O
sentimento de indignação me fez refletir sobre essa constante e secular
sexualização que é imputada a nós mulheres negras. Uma imagem que há décadas é
sustentada pela literatura brasileira, pela mídia e pelas músicas da indústria
cultural responsáveis pela construção no imaginário popular dos estereótipos
como a negra fogosa, a moreninha da cor do pecado, da mulata tipo exportação
entre outros. Quase caí pra trás ao saber da mais nova obra de arte global,
mais um duro golpe da mídia racista, a produção do seriado criado por Miguel
Falabella, “Sexo e As Negas” parodiando o famoso “Sex and City”.
A
série ainda não tem data de estreia, e segundo o autor, a versão acontecerá em
Cordovil, no Rio de Janeiro. Consistirá em um quarteto de amigas cariocas
composto por uma camareira, uma cozinheira, uma operária e uma costureira, que
viverão dilemas e obstáculos para alcançar o seu verdadeiro objetivo que é a
conquista de um parceiro sexual.
Mas
o que é pior do que ridicularizar a população pobre e negra numa versão tosca
de um seriado de mulheres brancas e burguesas, é acreditar que está fazendo a
diferença na vida dos negros e negras relegadas ou submetidas a papéis de
subalternidade, ao afirmar que através dessa produção a autoestima da população
negra vai aumentar, e quem sabe agora haverá uma mudança na televisão
brasileira, após 46 anos de existência, onde a trajetória das personagens
negras eram as cozinhas e as favelas nos frios cenários das telenovelas.
A
questão racial na mídia ainda nos é muito cara, já que segundo Joel Zito,
pesquisador e cineasta, em um terço das telenovelas produzidas pela Rede Globo
até o final da década de 90 não haviam personagens negros, contrastando com a
realidade brasileira, que à época chegava a 50% da população, atualmente os
dados apontam que somos maioria mas continuamos invisibilizados nas esferas de
poder, nas instituições de ensino, de saúde e no [não] democrático universo
midiático.
Se
nessa longa trajetória percorrida por Rute de Souza, Léa Garcia, Neusa Borges e
tantas outras atrizes renomadas e oriundas do Teatro Experimental do Negro, a
emissora nunca abriu espaço para uma ficção seriada apenas protagonizadas por
negras, qual será o interesse? Qual é o jogo?
Miguel
Falabella já é um velho conhecido das produções que fazem chacota de pobres,
mulheres, negrxs, e nordestinxs. Se voltarmos no tempo vamos lembrar de personagens
e frases celebres do diretor e produtor. Uma de suas produções ficou muito
famosa pelas frases de violência e intolerância como “Cale a boca Magda!” e “Eu
tenho horror a pobre”. Será que realmente ele está preocupado em contribuir
para uma mudança de olhar diante da população negra e pobre? Acredito que não.
Solange
Couceiro de Lima já alertava em seu artigo Reflexo do Racismo à Brasileira “a existência de uma identidade negra
deformada e estereotipada presente em diversos produtos da comunicação social”.
E se a mídia contribui para uma cultura nacional que fortalece uma imagem que
nos estigmatiza, que nos mantêm em um lugar inferiorizado perpetuando o racismo
velado no país, é preciso negar esse lugar, esse papel não é nosso.
Não
aceitaremos, nem fortaleceremos a herança escravagista onde o nosso corpo negro
não tem voz e não tem vez, cabendo apenas a satisfação sexual dos senhores
brancos. Lélia Gonzales(1984), refletia sobre o grau de violência simbólica
sofrida pela mulher negra, ao mesmo tempo em que é endeusada no período
carnavalesco, exerce em seu cotidiano a atividade de empregada doméstica para
seu sustento. “É por aí também que se
constata que os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito”.
Exigimos
mais respeito com a nossa vida, com os nossos corpos e nossas escolhas.
Enquanto se fantasia e ridiculariza a afetividade de mulheres negras do
subúrbio, continuamos morrendo nas maternidades públicas, exterminadas pela
polícia racista ou sofrendo com a ausência de direitos que deveriam ser garantidos,
e isso não tem graça.
Continuaremos
lutando e resistindo para sufocar toda e qualquer produção que contribua para a
perpetuação de uma sociedade racista, denunciando e cobrando responsabilidade
das emissoras, mesmo as privadas, pois possuem concessões públicas e portanto,
deveriam respeitar a população brasileira e a sua diversidade. O horizonte
aponta para a urgência da democratização dos meios de comunicação, onde a gente
possa não apenas nos enxergar com orgulho, mas onde possamos ver nossas
demandas pautadas pela mídia.
A
análise é de Laila Oliveira e foi publicado originalmente no Portal Geledés
A Globo está a serviço dela mesma e da podridão do mercado.
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