Fundação Palmares lança nota sobre transformação da capoeira em esporte


A capoeira é mandinga, é manha,
é malícia, é tudo o que a boca come”.
– Mestre Pastinha

Na semana passada (16/02), em sua primeira reunião do ano de 2016, o Conselho Nacional de Esporte (CNE), presidido pelo ministro do Esporte, George Hilton, formalizou a resolução, aprovada nessa mesma instância, em 2011, que reconhece a capoeira como esporte.



A questão da regulamentação e esportização da capoeira é antiga e polêmica. Entidades que representam os capoeiristas e mestres de capoeira reagem ora com cautela, ora com firme oposição, haja visto que a regulamentação e profissionalização da capoeira pode representar a deslegitimação daqueles que foram responsáveis pela invenção, manutenção, transmissão e disseminação dos conhecimentos relativos à capoeiragem, em prol da figura do instrutor com formação em educação física. Tal ameaça foi inaugurada pelo Projeto de Lei da Câmara nº 31, de 2009.

Essa distorção reforçaria a desequilibrada relação entre os saberes, a qual reconhece e sustenta o conhecimento acadêmico como o portador da verdade e da precisão, descartando ou relegando os saberes tradicionais, populares e baseados na oralidade a condições inferiores de qualidade e técnica.

Para Mestre Suassuna, a transformação da capoeira em esporte de rendimento representaria um genocídio dos velhos capoeiristas e seus mestres. Em uma linha interpretativa mais moderada, os mestres Mão Branca e Antônio Dias, embora comemorem o reconhecimento, ponderam e são categóricos ao defender que a “capoeira é dos capoeiristas” e são eles que devem geri-la e definir seus rumos.

Dado ao fato da decisão ter sido oficializada recentemente, o Ministério do Esporte ainda não definiu qual entidade ficará responsável pela representação da capoeira. Praticantes e mestres temem que esta função seja atribuída ao Conselho Federal de Educação Física e suas regionais (Sistema Confef/Crefs), entidade, segundo os quais, não teria sensibilidade para lidar com uma prática tão multifacetada.

A capoeira como luta/arte marcial é apenas uma de suas expressões, a qual somam-se: a música, a dança e a cultura. A capoeira mescla resistência com ludicidade, força com leveza. Ademais, a capoeira, que surgiu como forma e espaço de sociabilidade para os negros vindos de África e aqui escravizados, é hoje elemento que remete seus praticantes a uma ancestralidade fundante e está consolidada como um dos símbolos mais relevantes do que chamamos brasilidade.

Na edição dos Diálogos Palmares, acontecida na cidade do Rio de Janeiro, em outubro de 2015, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, afirmou que a capoeira “é, de fato, luta, mas ela é cultura, ela é lógica, é música, ela é sentimento de pertencimento [...] E uma coisa bonita da capoeira é que o bom capoeirista não é aquele que bate no outro, mas sim o que mostra que poderia bater, mas que, por civilidade, apenas encena a sua superioridade, enquanto o outro acolhe e tenta superar. Com isso, cria-se um processo positivo de disputa e de amabilidade dentro daquele processo.

A presidenta Cida Abreu, da Fundação Cultural Palmares (FCP), entidade responsável pela promoção e preservação da arte e da cultura afro-brasileira, posicionou-se em relação ao caso e garantiu que a “defesa da autonomia dos Mestres e a salvaguarda da capoeira fazem parte da missão desta Fundação, que está comprometida com essa importante manifestação cultural brasileira”.

“Uma proposta de profissionalização ou de conceituação da capoeira como modalidade esportiva põe em risco toda simbologia, referência e propriedade histórica desta matriz cultural ancestral.” – acrescentou a presidenta Cida.

Os defensores da medida, por seu turno, destacam que com isso as confederações e atletas da capoeira poderão ser beneficiados por programas e recursos disponibilizados pelo Ministério do Esporte, como o Bolsa Atleta.

Enquanto isso, Mestre Paulão Kikongo ressalta que essa iniciativa foi unilateral, autoritária e que envolve interesses que não os dos capoeiristas. O representante da Rede Nacional Ação pela Capoeira alerta ainda para o risco de transformar o capoeirista livre em um produto descartável para o mercado esportivo . (Acesse o abaixo-assinado organizado pela Rede)

Nós, da Fundação Cultural Palmares, acreditamos que classificar a capoeira como esporte de rendimento é aprisioná-la a um rótulo, que a desvirtua e descaracteriza tanto quanto os processos de folclorização.


Capoeira, patrimônio cultural

A complexidade e expressividade da capoeira levaram o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a registrar a Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, em 2008, estando inscritos, no Livro de Registro das Formas de Expressão e no Livro de Registro dos Saberes, respectivamente.

Seis anos depois, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) conferiu à Roda de Capoeira o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Para Jurema Machado, presidenta do IPHAN, o reconhecimento internacional serve, sobretudo, para colocar a todas as instâncias de governo do Brasil a “necessidade de assumir compromissos para com a salvaguarda desse bem, desde ações de promoção, valorização dos mestres, a preservação das características identitárias da capoeira, a formação de redes de cooperação, de transmissão desse conhecimento”.

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