O pensamento aberto de Michel Foucault


Não é exagero afirmar que, em Michel Foucault (1926-1984), vida e obra aparecem interligadas, numa demonstração de que a busca pelo saber caminha lado a lado com o prazer. E foi assim que o autor de "Vigiar e Punir" construir seu pensamento, cuja abrangência alcança diversas áreas do conhecimento. Celebrada em vida, sua produção intelectual mostra-se cada vez mais atual. Seu principal mérito talvez tenha sido o de ousar e pensar de outra maneira. A constatação aparece no discurso do filósofo argentino Edgardo Castro, reconhecido como um dos maiores estudiosos do pensador francês, no fim do último dos quatro capítulos que compõe o livro "Introdução a Foucault".

A obra acaba de ser lançada pela série FilôMargens, da mineira Autêntica. Do mesmo autor, a editora já havia um volume intitulado "Vocabulário de Foucault", reunindo em verbetes os principais conceitos e temas do autor; e um complexo estudo de apresentação à filosofia fo italiano Giorgio Agamben. A obra sobre Foucault chega ao mercado no ano que marca três décadas da morte do pensador francês, cujos conceitos tem por base as suas investigações sobre temas como poder, sexualidade, saber e loucura, e servem de pistas para a compreensão da sociedade contemporânea.

Foucault: principais conceitos do filósofo são
abordados em livro introdutório de Edgardo
Castro.
Na apresentação do livro, Castro acena com uma boa notícia: "o ciclo das publicações dos textos de Foucault não está fechado". O autor analisa, comenta e traz à luz dos dias atuais o pensamento foucaultiano, desde as concepções sobre poder, passando pelo surgimento da sociedade vigiada (a exemplo da contemporânea).

A ideia de uma sociedade vigiada tem como base a concepção do olho de Deus que tudo enxerga, passa pelo conceito do pan-óptico - sistema de vigilância criado para supervisionar as atividades em fábricas, prisões, hospitais, escolas, dentre outras instituições. O estudo de Castro estende-se aos conceitos de biopoder e biopolítica, aparecem nos últimos cursos do pensador, que deixa uma obra em aberto.

A afirmação de Castro não fica apenas no campo metafórico, ou seja, fazendo alusão ao pensamento do autor que continua sendo revisitado. "Não só porque não apareceram senão dois de seus 13 cursos no Collège de France, mas por que o arquivo Foucault, agora, depositado na Bibliothèque Nationale de France, compreende aproximadamente 40 mil folhas inéditas, entre as quais se encontram o quarto tomo de 'História da Sexualidade', 'As confissões da carne', e três dezenas de cadernos, diário intelectual no qual Foucault registrou suas leituras e reflexões desde 1961 até sua morte". Vale lembrar que não chegou a corrigir a versão final do quarto volume da "História da Sexualidade", como este, outros trabalhos ficaram sem terminar, sublinha Castro.

Panorâmica

Em "Introdução a Foucault", o filósofo argentino projeta uma panorâmica sobre a obra e a vida do mestre francês, que defendia ser a vida concebida como uma obra de arte. E foi assim que traçou a sua trajetória, elegendo o prazer pelo saber como ponto de partida para construir a sua vida-obra.

Castro aborda desde as primeiras publicações, passando por temas centrais de sua tese de doutorado, considerações sobre o nascimento das ciências humanas, o pensamento sobre a política moderna a partir da relação Estado/mercado/empresa no liberalismo e no neoliberalismo. Destaca, ainda, o campo da subjetividade, entrando na seara do discurso, enfatizando tanto o que é dito quanto o silêncio.

Para Foucault, aquilo que não foi dito também faz parte do discurso. Muitas vezes, o não-dito, materializado no silêncio, acontece devido à relação de poder que permeia os atores do discurso. Produção múltipla, a obra foucaultiana perpassa a filosofia, a linguística, o direito, as artes e a comunicação social. Sua escrita chega a se confundir com a própria vida, daí alguns estudiosos defenderem que sua obra é autobiográfica também.

Foucault conheceu os altos e baixos de uma vida ordinária, até se tornar célebre, mas sem fazer disso uma meta. Aconteceu em função da sua busca pelo saber, o que significou, muitas vezes, remar contra a corrente. Daí a beleza e a autenticidade de sua teoria. Nunca tentou descobrir o que é poder, preferindo enveredar pelas entrelinhas, na tentativa de descobrir como as relações são construídas e permeadas por essa força, que se enraíza em toda a malha social. Com produção teórica construída ao longo de três décadas, Foucault continua surpreendendo pelas ideias atuais, conquistando as novas gerações.

Obra de arte

A comparação da vida à obra de arte se encaixa perfeitamente no sujeito Foucault, que foi um dos estudiosos que dosou obra e engajamento político. O que significa dizer que, em alguns momentos, o intelectual deve ter uma participação ativa, como aconteceu no Maio de 1968, na França, ao lado de outros intelectuais, quando apontou um novo campo de atuação dos pensadores. Hoje, com o recrudescimento dos movimentos sociais, mais uma vez, intelectuais são chamados a tomar uma posição, mostrando, também, a atualidade do seu pensamento.

Ao passar em revista a obra de um clássico contemporâneo, Edgardo Castro mostra que a obra do pesquisador francês é uma demonstração da sua forma de estar no mundo, além de ser carregada de subjetividade. É possível perceber, ainda, que toma como ponto de partida para a construção de suas teorias, resultado de quase três décadas de estudo, inquietações que marcaram a sua trajetória de vida, perseguindo a compreensão da sociedade ocidental.

Os estudos foucaultianos começam a partir de análises de fenômenos da modernidade, para depois desembocar nos períodos medieval e antigo, fazendo trajetória cronológica inversa. A religião, em especial o cristianismo, é outro objeto de estudo, sobretudo as confissões.

Normas

Os campos de investigações servem de indícios para a construção de uma sociedade normatizada e disciplinada, tema que aparece com insistência em sua narrativa teórica. Assim como governamentalidade, ética, repressão e vigilância. Em cada um dos capítulos, o autor detalha os eixos temáticos que aparecem na obra foucaultiana. No primeiro, aborda a problemática das ciências humanas e suas relações com a filosofia. No segundo, trata "da linguagem da literatura e o discurso dos saberes".

Enquanto no terceiro, enfatiza questões como normatização da sociedade e "governamentalidade", tratando de verdade e ética, no quarto e último capítulo. "Não nos surpreende, por isso, que o autor pôde dizer que, finalmente, não é o poder, mas o sujeito o tema geral das investigações". Para Foucault, o saber, o poder ou o sujeito só existem no plural e sem nenhuma identidade que transcenda suas múltiplas formas históricas.


Via Diário do Nordeste

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