Alunos negros, professores negros e a Lei Federal nº 12.990


Do Geledes

Por Janaína Penalva Professora de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília/UnB, membro da Coordenação do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação/UnB. Ex- Diretora -Executiva do Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ e do Centro de Estudos Judiciários do CJF

Por Evandro Piza Duarte Professor de Direito Processual Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, membro da Coordenação do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação/UnB

Por Gianmarco Loures Ferreira Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Pesquisador do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação/UnB

Por Marcos Vinicius Lustosa Queiroz Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Pesquisador do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação/UnB


Em vigor desde 9 de junho de 2014, a Lei Federal nº 12.990, que reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos do Poder Executivo Federal, tem tido um desempenho muito aquém do esperado.

Dados da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR comprovam que, muito distante dos 20% previstos na lei, na maioria dos concursos públicos que exigem formação superior este percentual chega, ao máximo a 14%, sendo que, no caso de universidades e institutos federais de ensino este percentual tem girado em torno de 7% .

Assim, não é de se surpreender que o fato da Universidade de Brasília (UnB), uma das mais tradicionais instituições de ensino do país, já pioneira pela adoção de cotas raciais no vestibular, nos idos de 2004, e, mais recentemente, nos processos seletivos de pós-graduação em Sociologia, Antropologia, Direito e Direitos Humanos, tenha ganhado as páginas dos principais veículos de imprensa para noticiar a abertura de edital com cotas raciais para contratação de professores de direito. Cumprir a lei, no Brasil, parece, realmente, ser motivo de destaque.

O dilema gira em torno da regra que prevê a aplicação do percentual de reserva (20%) sempre que o número de vagas oferecidas for igual ou superior a três. Em concursos em que há grande oferta, como os de nível médio, por exemplo, cumprir a exigência é mais fácil, tanto é que, ainda que abaixo do mínimo legal, as reservas têm ficado próximas à 16% (dezesseis por cento). No entanto, em concursos em que o número de vagas não passa de uma ou duas, como é o caso do magistério superior, o risco de a lei não surtir efeito é grande.

Segundo a Decana de Gestão de Pessoas da UnB, Maria Ângela Guimarães Feitosa, o sucesso do Edital para docente de Direito Público e Privado para a Cidadania, da Faculdade de Direito, que cumpre a reserva de vagas para negros e negras, deve-se a uma “adaptação à lei”, em que foram atualizadas as “condições gerais do edital”. De fato, tradicionalmente, os concursos para professores são limitados por disciplinas, dada a especialização exigida para o exercício dos cargos. No entanto, mesmo respeitando os níveis de especialização, é possível que se faça o que tem sido denominado “ampliação do espectro de atuação do cargo”, o que possibilita que as vagas, mesmo em especialidades diferentes, sejam aglutinadas. Dessa forma, o que a UnB fez no concurso para a Faculdade de Direito foi interpretar a lei  para garantir o cumprimento das cotas raciais.

Como comumente se observa em questões que envolvem concursos públicos, a reserva de cotas raciais já chegou ao Judiciário. Além dos debates sobre falsidade na autodeclaração, como havido nos concursos da Polícia Federal e no Instituto Rio Branco, a burla ao cálculo da reserva de vagas surge como violação mais sofisticada da lei. De forma aparentemente legítima, a distribuição das vagas por especialidades esvazia completamente o objetivo da lei, na medida em que não materializa as cotas.

Nesse sentido, a atuação do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União resultou em ações contra o Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA) e de São Paulo (IFSP). No caso do IFMA, a Defensoria Pública da União propôs uma ação civil pública, questionando o fracionamento das 210 vagas para a carreira de magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico da instituição, que resultou, ao invés de 42 vagas para pretos e pardos, em apenas 6 vagas.

Em sede liminar, o TRF da 1ª Região já se pronunciou contrário ao fracionamento das vagas reservadas, suspendendo os certames e determinando a incidência do percentual de vagas por cota sobre o total de vagas ofertadas.

Já no IFSP, o Ministério Público Federal em São Paulo ingressou também com ação civil pública, pelos mesmos motivos, em razão do fracionamento das 166 vagas para a mesma carreira de magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico, que deixou de oferecer qualquer vaga a negros e pardos, embora o total de vagas oferecida fosse de 166.

A efetivação da Lei Federal nº 12.990/2014 exige dos aplicadores o rompimento com as formas tradicionais de realização de concurso público nas universidades. A necessidade de que as disciplinas sejam lecionadas por professores especializados não implica que os concursos públicos sejam também segmentados. Até porque, no cotidiano das universidades, não é incomum, malgrado a especialização crescente, o docente lecionar em disciplinas de áreas afins.  Logo, é possível, como fez a UnB, a construção criativa de formas de seleção que assegurem o perfil acadêmico do professor, atentando, na mesma medida, para o mandamento constitucional que impõe processos seletivos antidiscriminatórios e comprometidos com a igualdade racial.

O concurso da UnB, portanto, inova em dois sentidos. De um lado, atenta ao risco que a divisão por disciplinas (direito público e direito privado) pudesse esvaziar o conteúdo da lei, lançou o certame com vagas na área de conhecimento, o que exige dos candidatos e candidatas um conhecimento de todo o conteúdo, mas também amplia a oferta, sem sair da especialização – formação em Direito – exigida. Por outro, demonstra uma competência administrativa de planejamento, possibilitando que ao invés de três concursos, em momentos diferentes, um só se fizesse, cumprindo, a uma só vez, dois deveres constitucionais: o de atender ao princípio da igualdade, viabilizando as cotas raciais na formação de seu corpo docente, e o de cumprir o princípio da eficiência, fazendo mais, com menos.

Não obstante, ainda há muito o que se feito. Apesar de a UnB ter aprovado, no final de 2015, um Edital de Condições Gerais para os próximos concursos de docentes, no qual se prevê a reserva de vagas, ainda não se consolidou na instituição, assim como em outras, uma discussão pública intensa sobre a importância da admissão de professores negros. Assim, é urgente que a própria Universidade debata e elabore estratégias institucionais, a serem seguidas por cada departamento, visando dar efetividade à Lei Federal nº 12.290.

De igual forma, as ações afirmativas não devem ser entendidas como mera reserva de vagas, mas sim no seu verdadeiro sentido de reestruturação profunda de ambientes historicamente excludentes. Há, assim, um longo caminho de democratização da gestão universitária, que passa, entre outras medidas, pela revisão de como o conhecimento é produzido na academia (bibliografias, ementas, disciplinas, grupos de estudos, linhas de pesquisa, etc.) e por compromissos institucionais muito mais delicados que a simples adoção das cotas. É justamente nesse aspecto que é possível visualizar a maior relutância da Universidade em assumir, de fato, posturas que impliquem na mudança efetiva do seu saber-fazer profundamente desigual.

O que se espera é que, da mesma forma como nos idos de 2004, as cotas raciais adotadas pela UnB criaram escola, a atual forma de condução dos concursos públicos para professores e professoras também sirva de bom exemplo para as demais instituições de ensino fazerem o que exige a Constituição, deixarem de lado a cultura institucional e se adaptarem para o cumprimento do princípio da igualdade.



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