm opiniões e valores distintos e muitas vezes opostos. É impossível que uma única pessoa represente todos os interesses existentes e ainda dê conta de solucionar os embates entre posições opostas.

A ideia que fundamenta a democracia representativa é justamente de ser um mecanismo que permite organizar a pluralidade e os conflitos de interesses, de maneira a dar condições para que todos sejam representados dentro da política. Infelizmente, isso não é o que acontece na prática.

Os interesses dos grupos oprimidos raramente são representados; assim, projetos de lei que visam garantir direitos a esses grupos são sistematicamente abandonados ou reprovados.

Os direitos LGBT são um exemplo claro. Desde 1995, existem projetos de lei para regulamentar as uniões entre pessoas de mesmo sexo, criminalizar a LGBTfobia, entre vários outros.

No entanto, o Congresso, por pressão da bancada religiosa conservadora, se recusa a aprová-los e ainda retira as menções a gênero e orientação sexual de projetos, como ocorreu no Plano Nacional de Educação e na Lei do Feminicídio.

Por isso, é importante que pessoas pertencentes aos grupos oprimidos sejam eleitas, para que seus interesses sejam representados.

Existem duas boas objeções a esse argumento. Primeiro, que não é preciso pertencer a um grupo oprimido para representar seus interesses e segundo, como já dito anteriormente, que não há garantia de que o pertencimento a determinado grupo implique defesa dos direitos desse.

São argumentos verdadeiros, mas que não impedem a demanda por maior representatividade. Em relação à primeira objeção, apesar de qualquer pessoa poder representar os interesses de um grupo oprimido, na prática, quem o faz é exceção, como a deputada Erika Kokay - que mesmo sendo heterossexual, já se consolidou como uma defensora dos direitos LGBT.

Em relação à segunda objeção, ela na verdade deve ser interpretada como um motivo extra para maior representatividade, uma vez que não existe uma opinião única dentro dos próprios grupos oprimidos.

A criminalização da LGBTfobia é um exemplo; há pessoas LGBT que defendem com unhas e dentes a criminalização, outras que acreditam que essa não é uma via adequada de combate ao preconceito. Essa pluralidade de opiniões interna aos grupos deve ser representada.

#4 A pessoa eleita se torna um modelo positivo

A visibilidade na mídia dos grupos oprimidos costumeiramente é baixa ou negativa.

A maioria dos filmes exibidos anualmente nos cinemas nem sequer passa em testes simples, como o de Bechdel, que verifica se (a) existem duas mulheres no filme, (b) se elas conversam entre elas e (c) se a conversa é sobre algo que não um homem.

A visibilidade de LGBT e de pessoas negras também é bastante precária e negativa; quase sempre mulheres negras são representadas como domésticas e travestis, como prostitutas -- isso quando são representadas.

A representação baixa ou negativa tem efeitos concretos nas pessoas, podendo causar, por exemplo, baixa autoestima nas pessoas que pertencem ao grupo sub-representado e servir para legitimar as estruturas de poder e as hierarquias sociais.

A existência de uma pessoa que pertence a um grupo oprimido em um cargo de poder permite que outras pessoas se identifiquem com a pessoa eleita e desejem algo mais em sua vida, ampliando a autoestima e também as expectativas. Serve também para desconstruir o imaginário social negativo de determinado grupo, demonstrando que são capazes, como qualquer outra pessoa, de assumir um cargo de poder ou fazer o que quiserem.

A política não é apenas um debate de ideias entre pessoas desprovidas de qualquer pertencimento e corporalidade.

Neste ano, quando for escolher em quem votar, pense bem. Pense no partido e nas pautas, mas leve em conta também quem é a pessoa e considere dar preferência a votar em uma mulher, uma pessoa LGBT ou uma pessoa negra.

Existe uma série de páginas na internet que podem te ajudar a encontrar candidatos e candidatas feministas e LGBT: Candidaturas Trans do Brasil, Vote LGBT e Vote numa feminista.

Infelizmente não encontrei nenhuma página que agregue campanhas de negros e negras.


Obs.: a maioria dos argumentos apresentados aqui foi formulada e sistematizada originalmente pela cientista política feminista Anne Phillips. Para ver as posições originais da autora - muito mais detalhadas e aprofundadas do que foi possível fazer aqui - consulte o texto "PHILLIPS, A. Democracy and Representation; or, Why Should it Matter Who our Representatives Are? In: PHILLIPS, A. Feminism and politics. Oxford; New York, Oxford University Press, 1998". Anne Phillips possui uma vasta e respeitada obra abordando o tema da representação política de mulheres e outros grupos oprimidos.


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