Não
são expressões de própria lavra de escravas no Rio de Janeiro oitocentista, mas
escritas da imprensa que expõem poderes, resistências, dispositivos de “captura do corpo e de imposição de
identidades naturalizadas”. Avisos de fuga de cativas exprimem a agonia e
força da ordem escravocrata. Aqui, a escrita é da historiadora que procura “problematizar a diferença e escutar o outro”,
ou exercitar a re-significação do passado na análise de discursos acerca de
mulheres que escaparam, ainda que não registrassem, elas mesmas, suas agruras,
alianças e negociações em relação aos poderes do patriarcado na experiência da
monarquia constitucional escravista.
Publicadas
diariamente nas páginas do Jornal do Commercio, periódico que circulava na
capital da Corte no século XIX, as imagens de escravos “fujões” modeladas nos
avisos não estavam revestidas da pele de heróis ou heroínas e, aos olhos da
época, mais revelavam o espectro de corpos semoventes de uso (e abuso) privado
em suas marcas singulares. Eram, portanto, figuras carregadas da reprovação de
anunciantes que precisavam detalhar as características dos corpos que escapavam
– mercadorias, propriedades, capitais perdidos -, na tentativa de recuperá-los.
Figuras desenhadas sob certas marcas que compunham a representação de cada uma
das “peças”, em espaços reservados para indicar bens, patrimônio, até mesmo
rendas, que as elites proprietárias não queriam perder. Trata-se de uma perda,
que, naquela evidência cotidiana e expressiva, todavia, exibia tensões sociais,
outras forças em movimento e a fragilidade do regime e da dominação.
Daí
porque, geralmente anônimas nos anúncios de venda e aluguel, as mulheres
escravizadas apareciam nesses avisos designadas por seus nomes. Em meio à
descrição das características de aparência física que configuravam cada uma,
seus nomes seriam ferramentas necessárias no arsenal de trabalho de caçadores
urbanos, na intenção de que, municiados com os traços que singularizam e
distinguem corpos que escapam, caçadores pudessem recuperá-las e a ordem
pudesse ser recomposta.
Ademir
Gebara acrescenta um dado importante sobre os critérios que orientavam aquela
descrição. Ele observa que, após 1870, a construção de ferrovias, o movimento
da fronteira agrícola, a elaboração de uma política imigrantista e o próprio
crescimento urbano contribuiriam para o enfraquecimento dos mecanismos de
controle social. São mudanças que transparecem nas atitudes de proprietários e
na formulação dos enunciados, que (…) ao anunciarem fugas através da imprensa,
passam a descrever os fugitivos mais cuidadosamente – enfatizando suas
qualificações profissionais e as possíveis articulações sociais dos fugitivos.
A
despeito do controle da ordem escravista ou de seu enfraquecimento, ele lembra,
os avisos pareciam também sinalizar para a necessidade de mão-de-obra para o
trabalho. Portanto, a questão leva a crer que, àquela altura, a fuga
representava também a disponibilização de força de trabalho, no caso
mão-de-obra em circulação.
Tensão
e controle são faces daquela sociedade que se explicitam em discursos da
imprensa, do mercado, das instituições sociais no âmbito das províncias do
Império e do regime monárquico em geral, abrigam/revelam jogos movediços e
expressam relações que estão cada vez mais tensas na segunda metade do século
XIX. Afinal, desde a independência do Haiti, em fins do século XVIII e ao longo
de todo o século XIX, a questão da manutenção da escravidão e a possibilidade
de sua extinção não deixaram de ser objeto do discurso social, não só na
capital e nas províncias da Corte imperial, mas na maior parte do continente
americano3.
Os
avisos podem ser tomados como um front e uma trincheira, e também um aparato de
luta de proprietários, de comerciantes de escravos, em suma, de elites
econômicas e políticas, para manter o poder e resgatar seu patrimônio naquela
batalha cotidiana. As peças gráficas que reúnem o elenco de traços que as
identificam representam, portanto, parte de uma tecnologia política de produção
e manutenção do regime, voltada para a recuperação de corpos escravizados. Uma
tecnologia que Machado de Assis tão bem apreendeu4 que, ao ser acionada, expressava
um empenho para a recuperação de um bem privado e o restabelecimento da ordem
escravocrata. Trata- se de uma tecnologia que deixa transparecer as tensões que
procura dissimular, porquanto, em cada detalhe dessas formulações, fica
explícita uma marca, um gesto, um nome, que poderia significar a chave ou o
caminho para a possível recaptura da propriedade perdida ou exatamente o
contrário nos corpos que conseguiram escapar definitivamente.
Cada
enunciado remete ao conjunto de signos que demarcam a propriedade humana e
sinalizam para práticas de coação e crueldade que estavam naturalizadas no
cotidiano do cativeiro. Nesse sentido, os avisos apresentam formulações que
conferem um testemunho e uma materialidade discursiva referente ao confronto
daquelas forças sociais; exprimem o poder e a repressão da autoridade
escravocrata e a reação pela fuga; exprimem sentidos que remetem à ordem e à
transgressão; falam do poder em nuances e em movimento, ao tempo em que não
ocultam indícios daquele exercício político impresso em marcas que remetem à
violência e às experiências de dor.
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