Educar não é adestrar, por Leandro Karnal


Sou professor há 34 anos. Muitos pais pedem este conselho: como educar em pleno século 21? A resposta é complexa.

Somos dominados pela cultura da performance. O conteúdo está em alta, especialmente o de imediata aplicação. O vestibular tornou-se um vórtex e o ingresso em centros de excelência virou meta familiar, pois todos ficam envolvidos emocionalmente no esforço dos jovens.

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É fundamental que a criança e o adolescente dominem coisas como linguagem escrita/oral e habilidades matemáticas. Serão úteis por toda vida. Porém, há dois campos que fogem à aplicação imediata. O primeiro é a educação das artes plásticas. Alfabetizamos para a leitura de textos e raramente educamos para a leitura de imagens. Vivemos imersos num mundo visual e não nos adaptamos a isto. O desafio do olhar é intenso e o jovem quase nunca tem habilidade e repertório para julgar este mundo de fotos e desenhos que flui pela rede. Somos, quase todos, analfabetos visuais.

Levar uma criança/adolescente a um museu é algo muito importante. Deve-se preparar a experiência mostrando algumas obras que serão vistas. Devemos dar informações lúdicas e práticas. Deixe seu filho perceber a cor ou a espacialidade. Ele deve ser livre para se expressar e não devemos julgar o parecer de imediato. Importante: fique um tempo reduzido no museu, proporcional à idade. Aumente este intervalo a cada novo passo da maturidade. Podemos evocar o tema do que foi visto em conversas familiares. Indique sites que aprofundem a experiência. Isso tudo faz parte de uma educação visual e artística. O olhar fica mais sensível e amplo. Use todas as oportunidades. Indique como o selfie que ele tanto faz apresenta uma composição espacial. Introduza, aos poucos, a gramática de cada escola artística. Aprendizado implica esforço.
Educar não é adestrar, mas ampliar e estimular o repertório para que cada ser faça parte da aventura humana. A educação pela arte é poderosa e pode mudar, para sempre, a vida de alguém.

O outro ponto é a música. Todos os seres humanos deveriam ser expostos à linguagem musical desde cedo. Crianças amam o ritmo de tambores (para desespero de pais) e podem entrar logo no campo da melodia. Caixinhas de música seduzem bebês. Alfabetizar em música é algo muito bom. Em primeiro lugar, poucas coisas exigem áreas tão variadas do cérebro. Tocar requer habilidade motora das mãos, matemática do compasso, sensibilidade e abstração interpretativa. Descobrir esse universo é algo que ilumina as sinapses e estabelece a comunicação entre os dois lados do cérebro. Acreditem: a música torna as pessoas mais inteligentes! Rousseau, Nietzsche, Adorno e Barthes foram muito interessados em música. Parte de sua agudeza mental derivou disto.

Há uma outra vantagem na educação musical. Ao estudar piano, violão ou outro instrumento, despertamos um verdadeiro método. A criança começa com 15 minutos diários, depois meia hora e vai aumentando. É um sistema crescente de concentração. Surge uma arquitetura gradativa que estimula a paciência. Foco é um diferencial enorme nas relações profissionais e afetivas.

O livro O Grito de Guerra da Mãe Tigre (Amy Chua) narra a experiência de uma sino-americana com suas filhas Uma foi levada ao piano e outra ao violino. Dentro dos princípios defendidos pela mãe, as meninas foram estimuladas a um alto grau de excelência quase obsessivo. Proponho algo diferente, mas Amy Chua tem a vantagem de ter uma estratégia e de se envolver nela.

A música é para criar alma, não para tocar, obrigatoriamente, no Carnegie Hall ou na Sala São Paulo. Preciso estudar música para ser um bom ouvinte. O jovem deve ser incentivado até o ponto em que ele possa se divertir com a música. Todos ganham com esse aprendizado. Possibilitamos, com as artes, que o indivíduo viva sua sensibilidade, crie foco e amplie seu leque de interesses. Pense bem: se você não quiser enfatizar isso porque seu filho não será músico ou pintor, deveria evitar que ele aprenda a ler, porque ele também não será escritor. Interrompa a Educação Física: ele não competirá nas próximas Olimpíadas. Educação é para formar o ser humano completo, não para tornar cada atividade um projeto de carreira. A carreira virá de forma natural, ela é efeito de uma causa anterior, a personalidade.


Livros, tabela periódica, fórmulas físicas, redação, processos históricos: tudo isso pode ser parte de um projeto. Desejei reforçar a arte e a música como linguagens específicas para um diferencial humano. Meu ex-professor, Pe. Milton Valente SJ, afirmava: non scholae, sed vitae discimus (não é para a escola, mas para a vida que aprendemos). Poucas coisas têm tanta vida no mundo como a criatividade artística e musical. Ouse, crie e acredite: seu filho será outro se tiver acesso a estes dois mundos. Focar somente no que vira lucro é bom para o projeto de hamsters amestrados, não para pessoas integrais. Não temos a menor ideia de qual carreira será brilhante em 2046, mas todas necessitarão de criatividade e inteligência. Aproveito e agradeço a todos os meus mestres que apostaram que haveria vida após o vestibular. Bom domingo para vocês!


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